Passados cinquenta anos da vitória da Revolução Cubana, chama a atenção o fato da extraordinária projeção internacional alcançada por Cuba, Fidel e sua revolução. Para se entender melhor o seu significado há que se levar em conta, necessariamente, um conjunto de elementos históricos, tanto anteriores como posteriores ao 1º de janeiro de 1959. Isso porque o próprio conceito de revolução pode remeter a dois momentos distintos: ora para designar um instante específico de luta e de tomada do poder pelos guerrilheiros, ora para se referir ao longo processo seguinte de consolidação do caráter efetivamente revolucionário do novo regime.

Conforme enfatizemos um ou outro desses momentos, podemos nos deparar com distintas caracterizações da Revolução Cubana: no primeiro caso uma guerra de guerrilhas predominantemente rural, democrática e popular, contra a ditadura de Fulgêncio Batista e seu exército; no segundo caso – desdobramento do primeiro – uma revolução de caráter socialista, nacional e anti-imperialista, num contexto de guerra fria e de enfrentamento com os vizinhos Estados Unidos. Acreditamos que, especialmente em razão desse segundo sentido, a revolução e o regime cubanos ganharam posteriormente uma fantástica projeção internacional, que surpreendeu – e ainda hoje surpreende – até mesmo os seus principais líderes e opositores.

Não obstante tais caracterizações, urge considerar alguns antecedentes históricos desse processo revolucionário deflagrado na década de 1950. Um deles é resultado da peculiar posição geográfica de Cuba. Situada estrategicamente na região inter-hemisférica do Caribe, a cerca de apenas 150 quilômetros da costa estadunidense, na porta de entrada para o acesso ao istmo centro-americano, através do qual se poderia estabelecer – como de fato se estabeleceu – a ligação entre os oceanos Atlântico e o Pacífico, Cuba foi durante a segunda metade do século XIX alvo de permanente cobiça por parte dos Estados Unidos, de onde partiram constantes e ameaçadoras propostas de anexação. É inegável que tal posição geo-estratégica delimitaria o destino histórico da ilha a partir do final do século XIX, principalmente no que se refere às suas relações com a vizinha e emergente potência capitalista do norte.

Outro antecedente histórico fundamental diz respeito às circunstâncias e ao processo tardio da independência cubana. Diferentemente da região continental ibero-americana, onde as independências ocorreram nas primeiras décadas do século XIX, Cuba e Porto Rico ainda permaneceram como colônias espanholas até 1895, quando teve início a guerra independentista liderada por José Martí. Visando a resguardar seus interesses geo-políticos na região do Caribe e retomando certos princípios da Doutrina Monroe, os Estados Unidos intervieram no conflito em 1898 ao lado dos cubanos, impondo uma rápida derrota às forças espanholas e estabelecendo uma junta de militares estadunidenses que governaria a ilha até a sua independência formal em 1901.

Na verdade, tratou-se de uma independência hipotecada aos Estados Unidos que, ao deixarem a ilha, impuseram a aprovação de uma emenda à Constituição cubana – Emenda Platt – que dava ao governo estadunidense o direito de intervenção e de total controle sobre a política externa de Cuba. Além disso, tal emenda concedia aos Estados Unidos o direito de manter em território cubano uma base militar na região oriental de Guantánamo, mantida até hoje. Tal relação neocolonial imposta ao país caribenho pela potência norte-americana iria marcar profundamente os acontecimentos seguintes da história econômica e social cubana, bem como as relações de interdependência entre os dois países, mantidas durante as décadas que antecederam à deflagração do processo revolucionário.

Por fim, tomemos em conta as relações e os vínculos políticos e econômicos estabelecidos historicamente entre Cuba e Estados Unidos durante a primeira metade do século XX, período em que os norte-americanos consolidaram o seu poderio e controle sobre as atividades econômicas da ilha: dominavam os principais investimentos estrangeiros – serviços elétricos e telefônicos, produção de açúcar, estradas de ferro etc. – e detinham a propriedade de uma parte considerável das terras e minas, além de controlarem as importações e exportações cubanas. Por tudo isso, nessa época, Cuba já era um dos primeiros países latino-americanos em importância para os investimentos externos dos Estados Unidos.

