Intróito
     
       – Passo às mãos dos eventuais leitores do Vermelho, este conto que teve gestação de três anos e meio e maturação de mais um ano. Espero que tenham por ele o mesmo carinho que tive ao escrevê-lo.

      – O Caboclo D´Água é um ser folclórico, cuja existência me foi passada por testemunho de uma pessoa especial: meu pai. Meu pai foi criado próximo das barrancas do Rio Pardo, cenário de meu conto. Neste conto inseri alguns dos “causos” que, eventualmente contava para nós, os filhos; outras vezes para os compadres e amigos.

      – A cidade de Santa Cruz das Posses (SP), aqui mencionada, não foi o cenário real, onde os fatos ocorreram; porém esta é uma obra de ficção, cuja licença poética e literária uso, em função deste meu “ofício” de escritor amador. Trago gravado em minha memória lembranças da única vez que estive lá, no auge de meus dez anos de idade:

      – Sim, caros leitores: faz muito tempo!!!!!!!!!!!

PARTE I

      – Acharam um corpo no rio!

      Este grito ecoou na cidade de Santa Cruz das Posses, estado de São Paulo. Era Angenor dos Santos, misto de comerciante de secos e molhados e juiz de paz que, seguido um bando de garotos, gritava aos quatro ventos:

      – Acharam um corpo no rio!

      – O quê?; repetiam as comadres, enquanto retiravam as panelas do fogão à lenha e engrossavam o cordão de curiosos.

      Na ânsia de chegarem ao local no qual estaria o corpo do desinfeliz, a Inácia, a matriarca dos Silva e descendente da tribo Caiapó (que habitava a região desde o descobrimento do Brasil pelos portugueses), parou de supetão na margem do rio. A fama de catimbozeira com a qual a velha índia Inácia era conhecida, não era vã!

      Num repente, a Inácia começou a tremer e girar a cabeça, braços e pernas; em seguida começou a guinchar e rodar de um lado para o outro. E se atirava no chão, cada vez que olhava para os céus. Num átimo, gritou um grito horrendo, que congelou as veias até dos mais céticos, fazendo que até os cachorros ficassem mudos:

      – Parem!  Gritou mais de uma vez.

      Angenor, que estava providenciando o batelão para buscar o corpo, nem havia reparado na velha feiticeira, tomada pelas entidades espirituais, ali, nas barrancas do rio. No entanto, ouviu sua última ordem. Angenor chegou perto da catimbozeira, que continuava de olhos fechados. Sem saber se ela estava consciente ou não. Angenor ficou assuntando, enquanto dava voltas e mais voltas ao redor da velha. De súbito, criou coragem e falou com toda a força dos pulmões e autoridade de juiz de paz:

      – Eu estou providenciando o transporte do corpo Sá Inácia, disse o Angenor.

PARTE II

      A velha catimbozeira abriu um dos olhos ao mesmo tempo em que parou de tremer o corpo:

      – Num carece zi fío, respondeu. O corpo foi pra o fundo e só vai vortá quando o espríto se desprendê da matéria!

      – Todos que a ouviam nesse momento, fizeram o nome do pai e se persignaram.

      – Não é possível, Sá Inácia! Eu próprio ajudei a colocar o corpo encima do tronco lá na curva do rio. Só não achamos o batelão. Por isso vim aqui buscar um trator pra ajudar na remoção do corpo.

      – Zi fío, ocê num teima com a véia não. Eu sei que o corpo tá no fundo do rio, bem do lado do batelão, deiz braça pra baxo do tronco que assuncê falô.

      – Então eu vou lá, Sá Inácia.

      – Vai fío, mais tem que levá as proteção: pra assuncê e pra os ôtro que vão com assuncê. Passa lá em casa nas ora arta que eu vou te dá um patuá pra te protegê do caboco d´água, que mora no Rio Pardo, que tá muito brabo com os ocurrido.

      – O que aconteceu, Sá Inácia, fala pra mim.

      – Ocê vai vê o Angenor, ocê vai vê!

      Dito isso a Sá Inácia saiu do transe e ficou observando a turba que a circundava. Deu-se conta que estava sentada no chão e pediu uma ajuda para levantar-se, no que foi atendida por dois homens parrudos que estavam ali, estupefatos, ouvindo a velha catimbozeira. Um misto de respeito, curiosidade, devoção e medo é o que impulsionavam aqueles homens e mulheres a permanecerem ali ao lado da Sá Inácia.

