Integração sul-americana: parcerias com autonomia
A união estratégica do Brasil com a América do Sul foi antevista pela inteligência poderosa de José Bonifácio de Andrada e Silva. Já em maio de 1822, como ministro do Reino e Negócios Estrangeiros, o futuro Patriarca da Independência deu instruções ao cônsul que mandava a Buenos Aires Manuel Antônio Correia da Câmara, para que iniciasse negociações com a Argentina visando à criação de uma federação sul-americana. Observava que “o Brasil, grande, rico e poderoso, só precisa de vizinhos abastados e venturosos para comerciar e defender-se com eles”.
Outro protagonista de nossa diplomacia, o barão do Rio Branco, acalentou a chama do pan-americanismo diferenciado da Doutrina de Monroe (“a América para os americanos”) dos Estados Unidos, inclinando-se para os ideais da união subcontinental de Simon Bolívar e San Martín. Resolveu pacificamente, sem deixar sequelas, a questão do Acre com a Bolívia e assinou tratados de limites com mais cinco países: Venezuela, Colômbia, Peru, Uruguai, Argentina, além da Guiana Holandesa, hoje Suriname. A teoria da confrontação, herdada dos estudos geopolíticos europeus do século XIX e também da Guerra Fria, teve seus dias de glória durante a década de 1970, quando Argentina e Brasil alimentaram uma disputa pela hegemonia no Cone Sul, hoje morta e enterrada. Em nossa política externa atual, a Argentina é parceiro estratégico no subcontinente.
Apesar dos avanços do passado, foi no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que o Brasil pôde ampliar sua vocação sul-americana de espaço geopolítico contíguo e parceiro. Avançou a estabilização do Mercosul, desenvolveu o programa da Integração da Infra-estrutura Regional Sul-americana (IIRSA), com um gigantesco plano de obras sem as quais a integração física seria miragem. É essencial conectar os sistemas de transportes e ligar os dois oceanos. Destacam-se com a Bolívia as hidrelétricas do rio Madeira e com o Equador a ligação transoceânica do complexo Manta-Manaus. O BNDES abriu linhas de vários bilhões de dólares ao comércio bilateral e realização de obras. Um exemplo marcante foi o financiamento de 242,9 milhões de dólares ao Equador para a construção da hidrelétrica de San Francisco, a ser executada pela empresa estatal equatoriana Hidro pastaza (80%) e a brasileira Norberto Odebrecht (20%), construtora da obra. Quando a usina ficou pronta, a Odebrecht repassou sua participação ao governo daquele país. No plano das instituições multilaterais, e apontando para a unificação de um bloco, à semelhança da União Europeia (que levou 50 anos para atingir a maturidade), desenha-se, em um futuro promissor, a formalização da União de Nações Sul-Americanas (Unasul). Esta seria uma revitalização da antiga Comunidade Sul-Americana de Nações, e teria a ambição de criar uma zona de livre comércio, unindo o Mercosul e a Comunidade Andina de Nações, além do Chile, Guiana e Suriname, com capital, banco, parlamento e moeda, um mercado de 400 milhões de pessoas e um Produto Interno Bruto de 4 trilhões de dólares.
A cooperação do Brasil com os vizinhos se faz, sobretudo, em infraestrutura, base para que as nações amigas lastreiem seu desenvolvimento em setores estratégicos, como energia, transporte, comunicações, capacitação tecnológica na agropecuária, exploração de recursos naturais – estes, por sinal, fora de qualquer cobiça de nossa parte. Recriam-se as condições, portanto, para a reformulação de projetos nacionais depois da avassaladora onda de desmantelamento das economias sul-americanas a partir das desestatizações, liberalização predatória de mercados e domínio por parte de empresas estrangeiras. A desnacionalização teve co mo paroxismo simbólico o ato do governo do Equador de trocar a moeda do país, o sucre – homenagem a um herói da libertação sul-americana, Antonio José Sucre – pelo dólar dos Estados Unidos. Posta a cooperação nestes termos, o Brasil não tem a ambição de isolar a América do Sul como um mercado cativo de suas empresas que começam a se internacionalizar, e ainda menos numa reserva de fornecimento de matérias-primas. Esta visão seria mais própria aos Estados Unidos e União Européia, cujas fontes de abastecimento de gás e petróleo oscilam em preocupante instabilidade. Convém lembrar que Venezuela, Colômbia e Equador são grandes exportadores de petróleo para os Estados Unidos. A China compra cada vez mais da Venezuela. Por causa do gigantismo geográfico populacional-econômico, o Brasil sobressai naturalmente co mo potência regional. Por isso cumpre-lhe ser cooperativo e solidário com os vizinhos que buscam o desenvolvimento, às vezes tentando corrigir atabalhoadamente séculos de injustiça social. Neste aspecto, a política externa brasileira formula-se essencialmente como política de Estado, atenta aos interesses nacionais permanentes, acima da temporalidade dos