Oito anos após a realização do 1º Fórum Social Mundial, em 2001, podemos dizer que já vivemos em um outro mundo. Mas certamente ainda não é o mundo que as centenas de milhares de pessoas presentes nas seguidas edições do Fórum almejaram conquistar. É interessante ver o mundo e sua evolução na última década através das lentes do Fórum. Fica a impressão de que os primeiros anos do século XXI foram dignos da inauguração de uma nova era. E o Fórum? Ao que parece segue a tensão entre os que o exaltam como um grande evento e aqueles que aspiram à concretização de seu poder norteador frente às transformações sofridas pelo mundo.

Resgatando um pouco de sua história veremos que, o primeiro FSM (Porto Alegre – 2001) aconteceu entre os dias 25 e 30 de janeiro. Foi um encontro de massas, reunindo cerca de 18 mil pessoas. Foi considerado o coroamento de um período rico e efervescente dos movimentos antiglobalização neoliberal que surgiram em meados da década de 1990. O segundo FSM (Porto Alegre – 2002) ocorreu quatro meses após os atentados de 11 de setembro e reuniu cerca de 50 mil pessoas. Seu sucesso foi um insulto à política belicista e de marginalização dos movimentos sociais da “Era Bush”. A terceira edição do Fórum Social Mundial (Porto Alegre – 2003) aconteceu em um momento de grandes transformações na América Latina e na iminência de uma guerra estadunidense contra o Iraque. Uma marcha de 100 mil pessoas abriu o Fórum que lançaria uma convocatória da Assembleia Mundial dos Movimentos Sociais para o dia mundial de luta contra a guerra – a exitosa manifestação simultânea de milhões de ativistas de mais de 600 cidades de todo o mundo contra a guerra no Iraque do dia 15 de fevereiro de 2003.

Na sua quarta edição o FSM (2004) colocou à prova a sua real mundialização. Mumbai, na Índia, foi a sede do primeiro Fórum fora do Brasil. Nele, os participantes do FSM foram confrontados ao mesmo tempo com um cenário chocante de pobreza e a pujança dos movimentos sociais locais. O mundo vivia o aprofundamento das mazelas neoliberais e das guerras no Afeganistão e no Iraque. Em 2005 o FSM retorna à cidade de Porto Alegre no Brasil. O encontro reuniu cerca de 150 mil pessoas poucos dias após a posse de G. Bush em seu segundo mandato. Na América Latina já eram mais fortes os contornos de um novo tempo inaugurado com os governos de Chávez e Lula. A nova realidade da América Latina e a inspiração contra-hegemônica que representa ao restante do mundo também foi marcante no Fórum Policêntrico de 2006, que ocorreu na Venezuela, Mali e Paquistão. Em 2007 o FSM se muda para Nairóbi, no Quênia, e todas as dificuldades esperadas da realização de um evento como o Fórum na África são colocadas à prova. Em 2008 um novo formato foi testado, o encontro presencial centralizado em uma cidade deu lugar ao Dia de Ação Global, com atividades simultâneas em todos os cantos do planeta.

Ao longo destes 8 anos o mundo se foi transformando e muitas das discussões realizadas no Fórum como a crise ambiental e suas consequências, o despropósito da guerra no Iraque, a tensão da migração versus xenofobia, a crise do sistema econômico capitalista, etc se confirmarão. É gritante a diferença de cenário do mundo que presenciou o FSM de 2001 e o mundo tal como o vivenciamos hoje, em 2009. Do triunfalismo estadunidense que proclamava a inauguração de uma nova era liberal e de guerra ao terror, vimos a evolução para a deterioração de um sistema econômico em uma crise sem precedentes e a flagrante derrota dos propósitos belicistas “civilizatórios” dos EUA no Iraque e no Oriente Médio. Às crises, econômica e política, unem-se as crises ambiental, energética, alimentar, migratória, que colocam em xeque o modelo de desenvolvimento capitalista e consumista que ameaça a sobrevivência da humanidade. Do apogeu do consenso de Washington e do “american way of life”, passamos a uma confluência de crises às quais o FSM 2009 teve que se dirigir.

