O homem que assoviava mentiras
Esta eu fiquei devendo ao compadre Amadinho – disse Liduíno do Boi – que me convidou pra visitar São Caetano no festival do caranguejo e ver o Boi Tinga dançar… Ótima oportunidade pra Vilarana e São Caetano fazerem as pazes: todo mundo sabe que se não fossem os bons-ofícios da ONU e as rezas do Papa as duas comunidades teriam, paresque, declarado não exatamente nova guerra de Tróia, mas porém a guerra dos Bumbás (dez vezes pior que a rivalidade dos bois de Parintins ou a querela do festival da tribos de Juruti, mais perigosa que a Cabanagem, paresque…). Foi o seguinte. A turma de pescadores ditos da Vigia (na verdade de São Caetano), todos anos atravessa com barco à vela ou a motor-pupupu trezentos e tantos quilômetros, de lés à lés; a boca do rio Amazonas desde a ponta da Tijioca ao cabo Norte: só pra pescar gurijuba…
Caso de honra. Não adianta só a tainha, a serra, a corvina, a pescada amarela, gó em quantidade, sarda e tantos outros peixes de curral na beirada. Pescador macho tem que ir lá fora, passar do norte pra lá… Pescador que sabe como é carece ser, paresque, filho da gurijuba, bagre amarelo de água salobra do largo rio costeiro que corre dentro do oceano com a vasa do Amazonas, adoçando o que era sal puro e tingindo de barro o azul marinho ou os verdes mares. Mui apetitoso cá no Pará salgado pra caldeirada na vinagreira com legumes e lá nas Guianas peixe defumado especial, inclusive pra sanduíche a se comer com cerveja gelada na praça das palmeiras em Caiena – o BBB avisa. E que a bexiga, mais que o próprio peixe, vale ouro como grude mandada até a China… Tu jura? – admirou-se Emérito.
E a aba de tubarão? – indaga o Casemiro Martins. Tá assim de comprador pra mandar pro Japão, diz-que lá fazem sopa que levanta até defunto… Tubarão dá no cardume de gurijuba e estraga tudo. Pescador colhe espinhel e só vem cabeça de peixe atorada… Ah, diacho! – resmunga Raimundão em riba do baeléu de popa, a canoa jogando à beça, e ainda por cima o baita prejuízo. Ele grita ao cozinheiro – haja cozinhar jurumum e jogar quente pra tubarão… Agüenta, corno! O panelão no fogão à lenha na proa, popocando; jerimum rachando na quentura. E zás! Lá vai fogo! Jerimum quente despejado ao mar, o trabalhão medonho em risco do moleque se escaldar com água quente, a onda jogando a canoa. Jerimum quente bate n'água, faz tepei! Pronto. O bicho vem ligeiro e engole direto: a quentura do jerimum espoca o bucho (lá dele!). Antão, deixa tubarão estuporado boiar, primeiro a galha aparece fora d'água; aí o corno revira de bucho pra riba e já o Raimundão fisga e pega faca peixeira afiada, corta as barbatanas do peixão fazendo a conta do ganho, quem manda levar gurijuba do anzol, hem seu pirata? O resto do tubarão vai embora boiando pra outros peixes comer, não dá pra aproveitar a bordo sem roubar espaço de carga da gurijuba… Larga gurijuba, tubarão! E deixa aba pra pagar o prejuízo. A ver como o mundo é jito – diz o Emérito – nós aqui pescando gurijuba pra dar sopa a chinês e aba de tubarão pra japonês ficar arretado. Olha lá!… Nós, Emérito? – indaga o poeta Janjinha – nós aqui jogando conversa fora e pescando brisa… O Casemiro Martins: eu queria ver era o açaí vendido a dólar!… Por isso não, retruca o doutor Ophir, já tem americano comprando…
Aquilo outro da gente da costa do Pará ir pescar lá fora é coisa muito antiga. Mais velha até do que a tropa de guarda-costa pra barrar ao inimigo a entrada do Amazonas com o comandante Francisco de Melo Palheta na proa, homem-bom da vila da Vigia. Do qual fado de índio tupinambá remador cativo da Casa das Canoas; resta, paresque, uma sina que habita a alma dos pescadores do Salgado. Desde o tempo da rixa velha entre tataravós nheengaíbas e tupinambás, hoje em dia mais extintos que os dinossauros (noves fora o grupo folclórico Nuaruaques, o sonoro elétrico Tremendão Tupinambá e o carismático cacique Pena Verde vindo não se sabe de que aldeia do além descer em terreiros da Mina, searas de umbanda, centros espíritas em transe e ainda pregar um susto danado em Raimundão uma certa noite, quando este um veio meio pau, meio tijolo chegar em casa a horas mortas… Um verdadeiro e imortal cacique brasileiro não esquece seu povo nem depois de morto há trezentos e tantos anos, que nem o rei dom Sebastião não deixa pescador dos Açores morrer sozinho disperso pelo mundo).