governos. Tal e qual hoje preservamos nossa autonomia como nação independente, sem alinhamentos automáticos ou servidões ideológicas, auguramos que nossos parceiros trilhem a mesma rota de altivez na defesa de seus interesses nacionais. Ao contrário das potências industriais, que receitam “lições de casa” opostas ao que fizeram para desenvolver-se, não podemos esquecer nossa história nem deixar de ver que ainda temos problemas estruturais dos quais os vizinhos também tentam se livrar. Em contrapartida, não faltam provocadores para açular retaliações quando a Argentina protege sua indústria da competitividade dos produtos brasileiros, o Paraguai anuncia a revisão da alta concentração da propriedade da terra ou a Bolívia estatiza seus recursos minerais – medida que tomamos em 1934, com tal extensão que ficou proibido furar um poço no quintal sem autorização do Estado. Incidentes naturais com alguns vizinhos, um deles incubado de décadas, o de Itaipu com o Paraguai, e, recentemente, os de companhias brasileiras na Bolívia e Equador, sinalizam que quanto maior for o desenvolvimento assimétrico do Brasil na região, mais crescerá a tentativa esdrúxula de qualificar o País já não como cabeça-de-ponte do “imperialismo americano”, como se dizia durante o governo militar (“subimperialismo brasileño”), mas como um dragão neocolonial a esfumaçar a soberania de vizinhos. Em verdade, está se contornando um novo tabuleiro geopolítico na América do Sul. A emergência em bloco de governos com matizes nacionais e democráticos, a exemplo de Bolívia, Equador, Paraguai e Venezuela, indica que nossa diplomacia terá de desdobrar-se para desmontar factoides e acomodar os interesses econômicos com a tradição de boa-vizinhança, hoje fortalecida por uma corrente integracionista, cooperativa e solidária que viceja no subcontinente. Somos o segundo país que mais tem vizinhos de chão (dez, com a Guiana Francesa), só superado pelos 17 da Rússia, mas com todos vivemos em paz ao longo de 16.889 km de fronteiras.
De qualquer forma, é ilusão achar que vivemos num mundo pacífico. O que não faltam são escaramuças e guerras promovidas pelas potência e seus satélites. Como já tivemos oportunidade de assinalar, “a conjuntura é marcada por instabilidade e choques de interesses entre as potências e seus satélites. Bombardeios de nações soberanas, deposição de governantes, desmantelamento de Estados extracontinentais, forja de nações a partir de enclaves étnicos, invasões de território, são acontecimentos em choque com o ideal da paz”. A América do Sul não está imune a esses conflitos de interesse. Foram vários os litígios regionais nos últimos 30 anos, alguns ainda latentes, como os eclodidos por limites marítimos e terrestres entre Chile e Peru, Chile e Bolívia, Venezuela e Guiana, Peru e Equador, e recentemente opondo Equador e Colômbia por invasão de território. Em 1978, Argentina e Chile quase foram à guerra pela posse de três ilhas no Canal de Beagle, numa demonstração de que o interesse nacional não se modela com ideologia nem afinidade política, pois os governos (militares) dos dois países na época (Videla e Pinochet) eram ditaduras siamesas.
Problemas sempre haverão nas relações entre vizinhos-parceiros que compartilham dificuldades e desafios e buscam superá-los a partir de um projeto nacional baseado na soberania. Num e noutro episódio, um país poderá considerar que seu interesse está em risco, mas seu único caminho será a mesa de negociações, institucionalizando-se um foro regional para a solução pacífica de controvérsias, sem atenção ao histrionismo de palanque ou o concurso de potências extrarregionais, como recentemente conseguimos operar no incidente da Colômbia versus Equador e do conflito interno em curso na Bolívia.
Trata-se de estabilizar a relação de amizade, econômica, mas não predatória, com vistas à prosperidade conjunta, preparando as economias do subcontinente para a participação competitiva no mundo globalizado. Um bom parâmetro pode ser a relação que o Brasil consolida com os Estados Unidos, baseada na disputa e na cooperação.
Não só no Brasil, mas também nos países vizinhos, temos problemas graves e urgentes a enfrentar antes de nos distrairmos na canoa furada do “imperialismo brasileño”. Tal como ocorreu, e ainda ocorre, entre nós, a exemplo de movimentos de ruptura como a Guerra aos Holandeses, a Independência, a Abolição, a República e a Revolução de 1930, também nos demais países da América do Sul nenhum partido ou movimento político-social terá capacidade de alcançar sozinho mudanças estruturais relevantes e duradouras. Só a união de forças heterogêneas, como se deu nos ciclos transformadores da sociedade brasileira, poderá criar a base para manter nossos países na senda do desenvolvimento contínuo e sustentável.
Aldo Rebelo é deputado federal pelo PCdoB/SP
EDIÇÃO 100, MAR/ABR, 2009, PÁGINAS 64, 65, 66