      Angenor foi até o sítio de um compadre pegar o trator emprestado, cordas, lonas, cobertores, coróte de água e ajudantes. Tudo que pudesse ser útil naquelas condições. Passou dirigindo o trator nas imediações da ponte. A Sá Inácia já havia ido embora, ficando apenas um bando de garotos e seus cães, algumas mulheres e uns poucos velhos de visão turva, todos curiosíssimos em saber das novidades.

      Começou a soprar um vento frio. Angenor sentiu sua espinha arrepiar. Lembrou das palavras da Sá Inácia; sentiu medo! Mas ele tinha muito o quê fazer; ah, isso tinha…!

PARTE III

      Angenor levou o trator até a margem onde houvera dito que deixara o corpo. Ajuda, no entanto não conseguiu, pois todos que trabalhavam no eito do compadre já tinham ido para suas casas. Manobrou o trator para chegar o mais próximo possível da barranca do rio. Tomou a corda de trinta braças de comprimento e a amarrou fortemente no eixo traseiro do trator. Sua intenção era descer até o tronco e amarrar o defunto na ponta da corda, voltar ao trator e puxar devagar o corpo até que chegasse ao alto do barranco; aí sim iria buscar o prefeito, o delegado, o boticário e quem mais fosse autoridade para decidir o que tinha que ser feito.

      Deixou o trator funcionado no ponto morto. Enrolou as trinta braças de corda no ombro e começou a descida par ao leito do rio, agarrando-se às raízes e galhos dos ingazeiros que ali havia às centenas. O sol já estava quase no horizonte; afinal estava chegando a noite. Olhou por todos os lados e não viu o tronco onde ele havia deixado o corpo do afogado. Angenor descalçou as botas, soltou o facão Jacaré de vinte polegadas da cintura com bainha e tudo,  tirou a camisa e mergulhou no rio. A água do Rio Pardo, como o nome já deixa transparecer, era escura; mesmo assim, com a luz difusa do sol, vislumbrou o batelão onde provavelmente o afogado estivera antes de acontecer o infausto.

      Com muito esforço empurrou o batelão para a tona. Usando a ponta da corda, amarrou a proa do batelão, num tirante donde os pescadores costumavam encaixar uma “carranca”, que ali não estava. A noite começou a descer. O Angenor estava muito cansado do esforço desprendido para içar o batelão do fundo do rio. Respirou fundo e fechou os olhos: ora, pensou; como pode o corpo do afogado ter saído do lugar? Mais uma vez pensou nas palavras da catimbozeira e sentiu arrepios pelo corpo. Pensou em ir buscar ajuda com os outros homens do lugar, pois não sabia muito bem o quê fazer. Despejou água do coróte sobre a cabeça, enrolou-se por uns minutos num cobertor que houvera trazido, até que se lhe refrescassem as idéias. Quando vestiu a camisa, sentiu que o batelão começou a se mexer e que iria emborcar nas águas do rio. Quando se virou, viu duas mãos muito grandes e uma cabeça de um monstro, cheias de lodo, raízes e plânctons. Naquele instante, sabia que o caboclo d´água estava se manifestando, pois a proteção do barco só acontecia se no barco houvesse uma carranca ou um pirangueiro de muita espiritualidade; sendo o Angenor ateu, sabia que o caboclo d´água queria levá-lo para o fundo rio. Incontinenti, pegou o facão marca Jacaré de vinte polegadas e aplicou um golpe no caboclo d´água. Ouviu-se um urro aterrador do monstro, enquanto os dedos das duas mãos do caboclo d´água caíram no fundo do bote. O monstro então voltou para o fundo do rio. Algumas pessoas que estavam próximas do local ouviram os urros do monstro e, entre apavorados e loucos, foram em busca da Sá Inácia. Quando esta chegou, já lá estava o prefeito, o delegado, o boticário, o padre e o sacristão, e toda a molecada e todos os velhos de Santa Cruz das Posses. Quando o Angenor contou o ocorrido e mostrou os dedos do caboclo d´água, todos se persignaram; até a Sá Inácia. Ninguém, nem mesmo o Angenor, quiseram mergulhar no local para ver se encontravam o corpo. O delegado opinou que era melhor esperar o dia amanhecer e chamar o quartel de corpo de bombeiros da cidade próxima para ajudar na busca do afogado. Quando parecia que todos iam para suas casa, desistindo da procura, Sá Inácia gritou ordenando que não fossem embora, pois se fizessem isso, o caboclo d´água iria ficar com o afogado e nunca mais ninguém daquele lugar teria sossego.

PARTE IV

      – Que fazemos então?, perguntou o delegado às pessoas que o circundavam.

      Ficaram todos olhando unzunzotros e finalmente a catimbozeira falou:

      – Zi fios, vamo pô a “lanterna dos afogado” drento d´água!

