O desafio da transição ao socialismo
”O desafio maior consiste na elaboração e desenvolvimento de um programa de transição ao socialismo, voltado para as condições históricas contemporâneas”, ”um programa (agenda) civilizatório, de avanço civilizacional”, defende o presidente do PCdoB, Renato Rabelo, em texto divulgado no Fórum Social Mundial (FSM). Ele esboça os contornos dessa atualização após examinar a crise capitalista atual e as lições das experiências socialistas. O texto se transformaria em pronunciamento no seminário ”A crise do capitalismo e a nova luta pelo socialismo”, realizado na quinta-feira (29). Um atraso no vôo de Renato impediu sua participação. Mas o texto foi distribuído aos presentes.
Veja a íntegra do texto da palestra de Renato Rabelo no Fórum:
”Boa tarde a todos e a todas! Agradeço o convite das entidades promotoras deste seminário A crise do capitalismo e a nova luta pelo socialismo, importante questão em pauta aqui neste Fórum Social Mundial.
A crise das experiências socialistas mais importantes do século XX — que levou ao fim da União Soviética e dos países socialistas do Leste europeu e à sobrevida do capitalismo —impuseram aos comunistas e às forças revolucionárias um imenso desafio histórico de resistência, análise critica autocrítica e de renovação, na busca de nova alternativa civilizacional contemporânea.
A grande crise capitalista atual
A euforia do liberalismo, então vitorioso nos anos da década de 90 e que proclamava sua vida eterna, com paradigmas tão absolutos nesse período, se estilhaçou confrontado com o curso da vida.
O capitalismo atravessa uma das mais graves crises de sua prolongada história, sacudindo o mundo. Esta crise atinge a estrutura básica do edifício da sociedade capitalista. Tem na potência imperialista hegemônica seu epicentro e compreende todo sistema em escala planetária, envolvendo os planos financeiro e produtivo. Pela sua dimensão, poderá sacudir ainda mais a atual ordem mundial hegemonizada pelos Estados Unidos.
O Estado liberal do inicio do século XX, o Estado de Bem-Estar Social do segundo pós-guerra, substituído pelo Estado neoliberal a e globalização financeira do final de 1970, só conseguiram ”incluir” cerca de 1/3 da humanidade, aprofundando as desigualdades, a dependência econômica e tecnológica, agravando enormemente a crise ambiental, e aumentando as ameaças de guerra. Esses projetos de sociedade capitalista se esgotaram.
Esta última fase, do desenvolvimento neoliberal capitalista, de desregulamentação financeira e auto-regulação do mercado, levou à ampliação da hegemonia do capital globalizado. Uma nova casta política e econômica mundial, fortemente privilegiada, se beneficiou dos enormes ganhos da financeirização mundial, em contraposição à redução acentuada da renda do trabalho e o surgimento de camadas crescentes, com empregos precários e de desempregados e marginalizados.
Fracasso categórico do modelo neoliberal
É insofismável o fracasso categórico do então reinante modelo neoliberal. A globalização financeira ruiu. Mas a casta dominante, beneficiária da exacerbada financeirização, tem a seu serviço o Estado capitalista monopolista. Este Estado tem papel decisivo agora, ao contrário do que se propalava, como ”emprestador de última instância” (envolvendo até agora trilhões de dólares). Na verdade, esse Estado é exatamente o salvador de última instância dos grandes capitalistas.
Na lógica da ideologia capitalista dominante, que prega permanentemente a austeridade do gasto público, que impõe o arrocho salarial e a contenção do trabalho vivo, o Estado capitalista tem, em contraste, todo direito de realizar escandalosa gastança, nunca vista, para livrar do abismo os grandes capitalistas. Tais procedimentos não resolverão os graves problemas sociais criados pela crise, mas, ao contrário, poderão provocar pesado retrocesso.
Impacto da crise no mundo em transição
O impacto desta crise de grandes proporções também reforça o rumo das mudanças de fundo, de uma nova alternativa, na transição em curso nas relações de poder do sistema internacional. A crise atinge mecanismos que sustentam a hegemonia norte-americana, principalmente os relativos à liberalização dos mercados monetários e financeiros mundiais dominados pelo dólar. Em contrapartida, a resistência antiimperialista se expandiu diante da ofensiva bélica e intervencionista dos Estados Unidos.
Enquanto isso, na chamada periferia do sistema, surgem novos atores que vão ocupando o papel de potências de influência regional ou mundial, como é o caso da República Popular da China, que podem atuar, conforme a posição soberana do governo nacional e dos interesses do seu povo, como contra-tendência à devastação oriunda dos países capitalistas centrais.