Basta dizer deste antigo fado das gentes da Vigia que o capitão Palheta, que Deus o tenha! – rezou Emérito; levou à divisa do Oiapoque a guarda-costa do ano de 1723 ou 24, buscar vivo ou morto o tuxaua Guaiamã dos Aruãs e Mexianas, pelo bom motivo que este um fazia contrabando de armas e munições em Caiena a troco de índios escravos dos portugueses pra levar adiante a guerra velha (os brancos de cá e os brancos de lá, ceguinhos e de mãos atadas não fossem indios e pretos labutar… não sabiam porra nenhuma, mas porém aproveitavam a desavença dos índios. Isto sim eles sabiam pra caramba), guerra canibal começada Deus sabe quando e onde; desde a hora que o primeiro come-gente tupi meteu o pé na terra dos Tapuias, tamuia, tapuia, tamoio… tamu, povo-avô dos Brasis – Quinquinhas ensinou; e vingava, paresque, o cacique do Marajó a paz traída do rio dos Mapuá pelos homens-bons do Pará, quando estes uns expulsaram e deram ponta pé na bunda do payaçu Antônio Vieira, em 1661. O homem-bom vigiense virou herói nacional, não porque ele, Palheta; tenha preso o tuxaua bandoleiro do Marajó e afastado o perigo dos traficantes de escravos franceses, mas porém porque furtou o café de Caiena – tomou emprestado – BBB corrige e Quinquinhas ensina que o dito café do Palheta antes foi roubado do Suriname pelos franceses… Eta, estória tremenda do Norte velho de guerra! Adonde o roubo da cabeça do Resolvido e posterior invenção do Boi Tinga vieram se meter, contada e assoviada por seu Homero Patativa, do povoado Mucajatuba. Começada, diz-que, no tempo do ronca, duma banda a outra, do Maranhão até o Orenoco; entre tupis e nuaruaques… Antes mesmo que os brancos viéssem aumentar e os pretos a aturar a confusão. Haja Deus! – gritou o ressentido poeta Janjinha – mas, o padre Salvador do Rosário fora de Vilarana!…
Um pirralho quando nasce naquelas beiradas já sabe, paresque desde jitito mamando no peito de sua mãe e depois por conta do caldo de cabeça de gurijuba e estórias da avó, que só vai ser homem feito considerado pescador de primeira se ele for, pelo menos uma vez, ao Norte. Tal qual a sorte do bisavô, do avô, do pai e dos tios…. Esta gente vive atrás de cardume da gurijuba como se fosse a sorte grande. E por esta sina chega às vezes até às ilhargas de Caiena nos rastos do patriarca Palheta, sargento-mor da Guarda-costa e contrabandista de cafe; quando se atravessa a baía do Oiapoque e passa por fora do monte da prata, diz-que d'Argent; quase sempre vai-se afundear a canoa na boca do rio Aproaga; compadre Raimundão chama Puruaca que nem os pescadores brasileiros e lá os franceses dizem Aprouague – esclarece BBB. Prova de que esses caminhos ribeirinhos são de origem aruaque, diz Quinquinhas (aliás dr. Joaquim Galício) sem que ninguém na casa da beira lhe tenha dado atenção (agora dr. Joaquim, aliás o filho do Agripino e Adélia; pode compreender e urge falar à professora Magda; que os regulamentos que os governadores do Maranhão fizerram às tropas de guarda-costa não podia ser conhecimento expedito dos próprios portugueses, mas sim extrato de confessionário das aldeias das missões. Pra você ver a manha dos padres – diz o poeta Janjinha, com ódio verdadeiro do confessor da bela Paquita. Apropriação subreptícia pelos brancos da sabença de velhos guerreiros tupinambás catequizados e nuaruaques cativos na Casa das Canoas, obtido da mestiçagem das tropas de resgate, conforme usos e costumes antigos de botar capelão embarcado a rezar missa e novenas de Nossa Senhora do Tempo antes de soltar o cabo das canoas e dar nos remos, pastoreio de corpos e espíritos do gado humano. A verdadeira invenção das amazônias pelas beiras da estória-geral…
