O vôo da insanidade
A solidão tem um preço e uma recompensa – sendo que o preço a pagar pode trazer nele próprio o prêmio: a inocência de nada sabermos de tudo de bom ou mau que nos aconteça, ou que virá de nós mesmos. Pois a depender do modo gastemos o que recebemos, o que vem como fortuna pode acabar em infortúnio. Tantas histórias sabemos de gente que fez de sua sorte o seu azar. Pensar que o passado feliz pode nos salvar, ou a sua contínua lembrança, pode ser um auto-engano. “O pensamento é a memória do que se foi”, e não pode nos livrar das agruras ou da glória do presente. Cabe a cada um escolher em que estação do céu ou do inferno quer viver.
Uma anedota dá a medida de como funciona a mente humana: dois psiquiatras se encontram na rua, e um dá bom dia ao outro. Daí a instantes, cada um se pergunta: “o que ele quis dizer com isto?”. Quando um simples bom dia é motivo de dúvida, desconfiança e hostilidade, sentimentos partidos de quem conhece e sejam curadores da mente, é de duvidar da “normalidade” da nossa alardeada celebrada razão cartesiana. A não ser que sejamos possuídos por tempestades de lembranças e memórias de um filme que viva a rebobinar a si mesmo, não conseguimos nos libertar da velha tirania da mente agitada e compulsiva.
Jean Genet, o escritor, expressou com grande beleza a bem-aventurança e o bem-estar de quem consegue se colocar em profunda solidão: “Entro em mim mesmo – por alguns instantes, estarei a salvo do furor dos homens”. Na solidão voltamos à paz (ausência de medo) dos devaneios de quando fomos crianças. Gastón Bachelard o diz: “Quando o mundo humano deixa a criança em paz, ela se sente filha do cosmo. E assim, em sua solidão, a partir do momento em que se torna mestra de seus devaneios, a criança conhece a felicidade de sonhar aquela que mais tarde será a felicidade dos poetas”.
A solidão só vem como opressivo peso quando é neurótica, compulsiva, estéril e intolerante aos fluxos dos movimentos naturais da vida. Assim como a dor da infelicidade só se torna destrutiva quando é vivida como sofrimento cego. Uma canção popular, acho que da Banda Blitz, na voz de Evandro Mesquita, diz: “Estou há dois passos do paraíso”. Eu digo: a dois passos do paraíso toda pessoa está – só que poucos sabem disto. Talvez o saibam as crianças em devaneio, certos poetas, e alguns místicos.
Com a palavra, G. Bachelard: “Quando sonha, em sua solidão, a criança conhece uma existência que não tem limites. Seu devaneio não era simplesmente uma fantasia de fuga. Era um devaneio de vôo”. É triste constatar que a maioria das pessoas perdeu esta possibilidade de pegar um lugar no vôo da solidão criativa. Até mesmo porque elas próprias destruíram, com suas emoções negativas, e sentimentos tóxicos e daninhos, toda possibilidade de merecer tal graça. E assim se vêem desterradas da pátria da felicidade, sendo criaturas exiladas dentro delas próprias. Esta vem a ser a dimensão de um sofrimento para o qual não existe alívio, pois é a dolorosa perda da pessoa que se perdeu de sua criança dentro de si mesma.
O contrário deste trágico e infausto desencontro – ou exílio interior – foi cantado pelo poeta Charles Plisnier: “Ah! Desde que eu consinta,/minha infância, aí está você, tão viva, tão presente. Firmamento de vidro azul/árvore de folha e neve/rio que corre, para onde estamos indo?”. Reencontrar o rio perdido da infância não ferida é uma bem-aventurança possível a todo ente humano que se encontre ainda vivo. Mais difícil (ou impossível) será para os que já morreram antes de sua morte. Sim, podemos reencontrar a dimensão do esplendor e do maravilhoso – “tempo em que o medo se chamou jamais”. Podemos tomar um lugar no vôo do devaneio e da liberdade. Tempo que foi negado à menina Penélope, que não sabia da insanidade, nem foi levada ao vôo da liberdade.
Brasigóis Felício, é goiano, nasceu em 1950. Poeta, contista, romancista, crítico literário e crítico de arte. Tem 36 livros publicados entre obras de poesia, contos, romances, crônicas e críticas literárias.