Por Sérgio Barroso*

Por Sérgio Barroso*

De viés mais teórico, o artigo enfoca a grande crise capitalista dos nossos dias: a) revendo aspectos centrais da teoria ciclo-crise em Marx; b) sublinha igualmente o caráter financeiro na origem da crise atual, em consonância com o padrão de acumulação contemporâneo marcado pela “financeirização da riqueza” ou pela “finança mundializada”, ou ainda pela “financeirização com sistema de poder”, no capitalismo contemporâneo [1]; e, c) levanta reflexões sobre os traços das crises financeiras que levaram a bancarrota o padrão neoliberal de acumulação.

Em Marx, a valorização do valor (da mais-valia) como objetivo central da produção capitalista resulta, do ponto de vista sistêmico, sempre em superacumulação, fundamentalmente superprodução de capital (e também de mercadorias) – capital compreendendo máquinas, equipamentos, instalações, matérias-primas e ativos financeiros. Em seu móvel de acumular por acumular, o capital jamais se interessa pelas “necessidades sociais” das massas trabalhadoras. Portanto, são utópicas as interpretações das crises como sendo de “subconsumo das massas” [2].

Além de superprodução e superacumulação, devemos insistir em que a desproporção entre os departamentos e a lei de tendência de queda da taxa de lucro são igualmente fenômenos expressivos da dinâmica da crise. Crises que, conforme Marx, em última instância tem como determinação originária o antagonismo irresoluto: apropriação cada vez mais privada X produção cada vez mais expansivamente social.

Claro que, esta última formulação – espécie de lei das assimetrias do regime do capital – não pode eludir a problemática do caráter instável do investimento capitalista (em bens de produção). De fato, é a decisão reclamada pela ideia do burguês de um auge naquele ciclo que conduz a “parada” na continuidade do investimento, cuja sobreacumulação pretérita tornara irreversível a superprodução. Teorização que está subentendida em Marx, entretanto desenvolvida por Keynes e sua “demanda efetiva” [3].

Inobstante, para Marx, a conseqüência decisiva do desenvolvimento capitalista converge para o que denomina de “moderno sistema de crédito”. Ou seja, na medida em que: (i) a concentração (e centralização|) de capitais; e, (ii) o moderno sistema de crédito são por ele considerados as principais “alavancas da acumulação capitalista”, ali localiza os pressupostos sobre o impulso à superacumulação de capital tendo por base a dinâmica permanente do capital financeiro (capital-dinheiro ou capital monetário). Noutras palavras:

“Se o sistema de crédito é o propulsor principal da superprodução e da especulação excessiva… (…) acelera o desenvolvimento material das forças produtivas e a formação do mercado mundial… (…) Ao mesmo tempo, o crédito acelera as erupções violentas dessa contradição, as crises… (…) levando a um sistema puro e gigantesco de especulação e jogo” (Marx, O Capital, Livro 3) [4].

De outra parte, discorrendo Marx sobre o movimento do capital fictício, simultaneamente desvela já então um aspecto estrutural (e contemporâneo!) que integra as crises financeiras:

“Esse capital fictício reduz-se enormemente nas crises, e em conseqüência o poder dos respectivos aos proprietários de obter com ele no mercado. A baixa nominal desses valores mobiliários no boletim da Bolsa não tem relação com o capital real que representam, mas tem muito que ver com a solvência do proprietário” [5].

Importa notar que, em definições mais precisas, (i) Marx alude a dois tipos de capital financeiro: o portador de juros e o fictício; (ii) o capital fictício consistindo em títulos negociáveis no futuro (para ele composto por ações ordinárias das Bolsas, títulos públicos e a própria moeda de crédito (bancária)[6].

Financeirização e crise global

Consistem em fatos históricos reconhecidos e fartamente analisados a regulamentação do comércio e das finanças internacionais, institucionalizada pelo sistema de Bretton Woods (1944), e também por restrições ao livre movimento de capitais. Gestada pela desregulamentação e liberalização dos sistemas financeiros nacionais, a partir da crise capitalista dos anos 70 passados, forjou-se, a partir dos EUA, um padrão de acumulação baseado num supermonopólio e hiper-especulação das finanças.

O que significou, para François Chesnais [7], o “predomínio financeiro puro” do ressurgimento das formas do “capital-dinheiro concentrado”, a manejar as alavancas de controle do sistema capitalista mundial, o que também “acentuou o processo de financeirização crescente dos grupos industriais”. Conforme Peter Gowan, a estratégia original do grande capital financeiro norte-americano e britânico, impunha a inflação baixa para manter a função da moeda “como um padrão fixo de valor de acordo com os interesses do capital-dinheiro”, tendo sido esta a “verdadeira base para a inauguração do neoliberalismo do Atlântico” [8].

Vê-se que a globalização financeira adveio da liberalização do movimento de capitais e transposição de fronteiras econômicas. Cada vez mais intensa, a instabilidade do sistema tende a ser permanente, obstando a taxa de investimento, o que pode reduzir o ritmo da acumulação e do crescimento econômico no centro capitalista e em parte da periferia do sistema. Simultaneamente, um padrão sistêmico esse neoliberal que determinou as últimas décadas “como as mais tumultuosas da história monetária internacional, em termos de número, escopo e gravidade das crises financeiras” – enfatizam Kindlerberger e Aliber [9].

