Quem são os animais?
Muita gente propala com orgulho que somos a espécie triunfante no campeonato evolutivo. Da gosma original emergimos. Dominamos. Inventar ferramentas, armas, armadilhas e arapucas nos renderam obediência e medo. Capturamos, matamos e devoramos. Disto não excluímos nossos iguais. Outros, convencemos, domesticamos, iludimos com acenos de proteção e amizade. Pudemos montar, por a trabalhar, tosquiar, submeter, até os mais cordatos entre nós. Eficientes, dividimo-nos em facções e seitas. O espertalhão do dia empurra os demais para suas pugnas, muitas vezes egoístas, como se defendessem eles sua própria causa. Tive um professor na Escola Técnica Federal de Goiás, que não suportava os maus tratos que esses seres superiores dedicavam aos chamados “animais”. Com seu corpanzil e barbicha imaginária de Quixote, era o professor Wilson Natal e Silva. O professor Wilson tinha voz forte e gestos de gigante quando defendia os animais aprisionados ou maltratados. Admoestava com vigor profético os carroceiros que espancavam seus equinos. Ia ao então Mercado Central, onde hoje se levanta um edifício grotesco de nome anglo-agregado, visitava as incipientes lojas de escambo de pássaros e pequenos mamíferos, e diante dos olhos alarmados dos proprietários e dos passantes, abria portas de jaulas e gaiolas libertando aqueles bichos vítimas dos afetos humanos que os queriam pertinho, presos, acorrentados, privados de seu mundo inculpável. Vociferava o “Barbicha” e exigia respeito para com os irmãos considerados inferiores. Nunca soube que credo seguia, que utopia almejava, mas com ele aprendi a primeira lição da dúvida sobre ser o homem o invento superior da criação ou da evolução, e não um bicho em busca de sua própria alma. Já nos anos sessenta preocupava-se com delicadezas incabíveis, como esta do respeito aos animais. Imaginava e desenhava vários projetos para melhorar a vida do homem. Devaneios que nunca chegaram à execução, por ausência de meios ou porque os objetivos não acariciavam a ganância humana. Quase surdo, falava alto, e reiterava: – Tá ouvindo, seu moço! Talvez fosse um São Francisco malsucedido como o Povorello de Assis. Talvez fosse um Cristo das criaturas de pelos e penas. Incompreendido, risível nos corredores ou salas de reuniões da escola. Recordo sua figura e sua voz de abruptos arrancos, quando vejo pelas ruas da cidade umas carroças usadas pelos catadores de papeis e detritos. Vão puxadas pelas próprias pessoas ou, como mais sucede, por ossuários de eqüinos. Além dos dejetos que recolhem das ruas, apinham no estranho veículo, similares, o condutor, a mulher, a récua esmolambada de filhos, pelo menos dois cachorros… E tome chicotada! O velho e combalido animal, sugado até o osso, esperneia, arqueja sob o peso exagerado. O condutor que exerce sobre ele seu único possível poder, xinga, amaldiçoa e desaba chicotadas. Reunindo forças que só a extrema dor ou a morte conferem, espumando sangue pelas ventas, o bicho arranca mais uma vez, para orgulho do condutor, gritaria dos meninos e riso sem graça dos passantes.