Não se pode dizer que o goiano seja inimigo da cultura. Mesmo gerado na ganância exploratória do ouro e na esteira das tropas e boiadas, a gente daqui sempre encontrou um lugarzinho para as chamadas coisas do espírito. Vila Boa cercada de catras garimpeiras conciliava as danças, cantos, devoções com o fulgor dos salões, pianos e saraus poéticos. Vates cantores de uma literatura nascente. Com a mudança da capital para Goiânia vieram na bagagem de Pedro Ludovico poetas, historiadores, artistas e, ao que sei, foi a única cidade convertida, ainda menina, pelas prístinas águas do verbo, num batismo cultural. Jornais, escolas, universidades e livros. Muitas livrarias surgiram e desapareceram. Foi-se confirmando que, apesar do apreço germinal pela cultura, os novos goianos foram preferindo negócios mais rentáveis, que não deixam de ser cultura. Boiadas e campos estirados de milharais, sojas e cana. Outros negócios também prosperaram como a parceria público-privada da corrupção, a política de interesses e as prósperas empresas do crime. Multiplicaram-se as fábricas de diplomas com fachadas universitárias. Multidões caminham com seus canudos inúteis sem ter lido um livro, sem ter feito um trabalho de mão própria. Montículos de gente aglomeravam nas salas do Bazar Oió, depois, na livraria Cultura Goiana, do Paulo Araújo. Aos poucos perdemos nossas livrarias, pontos de encontro espiritual, reflexão e diálogo. Novas lojas vendem livros, discos, vídeos, eletrônicos e lanches. Portinholas anônimas exibem seus acervos utilitários, principalmente livros jurídicos que a farra legislativa do país produz aos milhares. São vendidos a alunos que nunca vão abri-los. O fechamento de uma livraria, que vende livros, que permite folheá-los, senti-los e até cheirá-los, antes da diatribe ou cumplicidade com o autor, é um golpe na inteligência da cidade. O fechamento da Livraria Cultura Goiana de Paulo Araújo é um desses golpes. Paulo sentou praça na Feira Hippie, quando era na Praça Cívica e ainda ingênua miscelânea de arte e artesanato. Armava barraca aos domingos, espalhava livros em bancadas improvisadas. Os escritores e fregueses iam chegando, tomando cafezinho, atualizando as conversas, conferindo os lançamentos. Depois seguiam para o almoço levando um livro sob o braço, sempre autografado, se de autor goiano. Paulo expandiu os negócios, chegou a ter várias lojas. Investiu nos autores locais. Na grande loja da Araguaia construiu uma escadaria com nomes dos escritores de Goiás. Agora, tudo desmoronou. Dizem que ao fechar a livraria Paulo é esmagado por mais de trezentos mil livros. Mercadoria que não conseguiu vender, principalmente goianos, como Carmo Bernardes, Elis, Eli Brasiliense e muitos outros. Enquanto pastoreia abelhas e comercializa mel Paulo não perde a esperança. A cabeça grisalha ainda divisa horizontes. Espera que ao cumprir o mister de semear livros não se acabe no silêncio de tantas vozes amordaçadas. Goiás não pode permanecer insensível. Se os governos têm dinheiro para amparar bancos e grandes empresas, talvez reste algum para adquirir esses livros de Paulo e distribuí-los às bibliotecas escolares do estado.
Paulo Araujo – a morte de mais uma livraria
Não se pode dizer que o goiano seja inimigo da cultura. Mesmo gerado na ganância exploratória do ouro e na esteira das tropas e boiadas, a gente daqui sempre encontrou um lugarzinho para as chamadas coisas do espírito. Vila Boa cercada de catras garimpeiras conciliava as danças, cantos, devoções com o fulgor dos salões, […]
POR: Aidenor Aires
∙ ∙4 min de leitura
Notícias Relacionadas
-
“Tá na Rede”: novo programa da TV Grabois analisa temas quentes da semana na internet
Com apresentação de Jade Beatriz, programa semanal destrincha política e sociedade com olhar crítico. Veja episódio de estreia sobre sucessão do Papa e escândalo no INSS
-
Anistia aos golpistas de 8 de janeiro é ilegal e inconstitucional
Aldo Arantes critica o Projeto de Lei 2858/22, que tenta conceder perdão a Bolsonaro e aos envolvidos nos atos golpistas, e alerta para os riscos à democracia
-
Revolução de 1930: Capitalismo de Estado e nacional-desenvolvimentismo no Brasil – Parte II
Liderada por Getúlio Vargas, revolução deu início à mais profunda transformação estrutural do país, com protagonismo do Estado, legislação trabalhista avançada e a implantação da indústria pesada
-
Reconstruir o Estado nacional é saída brasileira contra a dependência neoliberal
Da Era Vargas ao neoliberalismo, análise mostra como o neoliberalismo aprofundou a dependência brasileira e por que só um Estado nacional forte pode reverter esse quadro
-
Alexandra Kollontai: revolução e liberdade da mulher para amar e trabalhar
Ela foi ministra, diplomata e teórica marxista. Descubra por que Alexandra Kollontai foi uma das vozes mais ousadas da libertação feminina.
-
Tarifaço Trump 2.0 e o impasse da reindustrialização dos EUA
Artigo analisa os impactos do novo pacote tarifário de Trump, inspirado no modelo protecionista do século XIX, e revela contradições dentro do próprio movimento sindical norte-americano