Neste início do século XXI, a primeira grande crise do capitalismo global tem sido identificada como a mais grave desde a Depressão de 1929. Tão logo atingiu o epicentro da principal economia capitalista mundial (Estados Unidos), a crise financeira inicial se propagou rápida e sistemicamente para a esfera produtiva, com graves efeitos sociais e políticos ainda não muito bem considerados em praticamente todos os países.

O vírus da crise abala consideravelmente a estrutura de funcionamento da economia capitalista global, permitindo considerar que dificilmente o mundo pós-crise voltará a ser o que era até então. Por um lado, porque o colapso do padrão de financiamento, apoiado nas organizações financeiras privadas desregulamentadas e mediadas por um sistema de derivativos acoplados em agências de risco paralelas aos bancos, passa a exigir uma completa reformulação. Até o presente momento, contudo, praticamente não há evidências sobre a programação de um novo sistema de financiamento da produção e, sobretudo da construção habitacional, estopim da crise financeira estadunidense.

Ademais, do abalo produzido pela liberalização financeira dependente da confiança em torno das promessas de rentabilidades imateriais realizadas aos detentores de riqueza e descoladas da economia real, destaca-se a disfuncionalidade de grande parte das instituições multilaterais constituídas no segundo pós-guerra para exercer a governança global. O alastramento da crise mundial atual transcorre praticamente sem ações construtivas e coordenadoras por parte das Nações Unidas, sobretudo do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial que vinham quase sempre operando como se fossem uma espécie de porto seguro. Com instituições internacionais desacreditadas e sem governança mundial, o sistema econômico, político e social capitalista dificilmente se sustenta nas mesmas bases que o permitiram chegar até os dias de hoje.

Por outro lado, constata-se também que a retomada, e continuidade, do padrão de produção e consumo de massa atrelada à brutal concentração de renda e à própria insustentabilidade ambiental dificilmente poderá ocorrer. Isso porque a crise se manifesta sobre um mundo demarcado por significativas desigualdades que terminaram sendo mais aprofundadas ainda pela globalização neoliberal das duas últimas décadas. No contexto da crise mundial, as diferenças tendem a aumentar, por penalizações diferenciadas entre os países. Sabe-se, por exemplo, que frente ao conjunto de políticas econômicas e sociais implementadas pela maioria dos países para o enfrentamento da crise atual, ressaltam-se dois aspectos principais. O primeiro decorrente da confluência de ações voltadas para a defesa e sustentação da produção, ocupação e renda, traduzidas pelo recorrente uso de medidas anticíclicas de afrouxamento das políticas fiscais e monetárias, pelo socorro a empresas e bancos em dificuldades, pela ampliação do gasto público e pela regulação das forças de mercado.

Noutras palavras, a reprodução de políticas recorrentemente adotadas desde a Depressão de 1929 para debelar crises, mas que frente às medidas recessivas de ajuste exportador da década de 1980 e das reformas liberalizantes dos anos 1990 defendidas pelas agências multilaterais (FMI e BIRD) até pouco tempo representam uma importante inflexão política.

Um segundo aspecto registra-se no grupo de nações que se caracterizam por estabelecer estratégias mais amplas do que o imediato combate da crise internacional. Tratam-se de ações articuladas nos planos interno e externo, visando a permitir que algumas economias possam sair da crise atual melhor posicionadas na geopolítica mundial. Nesse sentido, ganham dimensões países como China, Índia e Rússia que implantam decisões voltadas ao fortalecimento do parque produtivo, militar e financeiro e, com isso, melhor aproveitam a fase atual de transição para o cenário global multipolar.De maneira geral, a crise mundial tende a enfraquecer os países capitalistas avançados, abrindo possibilidades tanto para o reposicionamento de economias até então identificadas como periféricas como para tornar mais veloz o deslocamento do centro dinâmico estadunidense. Mas isso pressupõe o uso de políticas públicas para além do keynesianismo bastardo, com ações transformadoras no horizonte de maior prazo (cenário mundial pós-crise).