O fortalecimento da soberania e a preservação da economia nacional dos países ditos periféricos, na atual contenda global, podem se tornar possível através da construção de parcerias estratégicas. Entre elas o G-20 na OMC, G-5, Brics, Ibas, cúpulas intercontinentais, ampliando seus mercados internos e intensificando o intercambio comercial, na busca de uma alternativa própria.
Por outro lado, no cenário atual, as potências capitalistas buscarão formular uma solução favorável a elas. Porém, o imperialismo norte-americano não está desta vez em condições de impor uma solução unilateral para a crise. De todo modo a crise pode acirrar as contradições que levam ao declínio e à decadência da hegemonia unipolar dos EUA, podendo abrir passagem para uma nova ordem, uma nova época.
Como se expressou o artigo publicado na revista oficiosa da política externa americana, Foreign Affairs, ”Os Estados Unidos continuarão sendo a maior potência mundial por algum tempo ainda. A sua força militar sozinha garante essa posição. Mas a crise de 2008 causou prejuízos profundos no seu sistema financeiro, sua economia e sua posição no mundo; a crise para eles é um grande retrocesso geopolítico. Em médio prazo, os Estados Unidos vão operar de uma plataforma global menor – enquanto outros países, especialmente a China, vão ter uma chance de ascender mais rapidamente”. Portanto, a sua influência global irá crescer.
A saída de fundo é o socialismo!
O capitalismo ”moderno” é assentado no padrão de acumulação liberal e num raio de ação cada vez mais internacional. Para o capital não deve haver fronteiras, regulamentação ou planos predefinidos. Porque na sua lógica intrínseca, objetiva, vence o competidor que soma maior lucro em maior escala, alcançando o lucro máximo. Por isso, não interessa que se obtenha lucro maior fora do plano da produção, aliás, isto é o ideal.
Pelos séculos de existência do capitalismo ele não pode retroceder da sua fase plena, que é cada vez mais liberal e monopolista. Querer domar o capitalismo com sistemas de regulamentos e normas, em âmbito mundial e nacional, encontra guarida convicta entre os denominados keynesianos e neo-keynesianos que pensam repetir nas condições atuais o sucedido no pós-Segunda Guerra. Mas criar uma nova ordem financeira global totalmente diferente seria impossível nos marcos do capitalismo.
Tanto a tentativa salvacionista conservadora de reformas do neoliberalismo, como as reformas ou a ”refundação”, que pregam a volta ao Estado de Bem-Estar Social nas condições históricas atuais do capitalismo, estão fadadas a repetir o ciclo vicioso do capitalismo de destruição e reconstrução econômica, sempre mais onerosa para a maioria dos povos e países.
A resultante de toda crise capitalista é mais concentração e centralização do capital e da riqueza e o aprofundamento das desigualdades e da exclusão social. A verdade se impõe, o tempo vai confirmando, a crise não pode ser resolvida de forma efetiva nos marcos do sistema capitalista – a saída de fundo é o socialismo.
Contexto da nova luta pelo socialismo
Os eventos deflagrados pela crise atual abrem uma fase nova na luta ideológica e política entre o capitalismo e o socialismo. Passamos da fase vivida no início da década de 90, da afirmação corajosa da identidade comunista e da defesa dos princípios revolucionários, para a fase atual de afirmação renovada e crescente da opção pela alternativa socialista.
A orfandade ideológica do capitalismo torna-se mais evidente no processo da agudização da luta de classes no mundo, como revela o curso da crise capitalista atual.
Lições da experiência socialista
O PCdoB avalia que o êxito da nova luta pelo socialismo está na correspondência do desenvolvimento e atualização do pensamento avançado, revolucionário, que responda às exigências da nossa época e aos anseios fundamentais dos trabalhadores e das massas populares. É possível forjar um acervo inicial que permita construir uma teoria revolucionária para o nosso tempo.
Teoria baseada nos ensinamentos mais positivos retirados: 1) Das experiências socialistas do século passado, 2) Da experiência atual dos países socialistas que não sucumbiram à contra-revolução, mas, mantiveram suas instituições surgidas da revolução e reafirmaram a perspectiva socialista e, também, 3) Das experiências recentes do processo inicial de luta progressista e revolucionária na América Latina, e em outras frentes de luta avançadas.
Os processos políticos de sentido progressista e revolucionário são objetivamente contraditórios, não têm cursos predefinidos, pois os caminhos da luta ascendente de sentido democrático e popular dependerão das condições do período histórico e das peculiaridades de cada país e estarão sujeitos a etapas e transições que permitam alcançar o objetivo maior do socialismo.
Da rica experiência da construção socialista do século passado o PCdoB sacou a justa idéia de que não há modelo único de caminho socialista e de que a passagem do capitalismo ao socialismo requer um período de transição, que se inicia com a conquista do poder político nacional pelas classes sociais que formam a maioria da nação, interessadas nesse trânsito.
