Nunca prestei atenção na arte do chamado Rei do Pop. Não costumo me avassalar de nenhum rei, seja do futebol, do gado, ou do carnaval. Sempre vi o artista em mínimo olhar, em seus clipes frenéticos em momento de desatenção da vida, na televisão. Lamento que não tenha sido paciente para me deixar roçar por seu gingado robótico, seu mirabolante gestual de um Nijinski psicodélico, um Fred Astaire tresloucado, ou de um Elvis eterizado. Nestes dias, passei a observar a dança de contradições rítmicas. Aqui, os requebros duros, como instantes de uma marcha militar. Ali, um rodopio ciclônico. Logo mais, uma flutuação bailante, iludindo a gravidade, na sugestão metafórica de um caminhar imaterial, a tal caminhada na lua. Não pude deixar de admirar algumas letras de suas canções, guinchos de apelo à paz e à igualdade dos homens. Comoventes, aquelas dos tempos dos Jakcson Five, penetrantes na ternura de uma doce e agônica voz infantil. A morte desnudou para o mundo impudico uma realidade que as máscaras, a produção, a tecnologia transformavam. A necropsia feita pelos peritos, pela imprensa, pelas câmaras indiscretas dos celulares revela impiedosamente o que jazia sob a fulguração de suas encenações. Mostra o corpo franzino, a pouca carne macerada de medicamentos, torcida e moldada nas muitas faces com que se mostrou aos fans nos espetáculos. Revelou o menino sem pai e mãe que não conseguiu crescer. Mostrou o homem que se infantilizava a cada dia. A voz de castrati chamando pelo menino que perdera na emblemática Terra do Nunca. O misterioso encontro, ou dispersão, do gênero. Cada vez mais andrógino cada vez mais impreciso. Não pertencia a uma etnia, a uma cor, metamorfoseava-se cotidianamente para fugir de dores antigas. Muitas faces em transformação caminhavam do angélico para o demoníaco. Não teve filhos, recolheu nas prateleiras da genética submissa os que a vida lhe negara. Então, já era um menino disforme, buscava o convívio com as crianças, mas que já falava um idioma confuso que gerava interpretações teratológicas. Embora tenha ganhado e consumido fortunas, não era um homem rico. Era apenas um menino perdido que tentava adquirir afeto, reconhecimento, por isso se movia na prestidigitação constante, cujo prazer repousava no espanto e no apetite de seus agentes. Ícone pós-moderno da indústria cultural, ser fragmentado veiculando a própria miragem. Michael Jakcson é bem a imagem deste tempo sem amor, sem deus, sem história. Vai deixando na memória sintética de admiradores desolados um gesto, um grito, um candente Y love you. Entra na névoa do imaginário e, certamente, será promovido a divindade, bem coerente com sua jornada sacrificial em que se consumiu na busca de agradar a um mundo de avidez e consumo. Como o corpo estendido ao seio da dolorosa mater, o artista espera em câmara fria seu retorno ao sonhado dia da cura. Na humana compaixão, resiste incontrolável gana de estirar os braços e oferecer-lhe um colo.
Um colo para Michael Jackson
Nunca prestei atenção na arte do chamado Rei do Pop. Não costumo me avassalar de nenhum rei, seja do futebol, do gado, ou do carnaval. Sempre vi o artista em mínimo olhar, em seus clipes frenéticos em momento de desatenção da vida, na televisão. Lamento que não tenha sido paciente para me deixar roçar […]
POR: Aidenor Aires
∙ ∙4 min de leitura
Notícias Relacionadas
-
Quem é Jeannete Jara, a comunista candidata à presidência do Chile
Primeira da família a concluir o ensino superior, ex-líder estudantil e ministra responsável por elevar o salário mínimo no Chile, Jeannette Jara traz uma trajetória marcada pela militância comunista desde os 15 anos
-
Clóvis Moura e a revolução brasileira: legado vivo contra a extrema direita
"Rebeliões da Senzala" ganhou nova edição em parceria entre a Fundação Maurício Grabois e a Editora Anita Garibaldi que celebra o centenário do intelectual marxista
-
Congresso, impostos e governabilidade: como Lula pode avançar com mobilização popular
A crise aberta pela revogação do IOF revela mais do que um embate fiscal: ela testa a articulação política e a força social do campo progressista
-
Sistema de pagamentos transfronteiriços do BRICS desafia a hegemonia do dólar
Baseada em moeda digital e blockchain, Ponte BRICS busca escapar da dependência do dólar e das sanções ocidentais. Em artigo, professor da Universidade Fudan, na China, analisa os desafios e as vantagens da proposta que pode transformar o sistema financeiro global
-
Jeannette Jara: quando uma comunista caminha para o centro do palco no Chile
Em artigo, secretário político do Regional Exterior do Partido Comunista do Chile analisa a força histórica da candidatura de Jara à presidência e o papel do partido nas eleições de 2025
-
Polêmica do IOF marca estreia da nova temporada do Almoço Grátis na TV Grabois
Nesta quinta (3), ao meio-dia, programa aborda o que está por trás dos recuos do governo e das chantagens do “mercado”.