Da foz do Aproaga o pescado fresco pegado pelo pessoal da ilha Maracá, Bailique, Vigia, Chaves e Soure, diz-que todos eles clandestinos desde meninos na própria casa de seus pais; passa a mãos de marreteiros brasileiros de Caiena com carta-de-seju. Estes uns já sabem como são as modas, pois comeram o pão que o diabo amassou: andam na linha e são eles que vão buscar o peixe e revender a compadres crioulos donos de talho no mercado da beira do dique Leblond. Dai em diante a taínha se chama parreci, a pescada amarela acupá, o filhote vira torche, a gurijuba manchuarron-jaune atravessa e chega à praça do Galo pra dar brilho a pratos bacanas em restaurante chinuá. Mais longe d'água o preço do peixe fica salgado e a porção diminui… Tudo gira em torno da base de Kurru quando decola pro espaço um foguetão daqueles. E assim serão felizes pra sempre os pescadores do cabo Norte. Esta gente malandra que consegue, diz-que fácil-fácil; larjant pra trazer pra casa com a grude e o peixe salgado contratado no comércio da Vigia a certeza de que no outro ano vai estar de volta, até quando Deus quiser… Eu queria que vocês fossem passar uns dias com um compadre meu chamado Françuá, em Kurru – declarou BBB – pra saber se eu tô inventando…
O pessoal da Vigia (na verdade, São Caetano) não se queixa: haja saúde, gurijuba e compadres com larjant na praça de Caiena (o resto é pavulagem, mas porém não sabe que se falhar foguetão em Kurru a coisa fica preta…). Na volta pra casa no fim da safra vêm abonados e farreando sempre que podem. Vão desviar caminho e se meter em improvisadas festas nas ilhas, que aqui a gente chama mucura. Isto é, arranjada sem frescura, de repente. Os cornos, paresque, nunca tinham visto boi-Bumbá… Uma vez, por acaso, toparam com o Resolvido que foi dançar em Cachoeira na festa do glorioso São Sebastião. Filhos da mãe! – Liduíno esbraveja – na hora que o boi foi se esconder atrás do mato, quando o tripa saiu de baixo e foi tomar uma dose… O pessoal da pesca aproveitou o enredo do roubo e arrancou a cabeça do boi, meteu debaixo do braço e saiu de carreira no rumo do porto…
Aí foi uma merda! Pai Francisco e mãe Catirina (personagens do Bumbá) injustamente acusados de ser ladrões de gado, passaram mau pedaço na peça… Quando acaba, pajé e tribo de índios de faz de conta, delegado mais o amo Liduíno, vaqueiros metidos dentro de cavalinhos de miriti enfeitados de fitas coloridas e chapéus com espelinhos encrustados e tudo mais, foram achar o animal de estimação dentro do mato, degolado… O tripa, a chorar de raiva, que nem bezerro desmamado berrava e esguichava lágrimas de arrependimento por ter deixado o Resolvido sozinho; o corno destilava cachaça por todos os poros… Puta merda! Esta patifaria não estava no enredo. Os ladrões da cabeça do boi, velas cheias com vento em popa no rumo da Vigia, Credo!… estavam fora de alcance, lá no meio da baía. Com a afrontosa notícia da morte do boi antes do fim do folguedo, espalhada na rádio cipo, todo Curralpanema ficou em pé de guerra. Deixa estar, que lá no outro lado do Pará, entre grudes de gurijuba ensacada e peixe salgado a cabeça do Resolvido na proa da vigilenga, num ar de espanto, espiava com seus olhos de vidro a confusão de gente no porto como à espera de uma notícia sem precedentes.
