Dizem que sou louco
“Ganhei, perdi meu dia”. O não ser em nós é que dá cria, quando ganhamos, perdendo o dia. Fernando Pessoa disse-o de outro jeito: “Então, se a razão é mentira e hipocrisia, por que não seria a loucura verdade e pureza?”. A fria razão, e a implacável lógica são a fortaleza em que se escudam os psicopatas (aí se incluindo os doentes mentais da política, para quem o poder é tudo). Sabe-se que os psicopatas são destituídos de emoção. Uma sociedade normótica e tecnotrágica, centrada em valores equivocados, só reconhece como bem sucedidas as pessoas “bem de vida”, isto é, as que se acham endinheiradas, ou são celebridades de verão.
Uma sociedade assim, hierarquizada materialista e utilitarista, descarta tudo o que não pode ser usado para fins egotistas e consumistas. Assim, confina e discrimina criaturas que, tendo vida interior, vivem sob o primado de emoções e sentimentos positivos, pelos quais se guiam. Em tempos como o atual criaturas assim são vistas como pessoas de inutilidade pública, abaixo de qualquer suspeita, sem utilidade prática; ou são vistos tidos como românticos, idealistas, sonhadores ou ingênuos. Deles se diz coisas do arco da velha, por gente que vive a beirar abismos, a semear à sua volta o caos e a desarmonia – que são o seu estilo de vida.
A canção do conjunto Os mutantes é um registro lindamente lúcido da reação à normose coletiva que a todos intenta enquadrar à mediocridade e à hipocrisia: Dizem que sou louco/por eu ser assim/mas louco é quem me diz/que não é feliz/não é feliz/Eu juro que e melhor/não ser um normal/eu posso pensar/que Deus sou eu”. Tem sido assim, desde que a dita “civilização burguesa” decretou o fim da era da inocência.: os honestos são colocados no ridículo, chamados de inapetentes para com a vida prática – um estorvo na vida airada dos gatunos e larápios “bem sucedidos na vida”.
Os inocentes (incapazes de fazer ou de se defender de maldades) são chamados de ingênuos ou parvos – e quem os diz assim são as aves de rapina da sagacidade ladravaz e rapace, as almas vorazes, as mentes dementes, que fazem da astúcia e da perversidade toda a razão da sua vida. Uma sociedade se torna tecnotrágica quando é governada por essa visão distorcida do que é “vencer na vida” e do que é “ser feliz”. Artistas, poetas, filósofos, daqueles antigos, verdadeiras antenas da raça, abridores de caminhos, não são como muitos, ou a maioria de hoje, cavadores de fama postiça, que em nada se distinguem das celebridades de um dia. Assim caminha a humanidade, em ufana vaidade, na direção do abismo e do desastre final.
O artista da fome
No Brasil, os artistas estão mal acostumados a serem artistas da fome. E a maioria se contenta em mal fazer para o sustento da arte que fazem. Assim, agem como uma fábrica que só trabalha para fornecer energia para seu próprio funcionamento. Nada produzem de útil a outros – nem a seus donos. Como eternos artistas da fome, ou o comedor de gillete, eternizado na pobreza crônica e na sátira do comediante Ary Toledo, pedem aos passantes o favor de se exibirem com seus malabares – em verso e prosa, muitas vezes canonicamente canhestros, ou simplesmente grotescos, como as mentes pobres a que recorrem.
Mas desde sempre chega o tempo da decadência, em que, nem pagando, serão ouvidos, lidos ou vistos. Assim como o circo tem de mudar seus mambembes, logo será chegada a hora de serem apenas tolerados como lamentáveis figuras do passado. Kafka refletiu sobre isto, com seu artista da fome, e outros ficcionistas o fizeram, fazendo arte a partir das verdades da vida. É então que chega a fase das homenagens, para alguns, tidos e havidos como acima de qualquer suspeita. Jamais incomodaram o sistema. Para alguns, que são cadáveres enquanto vivos, as glórias chegam tarde, pois que se tornaram póstumos antes de terem morrido. Uns já estão com o pé na cova, ainda que entregues a ferrenhas lutas por cadeiras de imortais – outros, já com o mal de Alzheimer, já nem se lembram quem são.
Outros, soterrados pelo esquecimento, não deixam a mínima lembrança de terem existido, ou de terem contribuído para a melhoria do tempo e da sociedade em que viveram – ainda que o tempo todo se pavoneassem de duvidosa e risível imortalidade. Simplesmente passaram, como tudo passa. Por efêmeros instantes, refulgiram como fogos-fátuos, sem fazer diferença no mar de mediocridade do tempo dos homens sem rosto. Pessoas existem que estalam como raios, e deixam em chamas tudo o que tocam. Fazem questão de viver em eterno suplício de não caber em si mesmos. São desta grei as que vivem a convidar a praça associada para o enterro de Deus, e os que desmancham rodas de bêbados.
Muitos destes, sendo artistas, deixam-se tanger e subjugar por harpias e moiras domésticas. Tais criaturas Mefisto-félicas não se deixariam tanger para o matadouro do dia, se conhecessem, e se colocassem a seu favor, a energia criadora que têm. Pensando que são gigantes, como podem se deixar dominar como vermes ou formigas? Como podem ser tão medíocres na vida, se representam o papel de serem artistas? Se são artífices do Verbo, como podem vender tão barato os signos da vida e, pior ainda, abastarda-los, como quem atira pérolas aos porcos?
Brasigóis Felício, é goiano, nasceu em 1950. Poeta, contista, romancista, crítico literário e crítico de arte. Tem 36 livros publicados entre obras de poesia, contos, romances, crônicas e críticas literárias.