“Os acontecimentos que marcam o início de 2009 são de tal modo importantes que se o mundo não puder conhecer a posição do Fórum Social Mundial sobre eles é possível prever que o FSM corre o risco de se tornar irrelevante” (Boaventura de Sousa Santos – no artigo “FSM: O ano do futuro”) (1). Mais uma vez esta é a grande pergunta sobre o FSM: Será que após seis dias de um riquíssimo encontro o mundo saberá o que Belém opinou? A total descentralização das atividades durante o encontro manteve viva a tensão entre o FSM como arena e o FSM como sujeito político. O grande número de atividades (mais de 2000) – aliado a problemas organizativos como impressão do material e localização das salas – terminou por provocar grande dispersão e fragmentação, o que de fato ocorreu em Belém. A questão é que a grande diversidade de propósitos que o Fórum abriga, e esta é uma de suas principais marcas, acabou por colocar o encontro em xeque por se tratar de um momento de profunda crise mundial em que o mundo inteiro se pergunta por alternativas claras e objetivas.

Entretanto, conforme reconhece o teólogo da libertação e coordenador do Fórum Mundial das Alternativas, François Houtart – em entrevista a Estebán Velazquez publicada pela Agência Adital – mesmo com a diversidade de temas e atividades, há um “avanço no amadurecimento de um pensamento e de uma análise coletiva (…) ainda que nem sempre seja perceptível”. Alguns consensos vão se formando e se consolidando desde o início do processo FSM.

FSM: ferramenta da luta por outro mundo possível

Segundo o professor Emir Sader, “um balanço do FSM de Belém não deve ser feito em função de si mesmo. Ele não nasceu como um fim em si mesmo, mas como um instrumento de luta para a construção do ‘outro mundo possível’” (2). Concordando com a assertiva de Emir de que o FSM deve ser avaliado conforme sua capacidade de interferir na transformação do mundo no rumo do pós-neoliberalismo que o fundou, vejamos alguns aspectos do FSM de Belém. Em 2007, quando se decidiu pela realização de um Fórum Social Mundial na Região Amazônica (3), esperava-se que a temática privilegiada do encontro fosse a situação dos povos indígenas da região e principalmente a crise ambiental e climática a que a humanidade está submetida. No entanto, como a vida é dinâmica e o capitalismo por ser sistêmico se distribui em crises aparentemente descoladas, mas que ao fim e ao cabo só fazem sentido quando vistas globalmente, o colapso climático e a situação dos povos indígenas apresentaram-se como algumas das facetas de uma crise sistêmica. Uma confluência de crises – sintomáticas da crise do capitalismo e da cri se de hegemonia estadunidense – foi esta a tônica do FSM 2009.

Diante da crise civilizatória a alternativa socialista Diante dessa confluência de crises que caracteriza uma crise geral civilizatória, evidenciou-se a necessidade e a urgência de se debater as alternativas possíveis. Renato Rabelo, presidente nacional do PCdoB, escreveu uma intervenção para um dos seminários do FSM de Belém na qual afirmava: “os eventos deflagrados pela crise atual abrem uma fase nova na luta ideológica e política entre o capitalismo e o socialismo. Passamos da fase vivida no início da década de 1990, da afirmação corajosa da identidade comunista e da defesa dos princípios revolucionários, para a fase atual de afirmação renovada e crescente da opção pela alternativa socialista. (…) Por isso, o avanço civilizacional não é possível nos marcos das relações de produção, de propriedade, de distribuição, gerados pelo capitalismo, pela sua divisão internacional do trabalho, pela sua atual ordem mundial imperante. A definição e aplicação de um Programa que abra caminho para o renasci mento civilizacional contemporâneo, que sintetize o progresso civilizatório e seja convergente com uma nova ordem mundial solidária, equitativa e de paz deve se consubstanciar num Programa moderno de transição ao socialismo” (4). No Fórum de Belém, talvez mais que em qualquer outro, havia maior audiência e apoio à alternativa socialista. O debate das alternativas pós-neoliberais no FSM 2009 concentrou-se na discussão sobre qual socialismo para o século XXI.