Assim, as crises financeiras desse estágio do capitalismo monopolista – e fortemente oligopolizado do ponto de vista do poder financeiro -, mantêm a mesma lógica – numa vertente fortemente influenciada pelo caráter fictício da acumulação financeira – da crise de superprodução de capitais, refletindo o excesso de valorização do capital em relação à determinada taxa de juros; mas exacerbam-se a rapidez da propagação e recorrência. O que significa, por sua vez, ser decorrente da quantidade das transações com ativos financeiros, cada vez mais abrangentes, se propagando mais rapidamente pelos mercados nacionais e alcançando facilmente regiões inteiras ou mesmo o mundo.

Tendências depressivas [10]: impossível manter tal padrão

Na crise financeira que eclodiu em agosto de 2007, nos EUA, a orgia especulativa foi ampliada pelo crédito abundante – insuflando maior liquidez e euforia -, à baixíssima taxa de juros, e imensa alavancagem derivativa por sobre as hipotecas ''subprime''. [Note-se então que, o capital, neste preciso caso, encontra-se nas hipotecas (títulos), como capital portador de juros – e não em outro lugar]. Ademais, tudo isso passou abrigado pela burla do descontrole regulatório do sistema bancário internacional e pela absoluta falência das agências de “risco”. Chegou-se à anarquia completa de não se ter a mínima idéia da precificação de ativos “podres” e generalizadamente contaminadores.

O resultado? “Lamento dizê-lo, mas apostaria que haverá depressão e que durará alguns anos. Estamos entrando em depressão”, sentenciou Eric Hobsbawm, o historiador que destrinchou as duas grandes e depressões (1873-96 e 1929-33) [11].

É evidente que esse padrão “financeirizado” de acumulação do capital não sobreviverá mais. Questão bem distinta do “fim do capitalismo”.
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NOTAS

[1] As formulações podem ser encontradas, seqüencialmente, em: “Financeirização global”, de J. C. S. Braga, in: Poder e dinheiro. Uma economia política da globalização (Tavares, M e Fiori, J. (orgs.), Vozes, 1997, 2ª edição; “A finança mundializada”, de F. Chesnais (org.), Boitempo, 2005; “Capitalismo contemporâneo e a nova Luta pelo socialismo”, por R. Rabelo, p. 216, Anita Garibaldi, 2008.

[2] É só constatar que, na eclosão da crise atual, a explosão do consumo norte-americano estava lastreada na especulação de hipotecas (títulos que portam juros) subprime, na construção frenética de imóveis, particularmente – não havia subconsumo algum Para uma crítica poderosa das teorias do “subconsumo”, ver especialmente: “A crise de 1929 e o debate marxista sobre a teoria da crise”, de E. Altvater, in: “História do marxismo”, Hobsbawm, E. (org.), v. 8, especialmente pp. 95-133, Paz e Terra, 1987, 2ª edição.

[3] Ver a discussão mais ampla apresentada por Marx, Michal Kalecki, Conceição Tavares, Luiz Belluzzo, Paulo Baltar, Mario Possas, José C. Braga, em “A contradição em processo. O capitalismo e suas crises”, de Frderico Mazzuccheli, Unicamp, 2004, 2ª edição.

[4] Ver: “O Capital”, volume 5, p. 510, Civilização Brasileira, s/data.

[5] Antes, afirmara: “com o juro ascendente cai o preço deles [dos papéis]. O que também provoca essa queda é a escassez geral de crédito, que força os detentores a lançarem-se em massa no mercado para obter dinheiro” (Livro 3, volume 5, pp. 566-7).

[6] Ver a discussão em “A transformação do capital financeiro”, de Robert Guttmann, Campinas, Economia e Sociedade, nº 7, dez./1996. Em meados de 2008 divulgou-se que a relação entre a riqueza (fictícia) nocional financeira (aquela que é alavancada e derivativa; pode chegar a valer de acordo como que valha no futuro câmbio ou juros) seria de US$ 350 trilhões, enquanto o PIB (Produto Interno Bruto) dos países do planeta alcançaria US$ 56 trilhões [números redondos e aproximados].

[7] Ver: “Da noção de imperialismo e da análise de Marx do capitalismo: previsões da crise”, de F. Chesnais, in: “O Incontornável Marx”, p. 64, Nóvoa, J. (org), Salvador/São Paulo, Unesp/Edufba, 2007.

[8] Ver: “A roleta global. Uma aposta faustiana de Washington para a dominação do mundo”, p. 81, Rio de Janeiro, Record, 2003.

[9] Em: “A reconstrução do sistema financeiro global”, de Martin Wolf, cap. “Crises financeiras na era da globalização”, p. 31, Rio de Janeiro, Elsevier/Campus, 2009.

[10] Estima a OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) em 2009 a queda do PIB (Produto Interno Bruto) em seu âmbito seria em -4,3%; -6,6% no Japão; inesperados -5,6% na da Rússia, e -0,3% para o Brasil (“Folha de S. Paulo”, 1/4/2009, p. B-10). Segundo as últimas previsões do FMI, a economia mundial negativaria entre 0,5% a 1% em 2009 em uma média anual. Os EUA caíram em -6,5% no último trimestre de 2008; Em fevereiro se foram outros 651 mil empregos; em fevereiro a taxa de desemprego oficial foi 8,1%, da PEA, a maior desde dezembro de 1983.

[11] Em: “Hobsbawm: ‘Além de injusto, o mercado absoluto é inviável’”, entrevista a Martin Granovsky, de “Pagina 12”, traduzido em vermelho.org. br (30/3/2009).

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*Artigo ampliado do publicado originalmente em: Jornal dos Economistas (órgão do CORECON, Conselho Regional de Economia – RJ e do SINDECON, Sindicato dos Economistas – RJ), nº 237, abril de 2009.

*Médico, doutorando em economia Social e do Trabalho (Unicamp, diretor de Estudos e Pesquisas da Fundação Maurício Grabois.