      Todos então se lembraram da lendária lanterna dos afogados, embora a grande maioria jamais tenha testemunhado sua execução. Isso aguçou ainda mais a curiosidade geral da cidadezinha. Muitas pessoas saíram dali do barranco, para buscar gamelas de madeira e velas para montar lanternas dos afogados; o quê ainda atraiu mais gente para o barranco do rio. A noite já ia plena… .

      Após certo tempo, mais de vinte lanternas dos afogados foram montadas, com velas de topos os tipos e tamanhos, assim também com os tamanhos e formas das gamelas.

     A SáIinácia então se colocou à frente das autoridades ali presentes, só admitindo a presença do Angenor, como uma espécie de cambono oficial para o evento.

      A catimbozeira, com o auxílio do Angenor, caminhou umas cem braças acima do ponto onde o Angenor dissera que havia deixado o corpo sobre um tronco. Uma procissão formada por pessoas, cães e até gente montada a cavalo seguia o cortejo. A catimbozeira com a ajuda de seu cambono Angenor, desceu o mais próximo que pode da água do rio. O Rio Pardo, nessa noite estava calmo; a água estava fria, apesar do extremo calor que faz na região em tal época.

      Sá Inácia chamou os santos e entidades, que acudiram imediatamente e, tomada pelos espíritos do bem, pediu para o Angenor que mandasse acender as velas das lanternas dos afogados. O delegado, usando sua autoridade, lá do alto do barranco, mandou organizar uma fila com as pessoas que trouxeram os apetrechos das lanternas. Tomou a primeira gamela, acendeu a primeira vela, deixou o fogo crepitar e em seguida, pingou sete lágrimas da vela no fundo e no centro da gamela, onde imediatamente “colou” o fundo da vela. Em seguida passou ao vigário, que fez um sinal da cruz sobre a lanterna, que a passou ao sacristão, que a passou ao soldado de prontidão, que desceu a barranca para entregar ao Angenor, que a apresentou à Sá Inácia, que a colocou suavemente nas águas do rio. No primeiro instante a gamela flutuou, girou, a chama da vela dobrou-se com a brisa, parecendo que iria se apagar; em seguida a gamela girou três vezes e uma pequena onda da corrente do rio veio buscá-la e a levou de mansinho, devagar, agora com a chama muito viva da vela ardendo e lançando luminosidade numa certa área do rio. E o povo a acompanhar todos os gestos e movimentações dos envolvidos nesse mister; cena que se repetiu por mais de trinta vezes, pois trinta eram as gamelas trazidas, embora sobrassem velas.que foram distribuídas povo, que as acenderam ,formando com luz e sombras espectros horrendos, mas de inspiração forte. A um sinal da Sá Inácia, o Angenor a ajudou a sair da beira do rio e escalar o barranco, misturando-se na turba que acompanhava os fatos. Era muita gente!

PARTE V

      Do alto do barranco Sá Inácia e o Angenor puderam observar aquela profusão de lanternas descendo o rio; algumas até se enroscando umas com as outras, mas iam girando até se desenroscarem e continuarem sua epopéia, descendo o  rio.

      – É bonito de se ver!, disse o Angenor, no quê percebeu-se a expressão séria da catimbozeira ainda tomada, que pedia silêncio com o indicador cruzando os lábios e encarando a todos, num prenúncio de que a ordem de se fazer silêncio era para todos e não para o Angenor somente.

       A partir de então, o cortejo foi seguindo desde o barranco e rio abaixo, as lanternas dos afogados, liderados pela Sá Inácia e o Angenor.

      Após mais de uma hora de caminhada, notaram que algumas lanternas desviaram-se para as margens, enquanto a grande maioria seguia o fluxo da corrente do rio, pelo centro do caudal.

      A catimbozeira mandou todos pararem e ficarem concentrados naquelas lanternas das margens. As lanternas que navegavam no leito central do rio já iam longe, ao passo que duas ficaram estáticas na margem. O cortejo se aproximou e parou para ver. Uma delas, lentamente girou e seguiu no sentido do centro do rio e seguiu a corrente, ao passo que a outra girou três vezes e voltou a parar; estática, imóvel, a chama crepitante.

      – É lá que tá o corpo, vaticinou a catimbozeira.

      Com efeito, desceram o barranco o delegado, o sacristão e o soldado, além do Angenor. O povo, do alto do barranco e liderados pela Sá Inácia, rezavam cada um à sua maneira, alguns esconjuravam e outros amedrontados, mas imobilizados pela curiosidade, não arredavam pé. A noite ia alta, faltavam quinze minutos para a meia-noite.