Mas, porra, por que diabos vocês fizeram esta sacanagem? – berrou Raimundão com a mão na cana do leme, enquanto os camaradas arreavam a vela, vinham de chegar numa vigilenga chapada de peixe salgado vindo do Aproaga depois de três meses de safra. Assim, o piloto deu com o espetáculo que juntava gente no porto. O que era aquilo? Um peixe-boi atorado pelo meio? A cabeça do Resolvido degolado espiava, espiava… Paresque um modo estúrdio, tanto podia ser que nem cachorro com rabo entre as pernas ao passar no terreiro vizinho ou, quem sabe, ameaça de tremenda vingança como aquelas antigas do tempo dos índios; que não sossegavam enquanto não quebrassem cabeças e comessem assado fígado do inimigo, que Deus o livre…
Compadre Amadinho foi ao porto e Raimundão o chamou a um particular, falando baixo: espia só o que estes sacanas fizeram com o boi de Vilarana… Mas, que merda, caralho! – Amadinho sentiu cheiro de pólvora no ar. Por menos disso, antigamente, o pau chinchava… Deixa estar que o pior que podia acontecer era dar sumiço à cabeça do boi sem mais nenhuma consideração à nobre origem vilaranense. Era melhor chamar algum entendido pra aproveitar a cabeça e fazer um novo boi-bumbá. Pois foi o que aconteceu e desse jeito nasceu o Boi Tinga, paresque. Só que em vez de imitar os outros bois, Raimundão disse, aquele boi de Vilarana paresque é galinha. Reparem que tem só um tripa e um par de pernas… Os outros falaram, é isso mesmo, mano velho; boi de verdade tem quatro patas, vamos meter dois tripas pra fazer quatro patas do Tinga. Tripa é o camarada que dança debaixo do boi. O Tinga carece de dois tripas pra fazer as quatro patas dum boi de verdade. Assim foi e mais: o boi virou um carnaval caetano com cabeções deste tamanho e arlequins, colombinas e pierrôs… Axi! – Emérito desdenhou – boi-bumbá de verdade tem que balançar e dançar. Por conta do bailado é que tem de ser um tripa só e não pode qualquer um se meter à tripa de boi; carece fazer o boi dançar. Tem que ser que nem o finado Luciano, que dava graça ao Resolvido; ele sabia dar marrada, chifrada e rabanada pra abrir a roda quando o povo fechava. Boi-bumbá tem que ter acompanhamento de banda do Antonico Picapau e trombone do mestre Açúcar, pai Francisco e mãe Catirina, vaqueiros e amo que nem o mano Liduíno… Aquilo no outro lado e lá em Parintins é carnaval, vão me desculpar a franqueza. É bacana? É… Mas porém, não é boi-Bumbá nem bumba-meu-boi. Fica paresque açúcar no vinho de açaí, estraga o sabor…
Não eram boas, definitivamente, as relações entre as ilhas e a terra-firme. Assim, o compadre Amadinho querendo fumar o cachimbo da paz ao quanto antes e antes do pau comer, mandou recado por escrito pelo Catumbi convidando Liduíno pra ir a São Caetano levar o Resolvido pra confraternizar com o Tinga em missão de paz, amizade e fraternidade etecetera e tal, justo e perfeito num festival do caranguejo. E lá, muitos casos de parte a parte como é de praxe pra cimentar acordo. Foi aí, na hora da mesa com a travessa de sopa de caranguejo fumaçando, que o Amadinho chamou Raimundão e disse, conta pro Liduíno aquela do cara que assovia mentiras…
Assovia mentira ou mente assoviando? – Liduino fez ar de grande admiração sem tirar o olho da terrina, nem deixar de aspirar o vapor do tempero, sentenciou – pai d'égua! Antão, o pescador não se fez de rogado e passou a contar a estória. Era uma vez, diz-que, no povoado Mucajatuba um velho pescador aposentado pela força da idade, chamava-se Homero, Patativa por apelido da mania que tinha de assoviar, paresque até quando cagava… Seu Homero se pegava no trabalho haja a assoviar diz-que pra não cansar, se não fazia nada assoviava pra ver o tempo passar na flauta. Era o velho um passarinho patativa, a falar sério ou a inventar coversa fiada… Paresque afiava a língua em notas de clarinete imaginário, o qual nunca aprendera a tocar, enquanto ensaiava estória… Enfim, se os casos que ele gosta de contar aborreciam a gente do lugar, o velho paresque levava a vida no bico.
