Houve um tempo, entre a consolidação da Revolução Industrial (final do século XVIII e início do século XIX) e a segunda metade do século XX, em que a economia mundial era basicamente dividida em dois grupos de países. De um lado estavam os países produtores de alimentos e outras matérias-primas (minério, madeira, couro etc); do outro lado figuravam os países fabricantes de bens industrializados.

Em boa medida pelo conhecimento científico que detinham e da tecnologia que dominavam, os países industrializados se tornaram os primos ricos da grande família do capitalismo internacional. Pelas razões opostas, ou seja, quase ausência de ciência e tecnologia, próprias ou compradas de terceiros, os países produtores de matéria prima se caracterizaram pela pobreza e pelo atraso, não só econômico, mas também social, especialmente nos campos da educação e da cultura.

O Brasil, como se sabe, sempre integrou o grupo dos países agrícolas. Os esforços para a sua industrialização tiveram início somente no governo Getúlio Vargas, por meio de um modelo que procurava harmonizar investimentos de três fontes distintas: governo federal, capital privado nacional e capital privado estrangeiro.

No final do século XX, contudo, com a extinção da União Soviética e o consequente encerramento da Guerra Fria, a configuração política e econômica internacional se alterou. A divisão entre Primeiro Mundo (países capitalistas ricos), Segundo Mundo (países socialistas) e Terceiro Mundo (países capitalistas pobres) deixou de existir. Sob domínio absoluto do capitalismo, o mundo passou a ser integrado por países “desenvolvidos” e por países “em desenvolvimento”.

Também nas últimas décadas do século XX passou a ocorrer uma aceleração, cada vez maior, da aquisição do conhecimento científico e do avanço da tecnologia. A tal ponto de o investimento em ciência e tecnologia tornar-se imprescindível mesmo para um país produtor de alimentos in natura e de matérias-primas industriais. Não são mais somente terra fértil e clima favorável que garantem o êxito da produção agrícola; é preciso agregar tecnologia, como melhoria de sementes, máquinas e equipamentos mais eficientes e novos métodos de plantio, para assegurar aumento de produtividade na agricultura.

A ciência e a tecnologia passaram a ser determinantes no mundo atual também porque o domínio delas resulta em mais um elemento importante para o desenvolvimento econômico e social de uma nação: a inovação. De poucos anos para cá o trinômio “Ciência, Tecnologia & Inovação” (C,T&I) tornou-se uma expressão universal. Uma nova maneira de caracterizar os países os diferencia como “líderes” ou como “seguidores” em termos de inovação. Ou seja, as pequenas Coreia do Sul e Cingapura, se caracterizam como “líderes” em inovação, ao lado da Alemanha e do Japão, dentre outros países desenvolvidos, ao passo que Brasil, Argentina e México, por exemplo, ainda são “seguidores”.

Mesmo que em rápidas palavras, este é o cenário que se apresenta para o Brasil, neste momento, em relação à participação da ciência e da tecnologia na construção de um projeto de desenvolvimento nacional. Aliás, C&T nunca foram atores tão importantes, como são agora, para a boa performance econômica e social de um país. O dado favorável, até otimista, é que o Brasil já conta com uma infraestrutura científica e tecnológica de boa qualidade para dar uma contribuição significativa para o seu crescimento sustentado. Como, porém, o nosso sistema de C&T ainda está em construção, serão necessários alguns ajustes para que continue evoluindo.

A atividade organizada de produção de conhecimento científico estabeleceu-se no País nos últimos 50-60 anos. No centro desse processo estiveram a reforma universitária, institucionalizando a pós-graduação, e a estruturação de um sistema de apoio e financiamento à pesquisa e aos pesquisadores nas universidades e nos centros de pesquisa governamentais.

O CNPq, a Capes, a Finep e as fundações de amparo à pesquisa (FAPs) foram e são agentes executores dinâmicos do processo. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) desempenharam papel fundamental no convencimento e na mobilização das mentes e dos esforços para que o processo se estabelecesse e se desenvolvesse.

Como indicador sinalizando efetivos resultados desse sistema, temos hoje a taxa de 2% de participação da produção nacional de trabalhos científicos na produção mundial – resultado bastante significativo, pois mostra que o nosso sistema básico de produção de ciência está do “tamanho econômico do país”, já que esse índice é basicamente o mesmo da participação do Produto Interno Bruto brasileiro no PIB mundial. Outro dado que revela a eficácia do sistema é a for mação de novos pesquisadores em nossas universidades. Em 1987, o Brasil titulou 868 doutores; em 2008, formou mais de 10 mil. Com isso, somados os mestres, o País contava no final de 2006 com um total de 178 mil pesquisadores, enquanto no ano 2000 eles não chegavam a 111 mil – aumento de 60% no período.

Considerando o total de pessoal envolvido com pesquisa (pesquisadores e pessoal de apoio), os números são de 354 mil profissionais em 2006 ante 210 mil em 2000 – ampliação de 68%. Ainda no campo de pessoal dedicado a atividades científicas, outra referência indispensável são os Diretórios dos Grupos de Pesquisa do CNPq. Eles mostram que em 1997 havia no Brasil 8.632 grupos, envolvendo 33.980 pesquisadores; já em 2006 eram 21.024 grupos, somando 90.320 pesquisadores.

Mais um aspecto fundamental é o crescimento do dispêndio em C&T em relação ao PIB do País nos últimos anos. Em 2000 esse dispêndio representava 1,22% do PIB, índice que passou para 1,46% em 2006. Esse aumento de pessoal e de investimento em C&T e P&D possibilitou que a pesquisa brasileira passasse a ocorrer em uma extensa gama de áreas e subáreas do conhecimento, dado fundamental para o País encontrar soluções para os mais diversos problemas internos e, ao mesmo tempo, garantir sua representatividade no cenário científico internacional. A participação do Brasil no projeto Genoma Humano se insere nesse contexto. Contávamos, já antes da vira da para este século, com pesquisadores em quantidade e qualidade suficientes para participação em um dos mais ousados e complexos projetos da ciência em todos os tempos. Pesquisadores brasileiros estiveram lado a lado com colegas de países como Alemanha, China, EUA, França, Japão e Reino Unido. Notável também no período a contar da segunda metade do século XX foi a constituição de casos específicos de sucesso no que se refere às ciências aplicadas e à pesquisa tecnológica. São exemplos emblemáticos desses casos o sistema Embrapa nas atividades agropecuárias; a rede Petrobras, capitaneada pelo Cenpes e com destaque para a Coppe/UFRJ, na indústria petrolífera; a tradicional Fiocruz no sis tema de saúde pública; o Centro Técnico Aeroespa cial (CTA) e a Embraer na indústria aeronáutica; o Inpe na produção de previsões de tempo e na articulação de uma rede industrial de construção de satélites artificiais; e o sistema Cnen – Ele tronuclear na tecnologia nuclear. Esse conjunto de dados revela que o sistema nacional de ciência e tecnologia tem robustez suficiente para contribuir com o País em um igualmente robusto projeto de desenvolvimento nacional. Para que essa contribuição possa ser efetiva e crescente será necessário, porém, que o sistema nacional de C&T seja alvo de uma atenção permanente, do governo e da sociedade. Não só por razões de sobrevivência do próprio sistema, mas porque, no curso atual dos acontecimentos há desafi os cujo enfrentamento merecerá dedicação e esforços iguais ou maiores que aqueles já dedicados à sua construção básica.