A fim de preservar tamanhos interesses econômicos em Cuba, durante a primeira metade do século XX os Estados Unidos patrocinaram e sustentaram uma sucessão de governos submissos, corruptos e ditatoriais. Um desses governantes, Fulgêncio Batista – um oficial do exército cubano –, após ser derrotado na eleição presidencial de 1952, deu um golpe militar e retomou o poder que já havia ocupado alguns anos antes, instaurando em Cuba uma nova ditadura. Diante desse quadro, alguns grupos da sociedade cubana começaram a considerar e planejar alternativas insurrecionais de tomada do poder. No seio de um desses grupos estava o então jovem advogado recém-formado, Fidel Castro.
Pode-se afirmar que tais circunstâncias históricas geraram os ingredientes que favoreceriam, em seu devido tempo, o amadurecimento de uma alternativa radical de rompimento com um modelo já esgotado de um regime que mesclava autoritarismo e neocolonialismo.

O processo revolucionário cubano teve início propriamente com um simbólico acontecimento ocorrido em 26 de julho de 1953. Na cidade oriental de Santiago, um grupo de insurretos – entre eles Fidel Castro – promoveu um ataque ao Quartel Moncada, visando à tomada de armamentos para dar início à luta revolucionária contra a ditadura de Fulgêncio Batista. A ação foi frustrada e Fidel Castro preso, juntamente com os poucos combatentes que sobreviveram ao contra-ataque. Julgado e condenado a 15 anos de prisão, foi anistiado em 1955 – após dois anos detido –, quando seguiu para o exílio no México. Dessa forma, o assalto ao quartel Moncada foi transformado num símbolo, provocando uma grande reação da ditadura, tendo a sua data inspirado o nome do grupo político de resistência que logo seria constituído por Fidel, o Movimento 26 de Julho.

A luta contra o governo de Batista teria continuidade durante o exílio no México, onde Fidel aglutinaria um grupo que passou a planejar e preparar um desembarque militar em Cuba, grupo do qual fazia parte um jovem médico argentino que Fidel conhecera no exílio, Ernesto Guevara. Essa segunda investida ocorreu em 1956, quando Fidel e mais de 80 companheiros militarmente inexperientes e mal armados partiram para Cuba, rumo à região oriental de Santiago, num iate chamado “Granma” – nome que seria dado mais tarde ao jornal oficial do regime Cubano. Entretanto, logo no seu desembarque os combatentes foram surpreendidos e atacados pelas tropas de Fulgêncio Batista. Os 12 sobreviventes – entre eles Fidel e Raúl Castro e Che Guevara – se refugiaram na Sierra Maestra, de onde passariam nos anos seguintes a organizar uma guerrilha rural, dando início assim a uma terceira etapa da luta pela tomada do poder.

Esse pequeno grupo, que passou a denominar-se Exército Rebelde, iniciou todo um trabalho de organização e de propaganda revolucionária entre os camponeses da região, paralelamente à busca de apoio de outros contingentes urbanos que já lutavam contra a ditadura – trabalhadores, estudantes e intelectuais –, sobretudo através de transmissões da Rádio Rebelde, organizada por Che Guevara para difundir as ações dos guerrilheiros. Aos poucos os rebeldes organizaram verdadeiros “territórios livres” na Sierra Maestra, ajudados por comandos que atuavam nas cidades. Logo após uma fracassada greve geral em 1958, organizada pelos seus opositores, Batista ordenou o início de uma violenta ofensiva final, mobilizando mais de 10 mil soldados bem armados em direção à Sierra Maestra com o propósito de exterminar a guerrilha. Depois de quase de três meses de combate, tal contingente foi derrotado pelos cerca de 300 guerrilheiros, que iniciaram imediatamente uma contraofensiva final da montanha em direção às cidades.