Na mocidade seu Patativa foi pescador do Norte, sempre bafejado pela sorte. Mas porém, tinha o grande defeito de contar lorota demais da conta… Ora, se já estória de pescador não perde uma pra acrescentar potoca Patativa extrapolava de tal forma que uma sardinha na rede passava logo por tubarão… O pássaro caripirá engolia cardumes e cardumes de sardinha sem mastigar. Com ele, tubarão dava no rio e jacaré nadava em alto mar… Quem gostava de escutar mentira de seu Homero era pescador, por espírito de disputa: haver quem conta a maior! O problema é que nenhum pescador se conforma em perder pra outro. Mas porém, os casos do Patativa, com a velhice, começaram a avacalhar a profissão pela elevada invencionice da sua imaginação. Com isto, o velho começou a ficar marcado no povoado. Já não lhe rebatiam mais com outra façanha pra abafar a que com muito engenho ele contava.
Ai, em vez de fazer dele heroi do povoado, o castigo veio a cavalo. A velhice, as pernas bambas, a vista curta e o pobre não pôde mais continuar a viajar e ir pescar no Norte. Seu sofrimento aumentava quando as canoas partiam para o mar e Mucajatuba ficava entregue às mulheres, crianças, meia dúzia de velhos e cachorros pirentos esperando a volta da turma. Homero perambulava à cata de quem lhe escutar um mísero caso. Sabe como é mulher, explica Raimundão; quanto se pegam entre elas é uma risadaria, uma papagaiada danada… Quando já que iam elas aturar o velho Homero contar das suas, dois ou três outros velhos, surdos que nem uma porta… Só arremedando, hum-hum, hem-hem… As ideias apoquentando o velho a ponto dele ter que vomitar pra se livrar de tanta estória a coçar a língua e a querer sair pela boca afora… Pobre homem, antão ele pegava um banquinho na porta de casa e ficava matutando e assoviando, paresque ensaindo estória pra quando a turma voltasse…
Diz que, assoviar estória não é pra qualquer um. Carece ter dom. É coisa mui diferente de caduco que fala só ou mentiroso safado, que só arruma encrenca pra enganar e roubar a gente, não senhor – explica Liduíno do Boi, que ficou fã do assoviador caetanense – o dom de seu Homero Patativa exige arte e bom coração… É, paresque, com dose de engenho e arte, a premeditação da conversa fiada em forma de assobio: maneira de caboco velho quando se pega sozinho botar imaginação pra fora. Dar via de consequência à ideia urdida altas horas da noite: o fruto da insônia no escuro, sem luz de lamparina pra afiar a língua e inventar conversa a contar cedo de manhã. E quando acaba, mingau de bacaba… ninguém quer escutar. Antão haja a solfejar com os beiços e soletrar no pensamento.
São as tais vias de comunicação sustentadas a caldo de gurijuba e pirão de farinha d'água no coração e na cabeça da pessoa. A coisa que vem a furo de qualquer maneira: Contada, cantada, desenhada, representada em auto popular ou pegando santo no terreiro: toda estória carece achar caminho e se comunicar. Contada deste jeito no bar do Emérito a estória assoviada do velho Homero despertou grande interesse em Quinhinhas, que vinha acompanhando de longe certo caso de uns índios isolados cuja fala se passava por meio de assovios, cantos de passarinho, coaxos e outras vozes da natureza. De modo que, privado de quem o quisesse escutar, o velho pescador podia sim, dar curso à imaginação a modo de passarinho. Por que não? Chamar a esse Homero do povo de mentiroso era sinal de ignorância e uma estúpida desconsideração pelo próprio povo donde emana tota estória do lugar.