Esta transição, não compreende a socialização total, mas, objetivamente, pode se desenrolar em etapas e com leis próprias e poderá ser mais ou menos longa conforme o nível de desenvolvimento econômico e social e as particularidades históricas de cada país, além das condições do processo de transformação revolucionária no âmbito mundial.
Experiência do PCdoB no Brasil
Na nossa experiência no Brasil, a existência de um partido comunista forte, revolucionário, renovado, internacionalista — que saiba congregar as forças políticas avançadas, que goze de grande influência e prestígio entre os trabalhadores e as camadas populares — é fator decisivo e essencial para fazer prosperar a tática do partido.
Nas condições do atual período histórico, de prevalência ainda no plano geral de defensiva estratégica do movimento revolucionário, ocupa um lugar fundamental, no nosso pensamento estratégico e tático, a intervenção no curso político, dirigida pelo norte da acumulação de forças no sentido revolucionário.
Esse processo de acumulação de forças se constitui –nas condições particulares da nossa experiência no Brasil — na inter-relação de tarefas fundamentais e imprescindíveis: 1) Articular a iniciativa de construção de amplas frentes políticas, atuando na esfera institucional, de governos e de parlamentos; 2) Com a intervenção orientada em dar papel essencial à mobilização e organização das massas trabalhadoras e do povo, fonte principal de crescimento do partido e força motriz básica das mudanças; 3) E, ao mesmo tempo, atuação permanente no plano da luta de idéias, com a finalidade de fundamentar e reavivar a perspectiva revolucionária, a alternativa socialista.
Em conclusão, neste momento, o PCdoB eleva mais ainda sua convicção de que é possível a construção de uma sociedade nova, de elevado avanço civilizacional, livre da opressão e exploração capitalista, o socialismo! Valoriza os diferentes esforços de construção de unidade, fóruns e tentativas de forças da esquerda em todos os Continentes na busca de alternativas ao neoliberalismo e às políticas conservadoras.
Atualização do Programa de Transição ao Socialismo
A discussão da questão da alternativa, a construção de nova alternativa que derrote o salvacionismo conservador, defensor de uma ”reforma” neoliberal, ou supere também as agendas de soluções intermediárias, que defendem à volta de um sistema que regule (domesticque) o capitalismo é o desafio maior para os comunistas e defensores do caminho transformador, revolucionário. Porque o capitalismo, nas condições históricas atuais, está mais para a barbárie do que para o avanço civilizacional.
Este desafio maior consiste na elaboração e desenvolvimento de um Programa de transição ao socialismo, voltado para as condições históricas contemporâneas, tendo como foco resolver os grandes impasses estruturais atuais que se resumem em: definir, defender e concretizar um Programa (Agenda) civilizatório, de avanço civilizacional, que barre o retrocesso social, exerça a afirmação das soberanias nacionais e a superação da dependência econômica e tecnológica, defenda o espaço nacional, construa um desenvolvimento sustentável, lute por uma nova ordem mundial, com ênfase na solidariedade entre os povos, na igualdade entre as nações e na preservação da paz mundial.
Está no centro desse Programa (civilizatório) de transição ao socialismo a defesa e conquista de um novo tipo de Estado, essencialmente democrático, expressão de um pacto político de forças avançadas, sustentado numa base social popular, de unidade com as camadas médias, em composição com os setores capitalistas que contribuam para o desenvolvimento das atividades produtivas. Estado distinto do Estado de tipo liberal, ou o velho Estado da sociedade industrial do século XX, que se transformou em Estado do capitalismo monopolista e hoje é expressão da casta dominante beneficiária da financeirização.
Em termos gerais podemos assinalar (conforme anseios avançados de nossa época) que esse Estado de novo tipo poderia destinar em torno de 2/3 do excedente econômico para um fundo público, teria uma jornada de trabalho que progressivamente poderia cair para quatro horas diárias, durante cinco dias por semana, ingresso no mercado de trabalho aos 25 anos, educação ao longo da vida, 12 horas semanais no local de trabalho, ampliação do tempo destinado à cultura e ao lazer, universalidade da proteção social (investimento em saúde, educação, pleno emprego, gasto com a previdência e assistência social).
A base material necessária à sustentação de novo patamar civilizatório global já existe. É crescente o ganho de produtividade (física e imaterial) originada do capitalismo desde o começo do século XX.
Por isso, o avanço civilizacional não é possível nos marcos das relações de produção, de propriedade, de distribuição, gerados pelo capitalismo, pela sua divisão internacional do trabalho, pela sua atual ordem mundial imperante. A definição e aplicação de um Programa que abra caminho para o renascimento civilizacional contemporâneo, que sintetize o progresso civilizatório e seja convergente com uma nova ordem mundial solidária, equitativa e de paz deve se consubstanciar num Programa moderno de transição ao socialismo.”