Confissões de um escritor caipira
Quando criança, meus maiores sonhos eram me tornar escritor, jogador profissional de futebol ou motorista de caminhão. E viajar de avião. Para trás, ficaram os carrinhos com latas de “doce quatro em um” da Cica, puxados com cordonês, das vaquinhas, porcos e cavalos feitos com palitos de fósforo Granada ou Beija-flor, espetados em tenras buchas e batatas, ou em espinhentos chuchus brancos ou verdes (gado Nelore ou holandês ou suíço), ou ainda centopéias de gabirobas.
Para trás ficaram também minha tenra idade, os mergulhos no rio do Pântano, pelado é claro, onde em tardes quentes pescava de peneira, lambaris brancos e rápidos como relâmpagos e mandís dourados como o sol.
Ficaram também o time de futebol da fazenda Estrela; o time dos meninos da São José, que vencia a todos, em campos de terra, pastos de braquiária, jaraguás ou colonião. Para trás ficaram lembranças de terreirões de café, secando-se e pegando gosto, calmamente, sob o forte calor mogiano, em meio aos imigrantes italianos, espanhóis, portugueses, e uns poucos japoneses. Do chão da fazenda ou dos carreadores entre os cafezais, eu acenava aos brancos aviões do CAN, (correio aéreo nacional), pedindo meus sonhos de consumo da época : canivete de dez folhas ou bola de capotão (antiga bola de futebol, sem válvula, também chamada de bola de bico ou bola de bigolim). Para trás ficaram os caminhos de terra batida que me levavam à Escola Rural Municipal da Fazenda Estrela D´Oeste, município de Cravinhos onde ganhei, por mérito, os primeiros livros que li em minha vida: “ El Cid”, “Robinson Crusoé” e “O Patinho Feio”. Nessa época seguia a Primeira Cartilha Sodré, posto que a “Caminho Suave” sequer existia.
Para trás ficaram os carreadores entre os cafezais e capões de mato, repletos de rastros de cobras, que sob o forte calor do meio dia dirigiam-se ao córrego do Pântano, para se refrescarem. Para trás ficou o casarão de seis quartos e três salas que dominava ao lado da casa grande, o vale do pântano, que tanta lembrança me traz. O casarão ainda hoje resiste, em meio aos canaviais, que vieram junto com as queimadas, saquear os sais minerais da terra roxa de aluvião vulcânico e massapé, em primeiro lugar, e depois desalojar os colonos das fazendas e obrigá-los a esvaziarem as colônias, fazendo com que os trabalhadores rurais fossem para as cidades, transformando-se em bóias frias e formando núcleos que expandiram posteriormente para as grandes cidades, formando favelas e massa de manobra de dirigentes sindicalistas rurais que hoje invadem fazendas e pequenas cidades.
Para trás ficaram as imagens dos cafezais floridos, tão bem mostrados em música e cantados por Cascatinha e Inhana. Para trás ficaram os jogos de biróca, que só muito tempo depois fiquei sabendo chamar-se bolinha de gude, das coleções de felipes de grãos de café; o lirismo das tardes pacatas e noites modorrentas ao pé do rádio capelinha de cinco faixas, ouvindo a rádio Nacional do Rio de Janeiro, com seus musicais, programa César de Alencar e a Rádio Mayrink Veiga com seus programas humorísticos.
Para trás ficaram lembranças de causos, como do meu avô materno, Dario, que morreu atropelado por um trem de ferro na cidade de Espírito Santo do Pinhal, no ano de 1920, num acidente em que só se salvaram da charrete atropelada um pretinho chamado Valério, e uma garotinha chamada Guidinha, então com cinco anos: minha mãe (que Deus a tenha).
Para trás ficaram os dias em que estudava no Grupo Escolar João Nogueira, em Cravinhos, no distante ano de 1956; onde conheci a dona Lalá (nascida Alayde Chaves), professora de pulso forte e temperamento maternal, que ao mesmo tempo ensinava e educava, onde aprendi pelo respeito que tinha a ela, e tenho, a decorar a tabuada dos nove, a qual eu tinha dificuldades e que foi tão certo que me profissionalizei no campo de exatas. Não fosse a dona Lalá, talvez eu nunca teria seguido profissão em que se exigisse matemática. Me lembro que minha mãe, dona Guidinha, se referia a ela como “a irmã da Diola”, pessoa que ela mais admirava em Cravinhos e que morava defronte à Praça da Matriz, próximo do bar dos Pelóggia. O tempo se esvai…
As bolinhas de gude ainda rolam por uma calçada do universo, acionadas por “dedadas de chapa” e “canivetes” executados à perfeição por deuses meninos que reinventam o brinquedo do tempo e, vira e mexe, vêm me acordar, ali no Parque Santos Dumont, em Taboão da Serra, às margens do córrego Poá, habitado por duendes, sacis e curupiras, que me fazem levantar da cama para escrever, seja qual for a hora.
Lembro barcos de papel, jangadas de toras de bananeiras, colar de contas azuis, pitangas, uvaias, marmelos, jatobás e pindaíbas. Tudo se mistura, enquanto meus cabelos começam a canecer. Colhi café de pano e de derriça, plantei e capinei café e arroz, festejado por formigas lavapés, jararacas e marimbondos. Apanhei filhotes de jandaias e periquitos, alimentei-os com papas de fubá. Fui vendeiro, aprendiz de ajustador e desenhista mecânico. Fiz cursos noturnos, faculdade, li, estudei e trabalhei muito. Sonho que minhas lembranças sejam o ponto de partida para o redescobrimento das coisas simples que pretendo divulgar onde puder, mostrando um Brasil que ainda existe, posto que ainda o tenho gravado na minha imaginação.
Os brinquedos que os deuses meninos inventaram, junto com os barcos de papel, parece, ainda navegam águas inquietas, de março ou não, tripuladas pela legião de personagens dos meus sonhos. Eu, eu sou apenas um contista e sonhador, que às vezes escreve poesias e crônicas, vê duendes e ouve estrelas.
– Ora, vós direis. Ouvir estrelas? Por certo perdestes o senso!
– Eu vos direi : no entanto, as vezes acordo para ouvi-las, pasmo de espanto!
Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores.