A vingança cega
No final de outubro, o escritor albanês Ismail Kadaré receberá o Prêmio Príncipe de Astúrias 2009 pelo valor de sua obra e por seu engajamento a favor da liberdade de expressão. Autor de várias obras de inegável qualidade literária, uma delas toca especialmente a sensibilidade dos brasileiros pela adaptação feita para o cinema pelo diretor Walter Salles: "Abril Despedaçado", um dos ótimos exemplos da safra de bons filmes do cinema brasileiro dos últimos dez anos. A notícia do Prêmio me levou a reler esse belo romance.
Enrijecido pelo frio, um rapaz de 26 anos aguarda nas montanhas nevadas do Norte da Albânia, com o fuzil na mão, a chegada do assassino do seu irmão a quem ele é obrigado a vingar. Tendo apenas as romãs e a neve naquele mês de março como testemunhas caladas, ele percebe a aproximação da próxima vítima, faz a mira, grita o nome dele – de acordo com as regras da vendeta – e atira. O outro dá meio passo à frente e cai. O rapaz de aproxima do defunto, vira-o de frente, como manda o costume. Assim começa esse romance de Ismail Kadaré.
Ele teria agora 30 dias de trégua, até meados de abril, concedidos pela família do assassinado, mas depois disso "a morte o espreitaria em toda a parte" e ele teria de viver como um morcego, fugindo do sol e se ocultando na escuridão. Ao fim desse prazo, seria a vez dele ser tocaiado e morto e virado de frente com o fuzil na testa, tal como determinava o Kanun… O que Gjorg faria nesses trinta dias que lhe restavam de vida? Ao final, a cena inicial se repete, só que agora a vítima é Gjorg, pelo mesmo motivo indefinido: fazer girar a roda da vingança cega.
Trata-se de uma história trágica ou grotesca? Trágica, sem dúvida, mas não no sentido grego, pois lhe falta a dimensão do sublime, na qual o indivíduo livre e autoconfiante desafia os deuses e a sua revolta contra o Destino aparece carregada de arrogância, de orgulho exagerado, o que o leva à ruína e à morte. O clima opressivo, onde todos os gestos e palavras parecem já terem sido planejados e previstos por um código que determina a vida do começo ao fim, em seus mais ínfimos detalhes, não deixa espaço para as atitudes heroicas. Seria talvez mais uma metáfora do totalitarismo, no qual o sujeito apenas obedece, e é reduzido a uma massa indiferenciada. Para Ismail Kadaré, no período ditatorial comunista na Albânia – assim como em qualquer ditadura fascista ou similar -, o trágico é sempre contaminado pelo grotesco. O conteúdo trágico, presente neste belo romance da literatura ocidental, aproxima-se mais de Kafka, Dino Bussati ou Becket do que de Ésquilo ou Sófocles, já que nessa nossa época de barbárie, de corpos despedaçados voando no Afeganistão, no Iraque, na Palestina, em Terra Vermelha ou na baixada fluminense, a morte se tornou algo corriqueiro e impessoal.
Ao tratar da morte prescrita, a obra nos leva a pensar no sentido da vida, nas razões de nossa existência e de nossas atitudes muitas vezes mesquinhas e cruéis, e estimula o leitor a pensar séria e ludicamente nos minutos, horas, dias, meses ou anos que lhe restam ainda de existência nesse planeta.