Particularidades do Fórum de Belém 2009

Estima-se que cerca de 150 mil pessoas passaram por Belém do Pará por ocasião do Fórum Social Mundial 2009. Segundo os organizadores, um total de 133 mil pessoas se inscreveram, provenientes de 142 países. Destes, 15 mil se credenciaram para o acampamento da juventude, 1300 eram índios (de 50 países) e três mil eram crianças credenciadas na tenda Curumim-Erê. No geral, contando-se trabalhadores voluntários, tradutores, expositores, artistas, equipe técnica e organizadores chega-se ao número de 150 mil. Para quem acompanha os debates em torno da existência e perspectiva do Fórum Social Mundial é significativa uma menção a estes números, por demonstrar o poder de convocatória do FSM, que permanece pujante. Em relação aos Fóruns realizados em Porto Alegre, este foi mais moreno e negro, com mais participantes do Norte e do Nordeste do Brasil. A afluência dos jovens também foi um dos grandes destaques do FSM de Belém. E a presença de organizações sindicais, co ordenadas pela Federação Sindical Mundial e pela Confederação Sindical Internacional, realçou o tema trabalho como nunca dantes no processo FSM. O FSM 2009 começou exatamente uma semana após a posse de Barack Obama na presidência dos Estados Unidos. As duas posses de Bush na presidência norte-americana também coincidiram com os Fóruns de 2001 (Porto Alegre) e 2005 (Porto Alegre), e é digna de nota a diferença do impacto gerado pelas posses de Bush, especialmente a de 2005 na dinâmica do Fórum, e os difusos e contraditórios comentários sobre a assunção de um negro à presidência – o que é inédito num país tradicionalmente racista como são os Estados Unidos.Três agendas conseguiram despontar no encontro, apesar da flagrante dispersão e fragmentação do evento. Amazônia e os povos indígenas e sua concepção de “bem viver”; a luta contra a guerra imperialista e pela paz, em especial na Palestina; e a alternativa dos povos diante da crise do capitalismo e do neoliberalismo, destacadamente a integração continental e o debate sobre o socialismo do século XXI na América Latina. A vitória da política em Belém e a crise de Davos

Essa edição do FSM também abrigou um importante encontro entre governos e sociedade civil. Pela primeira vez cinco presidentes se reuniram dentro do FSM para debater com os movimentos sociais uma agenda progressista de enfrentamento da crise econômica internacional e de promoção da integração regional na América Latina. Chávez, da Venezuela, Lugo, do Paraguai, Evo, da Bolívia e Correa, do Equador, se juntaram ao presidente Lula e fizeram um alerta de que não estamos em uma “época de mudanças”, mas em uma “mudança de época”. É preciso lembrar que pouco tempo se passou da resistência contra a Alca, quando o FSM surgiu, até este histórico ato que simboliza a nova fase da luta dos povos latino-americanos. E que até o FSM de 2003 havia veto à participação de presidentes, como aconteceu com Chávez.

O debate com os presidentes sul-americanos, política e simbolicamente, foi o mais contundente contraponto ao Fórum de Davos que o processo FSM já realizou até agora. Falava-se muito de uma crise do processo FSM. Em 2009 ficou claro que o Fórum que está em crise é justamente o Fórum de Davos. Segundo relatos dos próprios participantes, Davos era só perplexidade e lamentação. A presença dos presidentes demonstrou que o Fórum terá cada vez mais razão para existir se continuar formando alianças entre movimentos sociais, partidos e governos comprometidos com a transformação social. Há uma evolução na análise dessa experiência dos governos progressistas e, segundo a declaração da Assembleia dos Movimentos Sociais realizada em Belém, “os movimentos sociais da América Latina têm atuado de forma acertada, ao apoiar as medidas positivas que adotam esses governos, mantendo sua independência e sua capacidade de crítica em relação a eles”. Em outras palavras, ou o FSM incorpora o debate das resistências e também das alternativas concretas ao neoliberalismo e ao capitalismo, que já existem ou estão sendo gestadas, e reconhece o papel da luta política nessa transformação social, ou, vendo de outra forma, o Fórum de fato pode entrar em crise por uma opção de despolitizar-se, como ocorreu no Fórum do Quênia.
No caso da América do Sul e da América Latina, ganham relevo crescente as Cúpulas dos Povos, realizadas paralelamente às cúpulas de chefes de Estado da região.

De que Assembleia e de que ação global precisamos?