Nesses termos, a crise favorece a renovação e o revigoramento de instituições, bem como possibilita o avanço da reestruturação do setor produtivo e do padrão de financiamento, permitindo que a governança não seja feita a partir do ideário passado, mas do novo que implique o redesenho do padrão civilizatório atual.

Exemplo do passado brasileiro

Ao longo do século XX, o Brasil foi um dos países que mais rápido expandiu a sua economia. Tão logo abandonou a estrutura produtiva primário-exportadora, a partir da Depressão de 1929, o país desencadeou um vigoroso projeto de industrialização nacional somente interrompido pela crise da dívida externa (1981-83). Com a produção nacional sendo multiplicada por 18,2 vezes (6,0% ao ano) entre as décadas de 1930 e 1980, uma nova estrutura produtiva nacional de base industrial foi constituída, permitindo a conformação do sistema nacional de proteção social no Brasil. As antigas ações de proteção social por categoria profissional foram gradualmente sendo ampliadas desde 1923, quando foi inaugurada a primeira experiência brasileira de previdência social (caixa de aposentadoria dos ferroviários), passando pela experiência do atendimento das principais categorias profissionais urbanas a partir da década de 1930. Mesmo que nos anos 1960, o segmento rural do mercado de trabalho tenha sido incorporado parcialmente por políticas de assistência médica e aposentadoria, ressalta-se que somente com a Constituição Federal de 1988 ocorreu a unificação do sistema de assistência e previdência social para trabalhadores urbanos e rurais.

As inovações na montagem do sistema nacional de proteção social do país se tornaram possíveis com a ampla participação popular posta em marcha pelo movimento de redemocratização durante a década de 1980. A efetividade do sistema de proteção social terminou sendo fortemente contida a partir de 1990 quando se passou a assistir à implementação de um conjunto de políticas e reformas de corte neoliberal, com maior produção e reprodução da exclusão social. Por um lado, apareceram sinais claros de interrupção no sentido da construção do padrão de universalização do Estado de bem-estar social, com avanço de medidas de maior focalização e assistencialismo do gasto público, enquanto, por outro, o esvaziamento da participação relativa dos salários no total da renda nacional. Essa inflexão no regime de bem-estar social e de emprego no Brasil decorreu, em grande medida, do movimento maior de baixo crescimento da economia nacional e da concomitante expansão do ciclo de financeirização da riqueza. Somente com o intervalo na adoção das medidas neoliberais desde o início do atual século é que se percebeu uma melhora relativa nos indicadores socioeconômicos da nação.

Essa melhora nos indicadores econômicos e sociais (expansão significativa dos investimentos e da produção, queda na desigualdade de renda e na pobreza), mais evidente desde 2004, pode ser interrompida pela crise mundial, caso a ousadia criativa e responsável não seja vencida pelo medo conservador.

Nova agenda nacional

A conformação de uma nova maioria política iniciou-se com a Revolução de Trinta em meio ao contexto da Depressão de 1929, permitindo liderar a construção do país urbano e industrial. Os novos segmentos sociais não rurais gestados pelo projeto de desenvolvimento foram aliados no enfrentamento do núcleo conservador da época, caracterizado por oligarquias primário-exportadoras.

Desde a crise da dívida externa, logo no início da década de 1980, o comando de parte importante da agenda nacional passou a ser crescentemente exercido pelos interesses dos ricos proprietários do capital portador de juros. As consequências disso se manifestaram desde a elevação da carga tributária até a desconstrução de parte do patrimônio público, passando pelo represamento relativo dos recursos relacionados ao gasto social (desvinculação da receita da União em 20%) e pela formação do superávit fiscal necessário para atender aos custos financeiros (quase 2/3 deles provém de recursos sociais).