A superação desses desafios será crucial para saúde e bom funcionamento do próprio sistema, para o reconheci mento de sua utilidade pela sociedade e para que as atividades dos cientistas contribuam também para o equilíbrio social e regional no País. O primeiro desses desafi os – e, sem dúvida o maior e mais importantes deles – é que a ciência e a tecnologia seja uma questão de Estado, ou seja, que as grandes decisões da área não fiquem submetidas aos sabores e humores das políticas de governo e/ou dos interesses do parti do a que pertencer o ministro de C&T. Temos a reconhecer que, nos últimos anos, é notório o crescimento da importância que o governo federal (e também vários governos estaduais) vem atribuindo à ciência e tecnologia, mas nossa vigilância e participação terão de ser também crescentes, para que o processo não pare de evoluir. O segundo desafio é a deficiente educação básica e média. Requer o engajamento da comunidade científica para a sua superação, além da cidadania, obviamente. Não podemos nos furtar à participação, especialmente na questão do ensino das Ciências e das Matemáticas. As nossas melhores universidades devem priorizar a formação de bons professores, e em boa quantidade. Isso não vem ocorrendo. Pelo contrário, a formação de professores está cada vez mais sendo relegada àquelas mais destituídas de condições e qualidades. A expectativa positiva é que a nova Capes (dirigida a resolver problemas da educação básica e média) estimule esse movimento. Educação de qualidade é o mais importante requisito para a inclusão social. A ampliação de vagas nas universidades públicas, sem perder a qualidade, é outro grande desafio. A vaga em instituição pública é a que de fato está aberta para os filhos da nova classe média, e o atendimento da demanda por profissionais de ensino superior e técnico é condição sinequanon para o desenvolvimento do País. Basta comparar o número de engenheiros que formamos com aquele da China para que entremos em “estado de choque”. Os dez mil doutores que o nos so sistema de pós-graduação forma anualmente certamente nos darão condições de garantir essa expansão, especialmente na esfera das faculdades tecnológicas e escolas técnicas, tão necessárias.

A ciência brasileira está 60% localizada na Região Sudeste. Por razões estratégicas e de justiça federativa, é uma situação que não pode perdurar, constituindo-se num desafio para o planejamento estratégico e a política de ciência e tecnologia (C&T). Temos que redirecionar investimentos federais e estimular as FAPs locais. Isso, de fato, já vem ocorrendo em estados como Amazonas, Pará e Bahia, mas em outros com alguma tradição houve retrocesso. Em regiões como a Amazônia, o semiárido e a Plataforma Continental Marinha, o conhecimento científico é absolutamente necessário para uma intervenção econômica sustentável – ambiental e socialmente –, preservando o patrimônio do País. É imperativa a atuação do sistema de ciência e tecnologia nessas áreas, e sua expansão, contemplando essa atuação, é vital, até para justificar os investimentos da sociedade nas nossas atividades. O aspecto estratégico impõe o desafio de melhor distribuirmos as atividades de C,T&I no País, contribuindo para a superação das desigualdades regionais. Outro importante desafio a ser enfrentado reside na separação existente tradicionalmente entre o sistema universitário e as atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) nas empresas. Existem honrosas exceções de colaboração e temos avançado bastante na aproximação, mas muito ainda resta a fazer para que o fluxo de transformação do conhecimento em riqueza seja otimizado, desde o aspecto cultural, passando pelo operacional, até o marco legal. Além do estímulo à participação eventual de pesquisadores em projetos de interesse da empresa, mecanismos como incubadoras de empresas nascentes nas universidades, parques tecnológicos congregando universidades, centros de pesquisas e empresas com interesse em tecnologia e inovação, e mestrados profissionais, podem ser estimulados por políticas públicas para criar pontes de cooperação, em benefício da economia do País. O sistema universitário de pesquisa terá, certamente, o reconhecimento da sociedade por essa postura. Finalmente, menciono o desafio de superar um gargalo que decorre do fato de a C&T ser atividade recente em nosso País, e que é transversal a todas as outras, sua superação sendo importante para a boa fluência de todas as outras superações. Tal é a questão no marco legal para o exercício dessas atividades. Legislações desenvolvidas em outras épocas e situações, voltadas para outros propósitos, são confrontadas e/ou questionadas sistematicamente pelas atividades demandadas pelo desenvolvimento científico e tecnológico do País.

Alguns avanços estão ocorrendo, como a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre células-tronco, a Lei de Inovação e a Lei do Bem. Mas entendemos que uma revisão geral para identificação de gargalos, incluindo aí um estudo sobre o status institucional das organizações de pesquisa, o regime de contratação de pessoal, entre outros, torna-se necessário. Em resumo, para finalizar, temos claro que o Brasil possui um sistema de ciência e tecnologia apto e pronto para colaborar com o país na elaboração e na execução de um plano de desenvolvimento nacional robusto e de longo prazo. Ao mesmo tempo, há questões importantes a serem resolvidas, para que o sistema se fortaleça, cresça e, assim, possa aperfeiçoar e ampliar sua contribuição ao País.

Marco Antonio Raupp é presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

EDIÇÃO 100, MAR/ABR, 2009, PÁGINAS 89, 90, 92, 93