      Angenor foi o primeiro achegar até o local onde estava a lanterna dos afogados. Ouviu-se um barulho de gente caindo na água: – era o soldado que acompanhava o delegado, que havia tropeçado nas galheiras carregadas pelo rio e  que pelo ocorrido, levou uma séria reprimenda do delegado.

      Nem foi preciso muito esforço para comprovar a premonição da catimbozeira: o corpo do afogado estava enroscado numa galheira, a mesma que aparentemente, segurava a lanterna dos afogados.

PARTE VI

      – Como vamos tirar este defunto da água?, perguntou o soldado.

      O delegado não via a solução imediata e quando este olhou para o Angenor, este teve uma idéia e pôs mão à obra: retirou o facão da bainha presa na guaiaca e seguiu na direção de uma moita de bananeiras, ali próximo, à beira do rio. Após breve intervalo de tempo, Angenor voltava com um feixe de toras de bananeira e as depositou ali, ao pé do delegado. Solicitou a ajuda do delegado e do soldado e foi dispondo as toras de bananeira desde a água até o topo do barranco, a intervalos de meio metro. Ato contínuo, o Angenor subiu o barranco e correu até o trator enquanto saciava a curiosidade do povaréu: achamos o morto! A notícia se espalhou, qual rastilho de pólvora. E mais gente acudiu, agora vinda de Cajuru, Sertãozinho, Pontal, Pradópolis, Barrinha, Guariba…

      O barulho estrondoso do trator John Deere se aproximando, atiçou ainda mais a curiosidade. Angenor aproximou o trator da margem do rio em marcha-a-ré, desceu e amarrou a ponta da corda no eixo traseiro do trator. Lá embaixo, o delegado e o soldado já haviam retirado o corpo da água e a Sá Inácia estava encomendando o corpo à sua maneira.

      Aos trambolhões, o Angenor saltou por sobre as toras de bananeira até chegar próximo de onde estavam Sá Inácia, o delegado, o soldado e o corpo defunto.

      Amarraram o corpo na ponta da corda. O delegado e o soldado foram escolhidos pelo Angenor para ajudar no que fosse possível para o corpo deslizar por sobre as toras de bananeira e o próprio Angenor, iria puxar a corda com o trator. Dito e feito. Com a resistência ao atrito diminuída pelas toras de bananeira, o corpo facilmente chegou até o topo do barranco. Todas as pessoas presentes, com as velas acessas, iluminavam a cara do morto para saber de quem se tratava: ninguém o conhecia!

PARTE VII

      Nisso, chegou o velho Barrinha, que do alto dos seus noventa e cinco anos de idade, olhou o rosto do morto e disse:

      – É João Cantão de Frexeira, que mora em Cravinhos!

      Para espanto geral, muita gente já tinha ouvido falar do pernambucano que vivia em Cravinhos e que tinha muita vontade de tocar viola, mas que era um péssimo violeiro. O velho Barrinha ainda segredou ao Angenor e ao delegado, de que João Cantão havia lhe dito ainda no dia anterior, que seria capaz de vender sua alma ao diabo, para aprender a tocar viola.

      Quando finalmente a Sá Inácia se apresentou, mostrou os dedos do caboclo d´água em suas mãos. Disse ao Angenor para ir à sua casa o mais rápido que pudesse, pois ele, o Angenor, teria que usar um patuá com as falanges dos dedos do caboclo d´água pelo resto da vida, senão o caboclo d´água iria atacá-lo quando entrasse no velho rio Pardo, com ou sem carranca no batelão.

      O padre resolveu levar o corpo para a igreja, para identificá-lo junto como delegado e dar-lhe a benção antes do enterro digno.

EPÍLOGO

      Quando estavam já de saída, com o corpo do morto envolto na lona que Angenor havia trazido e atrelado sob o banco do motorista do trator, ouviu-se, lá no meio do rio Pardo, um grito horrendo, depois silêncio. Mais alguns instantes, passa um batelão pintado de vermelho, com uma lanterna de afogados acesa, bem na proa, onde um vulto escuro e enorme tangia as cordas de uma viola com extrema maestria, enquanto dava enormes gargalhadas. Era o coisa-ruim, que havia tomado a vida do João Cantão, mostrando que ele sabia tocar viola como ninguém!

      Sá Inácia, nesse momento recebeu exu e, dali mesmo do barranco, desafinou a viola do cão. O cramunhão resmungou alto e, olhando para aquelas pessoas e com o batelão descendo as águas do rio, começou a afinar a viola no sistema de afinação que ficou conhecido como “rio abaixo”! A partir daí, a cidade de Santa Cruz das Posses nunca mais foi a mesma… .

      Mas isso também é folclore!

 Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores.