Por Selvino Heck

Por Selvino Heck, assessor da Presidência da República, na agência Adital
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“Contam que, um século atrás, o ditador Mariano Melgarejo obrigou o embaixador da Inglaterra a beber um barril inteiro de chocolate, em castigo por ter desprezado um copo de 'chicha'. O embaixador foi exibido num burro, montado ao contrário, pela principal rua de La Paz. E foi devolvido a Londres. Dizem que então a rainha Vitória, enfurecida, pediu um mapa da América do Sul, riscou uma cruz sobre a Bolívia, e sentenciou: 'Bolívia não existe'. Para o mundo, com efeito, a Bolívia não existia nem existiu depois: o saque da prata e, posteriormente, o despojo do estanho não foram mais que o exercício de um direito natural dos países ricos” (Eduardo Galeano, as Veias abertas da América Latina, p. 163).

Diz matéria de Simon Romero do The New York Times (JB, 08.02.2009, A31): “Na correria para produzir a próxima geração de carros elétricos e híbridos, um fato preocupa montadoras e governos que buscam diminuir a dependência em relação ao petróleo estrangeiro: quase metade do lítio do mundo, mineral necessário para fazer os veículos funcionarem, é encontrado na Bolívia – um país que pode não ter vontade de se render facilmente. A indústria automotiva tem o maior potencial para o uso do lítio, segundo analistas. Como pesa menos que o níquel, também usado em baterias, permite que carros elétricos armazenem mais energia e sejam dirigidos por distâncias mais longas. O Centro de Pesquisa Geológica dos Estados Unidos diz que 5,4 milhões de toneladas de lítio poderiam ser extraídos da Bolívia. O número cai para 3 milhões no Chile, 1,1 milhão na China e 410 mil nos EUA”.

A Bolívia, sob a presidência do índio aimara Evo Morales, acaba de aprovar em referendo a nova constituição do país, com apoio de mais de 60% dos eleitores. E consagra os direitos da maioria indígena e a soberania nacional.

As mudanças políticas em curso na Bolívia têm consistência política, vêm de baixo para cima, amparadas na organização indígena e nas lutas históricas do povo boliviano, como a COB – Central Operário Boliviana. Mas agora podem estar amparadas também em elementos econômicos, como o gás natural e o lítio, como o foram uma vez a prata e o estanho. Só que a realidade política da Bolívia bem como da América do Sul estão mudando.

Francisco Quisbert, líder de um grupo de mineradores de sal e agricultores na periferia de Salar de Uyuni, maior depósito de sal do mundo, diz: “Sabemos que a Bolívia pode se tornar a Arábia Saudita do lítio. Somos pobres, mas não somos camponeses idiotas. O lítio pode ser da Bolívia, mas também é nossa propriedade”.

Segundo Saul Villegas, presidente de uma divisão da Comibol, agência do Estado que fiscaliza projetos de mineração, a visão de Evo Morales combina defesa dos índios bolivianos com defesa dos índios: “O modelo imperialista anterior de exploração de nossos recursos naturais nunca será repetido. Talvez haja a possibilidade de os estrangeiros serem aceitos como sócios minoritários ou, melhor ainda, como nossos clientes”.

A cobiça internacional está de olho na Bolívia. A Mitsubishi planeja produzir carros usando baterias de íon-lítio. A General Motor, em dificuldades nos EUA, planeja lançar seu Volt, carro que usa bateria de íon-lítio junto com um motor a gasolina. Nissan, Ford e BMW têm projetos semelhantes.

A organização do povo boliviano mais uma vez vai ser colocada à prova. Eduardo Galeano relata em As Veias Abertas da América Latina: “Em 1977, o general ditador Hugo Banzer dizia não à anistia dos presos, dos exilados e dos operários arrojados. Quatro mulheres e catorze meninos, vindos das minas de estanho para La Paz, iniciaram então uma greve de fome. 'Não é o momento propício, – opinaram o entendidos – já lhes diremos quando…' Elas sentaram-se no chão. 'Não estamos consultando – disseram as mulheres -. Estamos informando. A decisão está tomada. Greve de fome sempre tem lá na mina. É só nascer que já se começa a greve de fome. Por lá também haveremos de morrer. Mais lentamente, mas também haveremos de morrer.' O governo reagiu castigando, ameaçando: mas a greve de fome ativou forças contidas por muito tempo. A Bolívia inteira sacudiu-se e mostrou os dentes. Dez dias depois, não eram quatro mulheres e catorze meninos: mil e quatrocentos trabalhadores e estudantes levantaram-se em greve de fome. A ditadura sentiu que o solo abria-se debaixo dos pés. Foi arrancada a anistia geral” (pp. 289/290).

Nos tempos atuais, algo semelhante parece estar acontecendo ou poderá acontecer, se necessário. Segundo Marcelo Castro, gerente que fiscaliza o projeto de extração do lítio da Comibol, “é claro que o lítio é o mineral que vai nos levar à era pós-petróleo. Mas para trilhar esse caminho, precisamos gerar consciência revolucionária do povo, começando pelo chão dessa fábrica”.

Não por outro motivo, Marcelo Naves escreveu no Blog da Pastoral de Juventude da Diocese de Criciúma, no seu diário de bordo do FSM/2009 – Mística da Indignação, da Luta e do Amor, sobre o Seminário organizado no Fórum pela Rede TALHER de Educação Cidadã: “Foi emocionante ouvir o índio quéchua Diego Pari, vice-ministro de Educação Superior da Bolívia, sobre o processo de transformação que vem ocorrendo desde o MAS, passando pela eleição de Evo e culminando recentemente na vitória do plebiscito. O caminho, para Boaventura de Sousa Santos, pode ter como exemplo o processo boliviano que tem como sujeitos as raízes das Américas: os povos originários.”

Toda atenção, pois, à Bolívia. A Bolívia existe.