Pela crise mundial e sua contaminação no Brasil, observa-se como o processo de financeirização da riqueza gestado por uma maioria liberal-conservadora encontra-se atualmente frágil, podendo ceder lugar ao novo desenvolvimentismo. Mas a conexão do Brasil com o futuro pressupõe a reconsideração prévia a respeito dos “defeitos” que atingem a nação: ausência da plena ocupação e injusta repartição da riqueza e das rendas geradas. O conjunto de mazelas nacionais contém segmentos sociais que, reunidos e articulados em torno de um novo ideário, poderiam forjar a base da maioria política necessária à mudança transformadora. Nesse sentido, não se pode abandonar a perspectiva de construção da agenda civilizadora no século XXI, com a promoção e defesa da produção de emprego nacionais, acompanhada da efetivação das reformas patrimoniais modernizantes, como a repactuação da nova riqueza (produtividade imaterial acumulada a quase 50% do produto anual). A busca da equidade social deve estar regida pelo reconhecimento e valorização de distintos esforços realizados realmente por variados segmentos sociais em torno da produção e reprodução das novas fontes de riqueza nacional. Assim, benefícios desconectados da eficiência econômica – como herança, ganhos especulativos e financeiros improdutivos –, entre outros, precisam ser revistos à luz de um novo compromisso político-social com o desenvolvimento soberano e sustentável da nação.

Por ser um país ainda em construção, com a incompleta infraestrutura e a enorme ociosidade de parte de sua força de trabalho, a convergência de esforços associados ao alongamento da capacidade de produção pressupõe a inversão da tendência de mais meio século de queda na parcela do rendimento do trabalho na renda nacional. Atualmente, os brasileiros que somente dependem do seu próprio trabalho para sobreviver ficam com menos de 40% de toda a renda nacional, enquanto na década de 1950 aproximavam-se dos 60%. A ênfase no estabelecimento de uma nova agenda civilizatória merece ser perseguida, permitindo a reconstrução da sociabilidade perdida, bem como liberação do homem do trabalho heterônomo no contexto das exigências da sociedade pós-industrial. Ou seja, o ingresso no mercado de trabalho aos 25 anos (ao invés de 16 anos de idade), a educação para o longo da vida (ao contrário de somente crianças, adolescente e jovens), as 12 horas semanais no local de trabalho (ao invés de 44 horas) e a expansão de atividades ocupacionais socialmente úteis à sociabilidade, como cuidadores sociais, entretenimento e outras. A base material necessária à sustentação desse novo patamar civilizatório global já existe, tendo em vista o crescente ganho de produtividade (física e imaterial) oriundo do capitalismo pós-industrial deste começo do século XXI. Destaca-se, por exemplo, que para cada dólar derivado da produção material há, simultaneamente, outros 10 oriundos do conjunto das atividades imateriais (não produtoras de bens, mas de mercadorias intangíveis). A captura dessa parcela do excedente econômico reafirma o projeto de sociedade protagonizado pela progressividade tributária e pela amplificação do gasto social capaz de gerar autonomização e empoderamento no conjunto dos povos no mundo.

Mas isso pressupõe o avanço em novos modos de regulação que potencializem a elevação da produtividade e seu repasse equânime a toda a população. Assim, o improviso dos ganhos fáceis no curto prazo deve dar lugar ao planejamento de maior tempo nas decisões públicas e privadas que se relacionam às oportunidades atuais de desenvolvimento do país. Na medida em que se debate a respeito do patrimônio que a nação deseja possuir no amanhã, coloca-se em marcha a convergência política necessária para a efetivação das medidas estratégicas que realmente podem asfaltar o caminho do futuro. Seria o caso da constituição de uma nova maioria política, capaz de conter um conjunto amplo de interesses sociais marginalizados pelo neoliberalismo. A emergência desse novo tipo de aliança política poderia fortalecer o conjunto dos estratos sociais de baixa renda e de nível médio, geralmente integrados por alguma forma de organização e que expressam resistências à condução neoliberal do projeto de sociedade dos ricos e poderosos. O elemento central se daria em torno da ampliação e reorientação do fundo público, até então comprometido com a improdutividade do circuito da financeirização da riqueza, para a conformação de uma nova agenda civilizatória consonante com as exigências da sociedade pós-industrial.