O filho de Agripino Ferreira Rodrigues, sem que ninguém soubesse montou tese, fez manuscrito em papel almaço e botou em envelope fechado comunicação pra ser entregue, lá na Cidade, ao Instituto Histórico em mãos da professora Magda Zurita. A tese estúrdia seguiu cedo pelo bote veleiro O Boateiro, pilotado pela mão de Deus e tripulado unicamente pelo tio João Catumbi e o galo proeiro e despertador, apelidado Mucura (porque, diz-que, come galinha…) deu a partida com a viração da maré. Informado porém do raro conteúdo do envelope, o portador comentou que estava sabendo do caso no rio Mucajatuba, pras bandas da Vigia; havia um velho pescador contador de estórias do arco da velha, notável pelo fato de assoviar mentiras… Pelo visto, a grande novidade do Liduíno tinha dois sabedores em Vilarana: Deus e o povo do círio de Nossa Senhora do Tempo…
Como antão, meu tio – Emérito perguntou – assoviar mentira? Era o seguinte. Conhecido por inventar demasiada estória de pescador o velho Homero, quase cego, já não encontrava quem as quisesse escutar. Quando chegava a temporada de pesca da gurijuba lá pro cabo Norte só ficavam no povoado mulheres, crianças e velhos. O velho se agoniava muito nesse período de ouvidos escassos é dava uma de índio Pirahã, as lembranças (lá nele) a boiar da memória e o velho num banquinho sentado na porta da barraca, como não achasse mais quem quisesse escutar estória, passava ele o dia a assoviar casos um a um… Como diz o nome, Pirahã é gente-peixe… Que nem seu Homero pescador é parente vivo de passarinho patativa. Não há espanto por aqui que tenha mulher que vira porca e homem que vira cachorrão brabo ou cavalo doido em noite de sexta-feira, até onça-gente já se ouviu falar por estas bandas e planta tajá se domestica como guarda da porta de casa (noves fora Cobra Norato e sua mana malvada, Maria Caninana; que eram cobras e viram gente; caso de filho de boto com mulher é trivial (ignora-se se alguma vez, estrompada em igarapé, alguma boto-fêmea emprenhou de pescador tarado). Nos princípios deste mundo, a índia Ceucy ficou prenha de tanto comer cucura-do-mato e pariu Jurupari, o espírito senhor do segredo do passado e do futuro; por fim a linguaruda foi castigada pelo filho transformada em estrela das Pleiâdes e o pajé velho cúmplice da curiosidade dela em saber o que há na casa dos homens, virou tamanduá. Quem duvidaria sem perigo de virar bicho?)…
Talvez, porque no fim do mundo esta gente estúrdia tenha se adiantado muito à mudança climática na frente dos bestas civilizados. Ou, pelo contrário, porque ficou no meio do caminho escuro de Dante quando este um foi visitar o inferno e o céu, o povo Pirahã tomou direção diversa. A gente-peixe sobreviveu, paresque, ao dilúvio fora da arca de Noé e se meteu no limbo longe da civilização, que nem escravo fugido no mocambo; enquanto outros salvos das águas trabalhavam como mão-de-obra na construção da arca e depois da torre de Babel, pra pagar passagem por não saber nadar, os homens-peixe nem seu Souza… Isso de trabalhar pros outros não é com índio Pirahã e muito menos com mestre Homero, aposentado pelo Funrural por causa da idade.
