Animal monstrosum
A mucura ou gambá (Didelphis) foi o primeiro animal da América do Sul descrito por um viajante europeu: “… um animal monstruoso, com cara de raposa, rabo de cercopiteco, orelhas de morcego, mãos de gente e pés de macaco, que onde vai leva os filhos numa bolsa colada à barriga…”. Esse exemplar foi capturado por marinheiros da nau de Vicente Pinzón, em fevereiro de 1500, provavelmente, na baía do Marajó. Pelo mesmo tempo os homens do mar aprisionaram 36 índios da ilha Marinatambalo [Marajó] para levar como escravos junto à infeliz mocura da biogeografia sul-americana. Começa assim, de mau passo, a história da Amazônia a poucos meses antes do descobrimento do Brasil.
O olhar do velho mundo sobre o novo ainda carece de melhores esclarecimentos, mesmo assim a realidade padece sob arrogância e preconceito com título de Civilização contra a barbárie. O descobrimento tardio das regiões amazônicas coloca em ângulos opostos populações tradicionais e sociedades nacionais nos países amazônicos, agravado por constrangimentos externos em nome de falsas impressões como o tal “pulmão do planeta”, de fresca memória. Todo mundo se investe no direito de falar sobre o que mal conhece, enquanto quem deveria falar – 25 milhões de habitantes das regiões amazônicas – também eles perderam, em grande parte, a noção do tempo e do espaço onde vivem dentre mil e uma contradições determinadas pelo colonialismo e suas atuais consequências.
Na fala caboca, quando alguém não quer dizer a verdade, jura “pela fé da mucura”. Ou seja, adverte o ouvinte com o prudente acredite se quiser… A mucura, portanto, é bicho interessante na civilização amazônica como a loba foi nos primórdios de Roma. Ao contrário do aleitamento pela loba romana dos gêmeos inimigos, Remo e Rômulo; a mucura amazônica serviu e serve ainda de alimento a filhos de cabocos necessitados de proteínas. No entanto, não há reconhecimento ao animal por seus préstimos e nem a lebrança da ancestral que acompanhou o triste destino dos primeiros “negros da terra” arrancados da América do Sul. Ao contrário, a mucura passou a ser vista como uma praga, perseguida a tiros e pelos cachorros como incorrigível ladra de galinheiro. Nem mesmo a ciência se interessou pela mucura, embora os cabocos vivam às turras com o bicho não é raro encontrar acidentes geográficos assinalados com o nome intrigante de quem foi visto de tão mau olhar. Companheira de viagem de homens, também eles, detestáveis.
Vicente Pinzón, piloto de Cristóvão Colombo, foi o primeiro europeu que pôs os olhos sobre a paisagem chã da foz do rio Amazonas, em 1500, três meses antes de Pedro Álvares Cabral descobrir o Brasil. Há controvérsias, pois dois anos antes do castelhano, o português Duarte Pacheco Pereira, astrônomo do rei dom Manuel I, teria feito medições cartográficas secretas no Pará, braço meridional do Amazonas; para determinar a linha divisória entre Portugal e Espanha, segundo o tratado de Tordesilhas (1494) do qual ele fora conselheiro dos negociadores lusos, a fim de preparar a missão comercial ao marajá de Calicut (Índia) e descobrir o Brasil como ponto intermediário da carreiras das Índias após o sucesso de Vasco da Gama.
O segredo das antigas navegações, conforme Jaime Cortesão, encoberto pelo Mar Tenebroso era guardado a sete chaves: a corrente equatorial marinha, que atravessa o Atlântico e se biparte a norte e sul no litoral do Brasil para virar rumo ao oceano Índico pelo Cabo da Boa Esperança. As famosas “calmarias” escondiam, na verdade; o caminho das Índias pelo desvio da América do Sul. A viagem secreta de Duarte Pacheco Pereira ao Pará, em 1498, portanto, é consistente sob ótica geográfica. Porém o fato permanece encoberto pela fidelidade colonial, como de resto muita coisa mais, fruto da ignorância dos trópicos no exemplo emblematico do animal monstruoso.
O Grão Pará (Amazônia) teria sido achado dentro do quinhão hispânico, aquém do contérmino da partilha ibérica a 370 léguas a oeste do arquipélago de Cabo Verde. A fronteira luso-hispânica ficava à altura donde hoje está a cidade de Belém do Pará passando ao sul sobre Laguna (Santa Catarina) e a norte tangente ao cabo Maguari, na ilha do Marajó. Esta suposta “barreira do mar”, na verdade foi barreira do rio aos interesses luso-brasileiros que só abriu passagem com a paz dos Nheengaíbas de 27 de agosto de 1650; depois de 36 anos de peleja desde a tomada de Gurupá aos holandeses.