O fundo público originado pela luta política dos segmentos sociais mais organizados deve ser reformulado e novamente vinculado às receitas originárias, permitindo favorecer tanto a progressividade na tributação sobre a renda dos ricos como a universalidade da proteção social (saúde, educação, pleno emprego, assistência social, entre outros). Esse sentido, obstaculizado pelo processo de financeirização da riqueza, responsável pela adoção de programas de ajuste estrutural e pela condução de políticas econômicas e sociais neoliberais, pode sofrer uma nova reconfiguração a partir da crise atual. A defesa das atividades produtivas com redistribuição da renda e riqueza, acompanhada da democratização das estruturas de poder, produção e consumo, permitiria ampliar o componente estratégico definidor de uma nova maioria política no Brasil. Da mesma forma que há inegáveis dificuldades políticas para fazer convergir segmentos tão heterogêneos, permanece o desafio de incorporação dos novos contingentes sociais incluídos nos últimos cinco anos e que ainda parecem permanecer com baixo poder de pressão. A emergência dessa nova estratificação social em distintas regiões do Brasil precisa ser considerada, permitindo não apenas a organização da dinâmica econômica como estruturação de políticas universais de proteção social.

Renovação dos instrumentos de luta

A luta política em torno do fundo público indica o quanto o excedente econômico gerado assume crescente relevância na reprodução social. O Estado do século XX, organizado em torno dos problemas socioeconômicos da sociedade urbano-industrial, tornou-se anacrônico para enfrentar os desafios dos dias de hoje. O funcionamento do Estado que decorre da setorialização das ações expressa geralmente os interesses organizados que nem sempre se encontram conectados com uma visão do todo, implicando maior gasto, nem sempre compatível com eficácia plena.

Nessa perspectiva, imaginou-se que a soma das ações parciais ofereceria um todo superior somente a partir da atuação do Estado na execução do fundo público. Assim, os problemas da sociedade são enfrentados por ações setorializadas, como no caso da temática da ignorância, com o sistema público de educação; da doença, pelo sistema público de saúde; do desemprego, pelo sistema público de emprego, entre outros. Neste começo de século XXI, quando a sociedade pós-industrial adquire maior dimensão, o Estado necessário precisa ser matricial, trans e interssetorial, capaz de combinar diversas especializações com eixos de ação mais ampla. A oportunidade para que isso venha a ocorrer encontra-se diretamente relacionada à qualidade das lutas sociais em termos do embate das ideias que possam revolucionar o projeto de sociedade atual. O redescobrimento atual do Estado não pode estar conivente com as exigências de ricos e poderosos interessados na socialização dos prejuízos impostos pela crise. Urge implantar uma profunda reforma do Estado que implique fazer avançar o fundo público para mais de 2/3 do total do excedente econômico, por meio da tributação dos ricos, sobretudo os detentores das novas riquezas imateriais. Assim, criam-se condições mais adequadas para o avanço da construção de um novo padrão civilizatório.

Da mesma forma, a ação estatal de novo tipo requer o seu próprio empoderamento para tratar do enorme desbalanceamento imposto por somente 500 grandes grupos econômicos transnacionais, responsáveis por quase 50% do Produto Interno Bruto mundial. A defesa do espaço nacional, com exploração plena de todo o potencial econômico, impõe o fortalecimento da iniciativa privada, com novas regras que permitam ampliar a competição, mesmo com ação estatal em setores potencializadores da sociedade pós-industrial. Do contrário, a monopolização da produção e distribuição de bens e serviços pelas grandes corporações transnacionais torna pouquíssimas empresas detentoras de países, não o contrário.

O imperioso compromisso com o desenvolvimento nacional requer o planejamento de médio e longo prazos, com capacidades renovadas por parte do Estado na gestão de um maior possível fundo público. Para isso, a nação precisa democraticamente se posicionar favorável à convergência política que permita a construção das estratégias do amanhã, cujo caminho a ser perseguido deve incluir justamente todos os brasileiros, sendo sobretudo compatível com a sustentabilidade ambiental e o avanço tecnológico da nação.

Marcio Pochmann é professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)

EDIÇÃO 100, MAR/ABR, 2009, PÁGINAS 24, 25, 26, 28, 29, 30