A partir de agosto de 1958, as colunas de Che, Raúl e Fidel Castro passaram a tomar cidades importantes e a incorporar cada vez mais voluntários à causa revolucionária. Percebendo a derrota iminente, diante do avanço da guerrilha e da crescente perda de apoio dos EUA, Fulgêncio Batista renunciou ao governo e fugiu para a República Dominicana em 1º de janeiro de 1959, dia em que Fidel e seus companheiros entraram vitoriosos na cidade de Santiago e que os rebeldes tomaram a capital Havana, diante da rendição incondicional do exército de Batista. Finalmente, após 25 meses de combate desde o desembarque na ilha, os revolucionários conquistaram o poder, pondo fim a uma ditadura cruenta de quase oito anos.

O grande desafio que se colocou a partir daquele reveillon de 1959 foi constituir o governo revolucionário a partir de alianças com múltiplos grupos e setores sociais – inclusive da burguesia – que haviam ajudado a derrotar a ditadura, embora o poder de fato tenha ficado nas mãos do Exército Rebelde e dos líderes do Movimento 26 de Julho. Sem fazer parte direta do novo governo, Fidel Castro se destacava como a principal liderança da revolução. Instaurou-se de imediato no seio do novo poder revolucionário uma acirrada discussão ideológica sobre o caráter da revolução: camponesa ou proletária, nacionalista ou comunista, militarista ou civilista…

As primeiras medidas do governo revolucionário consistiram basicamente na eliminação de toda a estrutura estatal que havia servido à ditadura militar – polícia, parlamento e tribunais especiais; na anulação da Emenda Platt; no combate à corrupção, bem como na redução e controle rígido de preços, impostos e tarifas. Mas a primeira lei de reforma agrária, promulgada ainda em 1959, embora relativamente tímida, iria se tornar um dos pontos centrais de atrito nas relações entre o novo regime cubano e os Estados Unidos, ao expropriar latifúndios de companhias e bancos estrangeiros norte-americanos, responsáveis pelos altíssimos índices de concentração da propriedade da terra em Cuba – muitas terras e usinas açucareiras eram dadas em garantia de empréstimos norte-americanos e posteriormente apropriadas. Os grandes proprietários e as usinas que tiveram as suas terras expropriadas, juntamente com o governo e os capitais estadunidenses, passaram imediatamente a hostilizar, sabotar e boicotar de todas as formas o novo governo de Cuba.

Ao longo do ano de 1960 a tensão entre os dois países se agravou, após a intervenção nas empresas petrolíferas estadunidenses que dominavam o mercado cubano. Diante da negativa dessas companhias de fornecer petróleo a Cuba, o governo revolucionário passou a importar esse produto diretamente da União Soviética. Como represália, o governo dos Estados Unidos cancelou toda a compra de açúcar de Cuba – 700 mil toneladas anuais –, cuja economia dependia quase que exclusivamente da exportação desse produto. Em seguida o governo cubano reagiu nacionalizando sem indenização as principais companhias norte-americanas que funcionavam na ilha, atuando nas áreas de petróleo, eletricidade e telefonia. Em resposta, os Estados Unidos suspenderam todas as exportações para Cuba.

Diante das agressões econômicas sofridas, o governo revolucionário de Cuba foi impelido a buscar novos parceiros comerciais, intensificando suas relações com a União Soviética, para onde passou a exportar a sua safra de açúcar e de onde passou a importar o petróleo, além de outros produtos de que necessitava. Num momento de auge da “guerra fria”, de forte disputa e tensão internacional entre as duas grandes superpotências, em que Cuba sofria um intenso boicote político e econômico dos Estados Unidos – logo praticado também por países europeus e latino-americanos –, as possibilidades de alianças do novo regime cubano viam-se cada vez mais restritas. Nessa conjuntura fechada, a aliança com a União Soviética e o bloco de países socialistas se converteu na alternativa natural – se não única – de sobrevivência da revolução cubana. Como resultado dessa aliança, os Estados Unidos romperam relações diplomáticas com Cuba em janeiro de 1961 e, num discurso em abril do mesmo ano, Fidel declarou o caráter socialista da revolução cubana, mais de dois anos após da tomada do poder.