O encerramento do FSM de Belém ocorreu com uma espécie de Assembleia das Assembleias, em clara alusão às Assembleias Mundiais dos Movimentos Sociais, que fizeram história nas prévias edições do FSM. O curioso é que em 2009 nem a Assembleia dos Movimentos e nem a das Assembleias tiveram a força aglutinadora que se esperava. A Assembleia dos Movimentos Sociais aprovou uma carta unitária e com propostas claras de enfrentamento deste momento de crise, uma agenda unificada para a semana de 28 de março a 04 de abril de 2009, com a bandeira “os povos não devem pagar pela crise”, além do protesto contra as guerras imperialistas e em solidariedade ao povo palestino.Desde a sua origem o processo FSM debate como fazer para impulsionar as mobilizações globais sem perder o seu caráter de espaço plural. Talvez uma simples solução seja possível, a mesma do FSM de 2003. Ou seja, fazer da Assembleia dos Movimentos Sociais, que é uma das muitas assembleias do FSM, a principal. Se ela for convocada com prioridade pelos principais movimentos sociais do mundo, será seguramente a mais importante. As regras democráticas do FSM na sua Carta de Princípios não impedem que a maioria se reúna. Todas as assembleias de convergência devem poder existir no espaço do FSM, nesse sentido todas as iniciativas são válidas, mas uma terá maior importância por mérito próprio, capacidade de articulação e representatividade. Espera-se que ao longo de 2009 as agendas anunciadas no Fórum sejam concretizadas. Se, pelo formato do Fórum ou por descaso oportuno da imprensa, o mundo não tomou conhecimento das opiniões do FSM sobre a confluência de crises a que estamos submetidos, a concretização de sua agenda será a oportunidade de difundir tais opiniões. O papel dos movimentos sociais é fundamental para levar adiante todas as agendas, lutas e mobilizações definidas no FSM. “O desafio para os movimentos sociais é conseguir a convergência das mobilizações globais em âmbito planetário e reforçar nossa capacidade de ação, favorecendo a convergência de todos os movimentos que buscam resistir a todas as formas de opressão e exploração” (Assembleia de Movimentos Sociais realizada no FSM 2009). Se o Fórum é um desaguadouro das lutas em curso, ele também deve ser a mola propulsora que eleve estas lutas a um novo patamar. A mobilização e articulação das forças populares será imprescindível para definir a tônica do próximo período.

Qual o futuro do Fórum?

Como fica o futuro do FSM? Em que condições se realizará o próximo Fórum? Uma grande polêmica está instalada quanto à realização do FSM 2011. A questão, a saber, é se o FSM será realmente um processo, portanto sujeito às intempéries da realidade e à necessidade de dar respostas concretas às situações concretas, ou se transformará em um evento protocolar, disputado pelos mega-projetos encabeçados por certas ONGs que têm mais compromisso com as temáticas financiáveis do que com as verdadeiras necessidades do processo FSM. Há, desde 2007, uma sinalização sobre a possibilidade do próximo encontro ocorrer no continente africano. Assim como foi importante realizar o FSM na América Latina e promover as reais saídas que estão sendo gestadas na região de aliança entre movimentos, partidos e governos como uma referência ao mundo, a escolha da próxima sede precisa conectar o encontro presencial do FSM com as lutas em curso e a visibilização de saídas concretas à construção do outro mundo possível.

Segue o debate estratégico sobre o papel do FSM. Em maio de 2009 o Conselho Internacional voltará a realizar um seminário estratégico. Naturalmente voltará o debate sobre a “crise paradigmática do FSM”. Até lá propostas como a da comemoração dos 10 anos do FSM em Porto Alegre, a do 3º Fórum Social Brasileiro, do 4º Fórum Social Américas e do Encontro da Crise Civilizatória proposto para a Bolívia em 2010 já terão os seus contornos melhor definidos. A predisposição de importantes movimentos sociais para seguir investindo no FSM também estará mais clara. A capacidade do FSM de se colocar com grande poder de convocatória, de influir em decisões e de promover uma alternativa mundial serão pontos fundamentais a serem discutidos no debate estratégico.

Próximo de completar uma década de existência o Fórum Social Mundial segue como uma marca importante da atual etapa de resistência e construção da contra-hegemonia. Oxalá possa se encontrar com o seu mais temido potencial: o de unir seu apelo popular e sua vocação de catalisador de lutas com a promoção de uma alternativa mundial clara e objetiva.

Ana Maria Prestes Rabelo é representante da OCLAE no Conselho Internacional do FSM e doutoranda em Ciência Política na UFMG.
Ricardo Abreu (Alemão) é economista, diretor do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz) e membro do Comitê Central do PCdoB.

Notas
(1) Disponível em:
http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4117
(2) SADER, Emir. Balanço do Fórum e do outro mundo possível, disponível em:
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15599
(3) Decisão tomada na reunião do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial de Berlim em maio de 2007.
(4) Texto preparado para um seminário do FSM 2009, publicado na íntegra pelo Vermelho em 01-02-2009, em matéria com o título “Renato propõe atualizar programa de transição ao socialismo”.

EDIÇÃO 100, MAR/ABR, 2009, PÁGINAS 47, 48, 49, 50, 51