Nas paragens do limbo, diz-que, afastadas do paraíso e do inferno a meia maré de viagem numa direção ou noutra; os intuitivos Pirahã se ilharam e fizeram um mundinho (lá deles) à parte. Aí está a grande diferença entre comer peixe (além de dançar a pirapuracéia longe dos cânones sagrados) e comer gente (inclusive a prostituição e as doenças sexualmente transmetidas): Lá aonde os catequistas do Brasil não se atreveriam a ir antes de domesticar os mais salientes canibais da babel brasílica (o pai português malvado a premetidar a ordem e o progreso do bom filho brasileiro, diz-que). Depois do susto da corda e do baraço debaixo de tiro de arcabuz e dentes de cachorro; amansar com paciência o bárbaro cativo na aldeia de Murtigura: massagada pra servir de boa-vontade à Casa das Canoas mediante ensalmos pelo ouvido adentro com a boa fala Nheengatu (já que falar nheengaíba, com língua travada, é difícil pra caramba e imitar passarinho pra dizer amém muito mais ainda…). A odisséia da linguagem selvagem nas ilhas e sertões das amazonas, por necessidade e acaso, segundo seu Homero Patativa (que não sabia, paresque, patavina do que ele dizia do fundo do seu coração…). Isto tudo pra impor e entupir tupi à patuléia como língua-geral do país do pau-Brasil (até nossa boa língua portuguesa, com certeza, estar pronta pra reinar no império do Brazil). Facilitar extração de almas do limbo a ajudar querubins na faxina celestial… no Céu, no Céu coa mea mãe estarei – dona Adélia canta hinos sacros na procissão de Nossa Senhora do Tempo: a poeira na quentura do caminho descalço se levanta com cheiro de bosta de vaca – na santa glória um dia, junto à virgem Maria, no Ceu eu estarei… Depois da língua-geral, pau no couro por decreto do Diretório Pombalino a fazer a nossa língua portuguesa uma beleza do Oiapoque ao Chuí. Obra magna do capitão-general demarcador de fronteiras, governador do Grão-Pará e Maranhão. Milagre de Santa Férula, a palmatória! Aproveita, antão Raimundão, antes que acabe a madeira – o Emérito aconselha – e os derradeiros Pirahã se calem pra sempre. Pra saber estória do fim do mundo com mestre Homero em extravagantes discursos em sintaxe e cantiga de pássaros, batráquios, marulhos do mar, assovios de curupira etecetera e tal. Os vários sons das florestas tropicais encantadas e os cantos do Mar equatorial amazônico traduzidos, diz-que, em assovios, trombetas de chamar vento, trovoada, rebujo d'água, raz de maré; estalidos do mato como a onça faz na orelha pra atiçar a presa ou ronca no fundo do peito; arfa; suspira e tosse… Nosso avô Jaguar, paresque, antigamente era semi-deus de cuja carne e sangue a gente não comungava (sob pena do matador regredir à animalidade), mas porém o sacrifício do animal sagrado no terreiro conferia áurea de coragem de herói aos conquistadores da terra dos Tapuias. Ahã!
Na grande noite de Vilarana (boca das ilhas pro verdevago desertão medonho e travessia da baía pra Cidade), os pequenos correm a se meter na rede às costelas da mãe com medo das vozes do escuro da varja. Vozerio da primeira noite do mundo: assim falou o povo Pirahã (e fala ainda, enquanto missionários e científicos, mas sobretudo bandeirantes matabugres o deixarem em paz) e o discurso da primeira manhã também, em língua de passarinho uirapuru. Aí que, afobados que nem os primeiros bichos que saltaram à terra quando a arca encalhou na lama do Dilúvio em riba do monte Ararat, diz-que; ancestrais peixes-homens Pirahã cairam n'água e chegaram logo ao rio Amazonas à frente de todo mundo (inclusive dos turcos encantados). As mais antigas navegações do mar-Oceano ao tempo de Ofir quando acharam a passagem de subida, que nem Orelhana atinou, já podiam ter topado com os Pirahã nas cabeceiras do rio Madeira.
Quinquinhas (aliás dr. Joaquim Galício Ferreira Rodrigues), como de costume; nas suas cartas impossíveis da casa da beira comunicou ao instituto histórico do Grão-Pará, dizendo ele que, paresque, esta gente dos primeiros dias e noites da Terra sem mal; mal enxuta ainda do parto da Cobragrande saiu depressa pela beira do rio atrás de cardumes que subiam em piracema. Eram famintos e afobados em demasia, os primeiros homens-peixe: não tiveram tempo ou não quiseram aprender na Turquia com os filhos do velho Noé (problema enormíssimo para o doutor Chomsky resolver depois, a professora Magda Zurita observou em nota de rodapé; que Deus não queira esses uns serem da parte do Cão tão-só pra atentar contra o plano da Criação, padre Navegantes não nos escute e o redador da Gazeta não saiba). Os Pirahã chegaram, diz-que, mudos ao teatro Amazonas sem uma muda de roupa sobre a pele (lá deles). Com quem eles aprenderam a falar, antão? BBB quis saber. Paresque com arara, japiim e jia – caçoou Liduíno do Boi – que nem mestre Homero aprendeu a assoviar estória com passarinho patativa…