Não obstante a poderosa flotilha do capitão Pedro Teixeira, movida a 1200 remos e arcos tupinambás ter passado de ida e volta ao Alto Amazonas até Quito (Equador), entre 1637-1639, o fato é que canoas de drogas do sertão raramente passavam sem pilhagem, assalto e perdas no antigo território insular dos Nheengaíbas. Três tentativas militares falharam com reforço de arqueiros indígenas recrutados em Cametá. Pela força não foi possível ocupar o “rio das amazonas” para além da linha de Tordesilhas, supostamente, uma diagonal sobre a baía do Marajó. De fato, pela resistência marajoara provocada, segundo o governador Oviedo, de Hispanhiola; pela lembrança do sequestro dos 36 índios de Marinatambalo; jamais os colonizadores tiveram vida fácil no estuário amazônico. O velho ódio hereditário entre índios das ilhas e da terra-firme era explorado pelos estrangeiros, conforme seus próprios conflitos e interesses na Europa.
Eis nos princípios o mundo amazônico, babel tapuia homologada pelo Papa aragonês Alexandre VI aos Reis Católicos. Ficava dela ao rei de Portugal a costa meridional do Pará até o Maranhão pela costa do mar. À margem de Tordesilhas e da bula papal, entretando, a geopolitica era outra. Fosse pela cobiça da França, Holanda e Grã-Bretanha, mas principalmente pela demanda da nação Tupinambá em busca da mítica Terra sem mal, com que vinha de sul para norte, através do litoral, conquistanto a Tapuya tetama (terra dos Tapuias).
O mare nostrum amazônico separou o extremo-norte brasílico pelas ondas e correntezas do Pará-Tocantins, na baía do Marajó. Fronteira inter-étnica de intenso conflito e trocas culturais, sobretudo na região das Ilhas, onde “nheengaíbas” [marajoaras] defendiam o território ancestral e tupinambás forçavam passagem para dentro do rio Amazonas seduzidos pelo paraíso fugidio ou o arakyxaua [Araquiçáua, literalmente, “lugar onde o sol ata rede de dormir”, o poente]. Aí também, do final do século XVI em diante com a União Ibérica (1580-1640) a fronteira de Tordesilhas.
Entre achar e descobrir vai uma diferença: descobre-se o que está oculto e acha-se o que se procura. Vai daí também que Pinzón achou a ilha Marinatambalo [Marajó] na foz do rio Santa María de La Mar Dulce [Amazonas], mas a não descobriu por pensar que caísse na porção portuguesa. Enquanto que Francisco de Orellana, sem duvidar a quem pertencia a terra, descobriu o rio das Amazonas (1542). Aqui também há controvérsia, pois o mameluco português Diogo Nunes, em 1538, a serviço da expedição do espanhol Alonso Mercadillo ao rio Marañón ou Alto Amazonas informa ter topado remanescentes de uma formidável expedição de 14 mil índios tupinambás, em marcha durante 12 anos desde Pernambuco.
Entre a partida de Pernambuco sertão adentro até a chegada ao Peru, no Alto Amazonas, esta longa marcha indígena (cf. Nelson Papavero et al. “O Novo Éden”), referida em carta de Diogo Nunes ao rei dom João III de Portugal, não poderia contornar a via aquática do Tocantins abaixo e do Amazonas acima, evidentemente. O problema da maioria clássica dos historiadores luso-brasileiros é que eles, dando fé demasiadamente às fontes escritas não conhecem bastante a geografia da região. Resta um abismo – animal monstruoso –, entre quem vive o chão da realidade e quem habita o céu de bibliotecas e arquivos mortos. Além disto, ainda há a proverbial cegueira citada pelo padre Antônio Vieira no “Sermão ao Peixes”, a qual vendo a paisagem o viajante não sabe o lugar onde pisa. Por outra parte:
Aniversário cabano
Estudar o rio do tempo
É mergulhar em si mesmo.
Mergulhar em si mesmo
É se encontrar no mundo.
Encontrar-se no mundo
É estar no presente
Compreender o passado
E inventar o futuro.
No mês de janeiro em Belém d'Amazônia
Ninguém comemora o dia 7
Mas lembra em silêncio profundo
Aquele distante dia 7 de janeiro
Guerreiros tupinambás em armas
Levantados pelo cacique Guamiaba
Suicidas temerários
A vingar irmãos mortos e cativos
Loucos de ira no assalto ao forte
Do Castelo traidor
De arco e flecha a peito nu
Contra muro de rocha e canhão.
Dois séculos depois
Do primeiro banho de sangue
Do nascimento da Amazônia
O batismo de fogo
De 7 de janeiro de 1835
A fúria popular dos maltratados
E escravizados filhos de Ajuricaba
Descendentes de Guaiamiaba
Dos Nheengaíbas,
Negros escravos fugidos do tronco,
Cafusos, cabocos
Branquelos degredados da Europa
A Cabanagem total
Resumo de cabanagens do mundo
Sem rumo:
O governo cabano no efêmero poder
Diante da surdez do precário império.
A dura repressão genocida
O manto de silêncio que veste a praça
Todo dia 7 de janeiro no rio das Amazônias
Sobre o luto da memória de 40 mil mortos
Na incessante luta da revolução amazônica.
Só o dedo fraturado da História
Remenda o Entroncamento do espaço-tempo
O monumento de Niemeyer
Aponta sete vezes sete
A data flamejante de 7 de Janeiro
Do Sesquicentenário que não se apaga
Na paisagem torta.
No mês de janeiro
Em Belém d'Amazônia
O tempo trás a chuva e lava o ódio
O vento refaz a memória e cria paz:
“o nortista só queria
Fazer parte da nação”.