Pois, com o vício aturado de ler até bula de remédio, depois de setenta outubros vividos, mal ou bem; adquiri por conta própria a mania da História descobrindo causa e efeito das coisas: das mais simples até as mais complicadas, como a mudança climática e a Crise financeira mundial. Gosto de parecer um modesto adepto do “ad hoc” Zen bubuia (inventado, sob medida, para velhos pajés aposentados), embora tenha eu um coração ardente de cabano suspicaz (que anda agora dando saltos e a me fazer mais sossegado).

      Por exemplo, a sombra das mangueiras na ensolarada cidade de Belém do grão Pará é fruto marginal do caminho das Índias (não da novela, é claro) a partir das primeiras plantas dos jesuitas no sítio do Tanque, na Bahia. Já pensaram quantas mangueiras, jaqueiras, árvores de fruta pão, etc.; sairam do horto dos padres para amenizar a canícula tropical no país devastado do paubrasil? Que nem do cio e parição das vacas sagradas do Gânges vieram-nos, por desvio cultural; o churrasco de carne de búfalo e o espetáculo de rodeio a risco de peões malucos ignorantes das virtudes da meditação Quem sobreviveQuem sobrevivee da renúncia à fama; pinotes furiosos de touros zebus endiabrados descendem de ruminantes pacatos que engarrafam o trânsito da babel hindu… Por causa dos temperos das Índias orientais, por acaso, descobriram (sic) aquelas índias que viviam nuas em pelo nas Índias ocidentais.
 
      Esta história de ligar lé com cré, é uma inconveniência terrível ao relacionamento social e político, sobretudo, perigo permanente para donos de verdades canônicas flagrados em erros de avaliação de origem e perspectiva. Conforme ensinava o mestre José Honório na “Teoria da História do Brasil”: a história não é para os mortos, mas para os vivos… 
 
      Quem sobrevive sempre tem razão: ontem, brutos conquistadores do rio das Amazonas cantaram vitória sobre cinzas quentes de malocas assassinadas; hoje – depois que a esperança venceu o medo –, descendentes dos cabanos donos de seus próprios votos livres e independentes no estado de direito democrátivo; tem mais razão ainda ao recuperar a terra dos ancestrais e o tempo perdidos na voragem da Colonização.

      Devo esta chave mestra para inclusão social à minha professora normalista Alda Natália Gonçalves Santos, linda morena filha de imigrantes da ilha da Madeira (Portugal) mandada servir em Ponta de Pedras, terror de saia nas sabatinas de tabuada. A moça estava novinha em folha, mandada à famosa ilha grande da boca do Amazonas fluviomarinho, em precária canoa a vela. Ato autoritário do governo esclarecido no bojo da revolução de 1930, pelo Interventor federal Magalhães Barata, um notável tenentista paraense amado pelo povão sem pai e mãe e odiado pela oligarquia arruinada da belle époque da Borracha.

      Por certo, Barata como Vargas foi um personagem ambíguo oscilando na fronteira entre a justiça social e o fascismo. Mas, no capítulo do ensino público ele foi precursor de Hugo Chávez e Evo Morales na Panamazônia no combate aos males do analfabetismo. Naquela época na ilha do Marajó, havia doutor-fazendeiro diplomado e viajado na Europa que, de cara limpa e caso pensado, intimidava prefeito a fechar escolinha próxima a fazenda. Para que, aprendendo a ler e escrever, os filhos dos vaqueiros não largassem o campo para ir procurar serviço na cidade. Menos mal do que mais antigamente, quando para impedir a fuga dos escravos imperava a tortura no “viramundo” para castigar o fugitivo recapturado dos tantos mocambos (quilombos) da ilha, como nos mostra o Museu do Marajó – www.museudomarajo.com.br – na ala de história da escravatura.

      Sem a minha mestra das primeiras letras eu não poderia jamais ter me deslumbrado um dia com o romance “Marajó”, de Dalcídio Jurandir e logo depois o livro-reportagem “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Que me abriram os olhos para as grandezas e misérias do Brasil profundo, da Amazônia e ao Nordeste. Com que também pude, por conseguinte; entender o espírito santo e burlão ao mesmo tempo do antropófago cultural Oswald de Andrade, de quem às vezes empresto o tacape literário. Até a grata revelação de “Grande Sertão: Veredas”, do mago das grandes distâncias e solidões geográficas, Guimarães Rosa. E ler em língua francesa, com nó preso na garganta, o revolucionário caderno poético do retorno ao país natal, do pai da negritude Aimé Cesaire, monarca intelecutal da Martinica.

      Este estúrdio percurso de intelecutal da maré foi muito menos do que eu ambicionava e muito mais do que eu merecia… Ah! Sim, sem esquecer que minha odisséia pessoal (depois daqueles dias de sol e chuva em Ponta de Pedras, com Dalcídio e Euclides) não terminou entre malária e esquecimento sem antes uma imprevista passagem pela vetusta Casa de Rio Branco. Onde encontrei Guimarães Rosa entre tratados de limites e acordos internacionais nas estantes da biblioteca do Itamaraty (Brasília) e pegadas de Euclides da Cunha nas demarcações da Amazônia no arquivo da Comissão Demarcadora de Limites (Belém).

      Eu era um pirralho ribeirinho, muito perguntador, que abriu os olhos e ensaiou os primeiros passos num sugestivo bairrozinho às ilhargas do Curro municipal (matadouro público) confinado entre a varja e a vila de Itaguari (Ponta de Pedras), chamado o Fim do Mundo. Eu queria saber quem somos nós neste mundo, donde viemos e aonde vamos… Meu pai descendia de índios, minha mãe de europeus: a dialética histórica hospedou-se em nossa modesta casa, na terceira rua da vila, junto com a professora Alda a mando do prefeito (meu pai era servidor público). Era hospedar, gratuitamente, a moça ou perder o emprego… A família saiu ganhando e a vila ganhou uma mestra de gerações que se tornou, ela também mês de novos marajoaras. Se me entendem bem de que sorte de antropofagia cultural estou falando e lerem, novamente, o “Manifesto Antrppofágico” (1928) no coincidente Centenário de morte de Euclides da Cunha e de nascimento de Dalcídio Jurandir. 
 
     Explico: com a insubordinação dos jovens oficiais do Exército, coincidente ao primeiro centenário da Independência, aluiram-se as bases oligárquicas da república café com leite. Oito anos mais tarde com adesão de líderes trabalhadores e do povo, enterrou-se a velha “república” (mera cotinuação do império moribundo). Agora já se vai uma geração depois da Constituição de 1988, a emancipação do povo brasileiro continua a caminhar: a plenitude democrática não está tão longe… E a releitura de Euclides da Cunha e de Dalcídio Jurandir ensina a não propalar mentiras, a não inventar estória. Confiar na gente sem fantasia de heróis de pés de barro: o sertanejo é sobretudo um forte e a criaturada grande de Dalcídio não pediu licença a ninguém para ser brasileira de parte inteira. Embora tenha tido que comprar, com o próprio suor, lágrimas e sangue; o direito de sair da margem para entrar no cerne da História, com exemplo na furiosa Cabanagem de 1835 e hora a democracia participativa do século 21. Que resta sempre a inventar.