Não demorou muito para os ataques dos Estados Unidos extrapolarem a esfera meramente econômica, incorporando ações de cunho militar. Em abril de 1961, com o objetivo de derrubar o novo governo – curiosamente no dia seguinte à declaração do caráter socialista da revolução cubana –, os Estados Unidos promoveram um fracassado desembarque militar, na Baia dos Porcos, de um comando de quase 1.400 exilados cubanos treinados pela CIA, com o apoio das forças aéreas e navais norte-americanas. Em seguida ao fracasso dessa tentativa de invasão militar, os Estados Unidos decretaram um embargo comercial total à ilha em setembro de 1961, vigente até os dias de hoje. No ano seguinte, diante da forte pressão dos Estados Unidos sobre os demais países membros, Cuba é expulsa da Organização dos Estados Americanos (OEA).

O aprofundamento da crise nas relações com os Estados Unidos e seus aliados, levou o governo cubano a se preocupar ainda mais com a sua defesa. Valendo-se das suas novas alianças, Cuba permite a instalação em seu território de bases de lançamento de mísseis soviéticos, em troca de proteção diante das constantes ameaças e tentativas de invasão da ilha. Ao descobrirem essas bases em 1962, os Estados Unidos decretaram um bloqueio naval contra Cuba, ameaçando-a com uma intervenção militar. Talvez esse tenha sido o ponto máximo de acirramento da guerra fria, momento em que o mundo esteve bastante próximo da deflagração de uma guerra nuclear – tendo Cuba como pivô –, quando navios soviéticos que seguiam para Cuba foram ameaçados pela marinha norte-americana.

Esse episódio ficou conhecido como a “crise dos mísseis”, superada somente após um acordo entre as superpotências, segundo o qual a União Soviética retiraria os mísseis de Cuba e, em troca, os Estados Unidos não invadiriam a ilha.

Assim, mesmo diante das mais fortes adversidades, Cuba completou seus primeiros anos revolucionários com a proposta de construção do socialismo. Externamente inserida e favorecida pela planificação econômica do bloco socialista – o intercâmbio comercial com a comunidade socialista chegou ao índice médio de 75% nas décadas seguintes –, internamente buscou consolidar paulatinamente a edificação de uma nova sociedade, logrando avanços consideráveis nos índices de desenvolvimento econômico e social, com destaque para os campos da educação e da saúde, fato reconhecido até mesmo pelos mais ferrenhos inimigos do socialismo.

Contudo, no momento em que os cubanos usufruíam de tal desenvolvimento, a comunidade dos países socialistas entrou em crise e logo se desfez, com efeitos imediatos e nefastos para Cuba. Era o começo do fim da guerra fria. A especialização econômica com a qual tanto havia se beneficiado, notadamente dependente da planificação socialista, a partir do final da década de 1980 passou a representar dramaticamente a maior ameaça ao regime castrista, agravada pelo isolamento político e, sobretudo, pela permanência do embargo econômico norte-americano contra a ilha.

Em suma, o desdobramento e a projeção internacional da Revolução Cubana, que ora completa cinquenta anos, são resultado direto do contexto da “guerra fria” e de um mundo política e ideologicamente bipolarizado, onde Cuba se tornou o pivô de uma disputa acirrada entre as potências líderes dos blocos capitalista e socialista, como um modelo, por um lado, a ser evitado e aniquilado e, por outro, a ser defendido e exportado. Nesse sentido, a projeção e a significação mundial da Revolução Cubana são decorrência direta da radicalização da guerra fria cujos efeitos foram agravados pelo choque de interesses entre o governo revolucionário cubano e a principal potência do mundo capitalista. Seu significado vai, assim, muitíssimo além da natural repercussão histórica que teria um simples movimento revolucionário guerrilheiro que ousou derrubar, em meados do século XX, numa ilha caribenha, uma ditadura corrupta e subserviente aos interesses econômicos norte-americanos.

Eugênio Rezende de Carvalho é doutor em História Social e das Ideias pela Universidade de Brasília e professor da Universidade Federal de Goiás, onde exerce a docência e desenvolve pesquisas na área de História Latino-americana. É autor dos livros Nossa América: a utopia de um novo mundo (São Paulo: Anita Garibaldi, 2001) e América para a humanidade: o americanismo universalista de José Martí (Goiânia: UFG, 2003).

EDIÇÃO 100, MAR/ABR, 2009, PÁGINAS 105, 106, 108, 109