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    Comunicação

    A varja, a foice e o martelo

    O menino na escola da beira do rio Cartilha de ABC: professora e juiz de fora Bonita normalista falando bom português Justiça dos homens pelo amor de Deus!… Ivo viu a uva a cartilha dizia A uva: repita, menino… Ivo viu a uva Dizia em bom português a normalista bonita Uma ova! O menino não […]

    POR: José Varella

    6 min de leitura

    O menino na escola da beira do rio
    Cartilha de ABC: professora e juiz de fora
    Bonita normalista falando bom português
    Justiça dos homens pelo amor de Deus!…
    Ivo viu a uva a cartilha dizia
    A uva: repita, menino… Ivo viu a uva
    Dizia em bom português a normalista bonita
    Uma ova!
    O menino não cria no que não via
    Viu? Não viu?
    Ivo tinha visto a fruta cobiçada
    Que o menino do mato não viu.

    O menino ribeirinho viu o rio
    A árvore folheada de aves guarás
    Pintura de sangue vivo sobre campo verde
    Sonhos da primeira manhã
     Pesadelos da primeira noite do mundo
    O fundo do rio
    A cobra grande Boiúna
    O mistério profundo
    Lago encantado
    Machado de pedra de raio
    Verde infância da varja
    Verdejante estirão pra a Cidade
    Verdade ou não
    Remanso manso ou caldeirão
    Garças cheias de graça
    Paisagem com pés de miriti
    Cupuaçu
    Caroço de tucumã
    Escravos de Jó jogando catimbó
    Crack e guaranã
    Açaí
    Bacuri…

    Ou zás! O pau te acha!
    Desgraça pouca é besteira:
    Jararaca atrox ou Bothropos marajoensis.

    Paricá, diamba e outras alucinações:
    O Diabo no fundo da garrafa de cachaça.
    Fumaça de queimada ou fumo brabo d'Angola.

    O menino viu a árvore: não viu a floresta
    O perigo vindo de fora pra dentro
    Não viu…
    A normalista viu a bonita cidade onde Ivo vivia
    Viu a uva
    Bebeu vinho
    Comeu maçã com Adão e Eva
    Botou culpa na serpente
    A floresta encantada
    A festa e a fossa
    Mas não viu a árvore
    A roça
    A palhoça onde o ribeirinho vivia
    Não gozou sesta a professora bonita
    Não viu menino esperto no banho da maré
    O rio inventando estórias de cobras e jacarés.
    Ivo viu a uva mas não viu peixe vivo
    Não pegou camarão em matapi
    Não viu o gado nos campos gerais
    Não viu.

    Aquele era dia de tabuada na escola
    Sabatina amoada: meninos e meninas aos prantos
    Que nem quebranto que a avó curava com reza
    Levando palmatoada nove vezes nove
    Divido por seis…
    Noves fora tirando cinco
    Quanto fica, menino? Hen? Distraído!…
    Viu ou não viu?
    Quê?! A uva, o Ivo… Estavam verdes?
    Menino! Cuida da taboada, viu!

    A cidade mandava ao sítio novidades em penca
    Além de ABC, professora e bom português
    Foi o caso suspeito duma certa bandeira
    Encarnada bonita como o diabo
    Não era como parecia à primeira vista
    Bandeira do Divino trazida pelos devotos
    Parecia contrabando dentre outros do costume
    O menino prometera a sua avó
    Uma saia bonita de fazenda encarnada
    Aquela bandeira vinha mesmo a calhar
    Mais ainda que tinha enfeite bacana
    Professora! Professora!…
    De novo a perguntar sobre a uva e o Ivo?
    Já disse é fruta que não dá aqui…
    Desta vez não, senhora… Esta bandeira
    Que enfeite é este?

    O inocente exibiu a foice e o martelo
    Todo contente com a bandeira à mão
    Viu vermelhar a face da mestra
    O espanto nos olhos deste tamanho:
    Que é isto, 'seu' comunista duma figa?
    Onde arranjou? Quem  te deu?
    Epa, epa! Comunistas a solta por aqui…
    Sem saber o porquê no rio não dá tubarão
    Nem saber a razão que no mar não tem jacaré
    O menino da maré viu-se em maus lençóis
    Pela fé da mucura
    Mentiu sem tremer a cara:
    Quem mandou? O Ivo…
    Que Ivo? O da uva, professora.

    O menino nunca "havera" visto foice
    Pois lavradores daquela terra não ceifavam:
    era tudo roçado a terçado rabo de galo,
    Atorado, rachado e lascado a machado de aço…
    Ali ninguém plantava trigo nem pra hóstia
    Era só a utilíssima mandioca
    Farinha d'água, tapioca e tucupi
    Não colhiam uva, "vinho" só de açaí.

    Não sabiam a tal fábula da raposa e as uvas
    Só das uvas do Ivo: verdes
    A História ainda estava de cueiros…
    Tudo ali era estória-geral do Curupira
    E da Matinta perera (melhor que La Fontaine)
    De martelo o pirralho sabia por ver o pai pregar
    Tábuas de caixão da mina de anjinhos
    Mortos nas ilhas na safra da malária.

    Custava, "antão", Ivo mandar fazenda encarnada
    Com enxada e colher de pedreiro desenhadas
    Pra fazer saia nova da avó tapuia?

    Em vez de vinhedo e segredo besta
    A madura lição natural do açaizal
    Matafome de peneira e alguidar:
    Bem-comum de todos cabocos e cabocas
    Sem granola nem açúcar
    Criaturada grande do Dalcídio Jurandir
    Índio sutil trazido pela luz do céu tupi-guarani
    Portador de machado de pedra de raio
    Forja mágica da cerâmica Marajoara.

    Aquele um que caminha sem pressa
    Pela margem esquerda do rio
    Que nem jaguaretê sobre a confiada presa do tempo
    Certo da embiara do futuro
    Mais vivo agora o morto de ontem
    Do que nós que hoje corremos para a morte.

    Coisas e loisas destas paragens que se não veem na TV
    Ivo atirou no que via: acertou no que não via…
    Retirantes operários da cidade voltam à terra prometida
    Campo onde caboco do sítio vê visagem
    Mas não lê ABC direito nem nunca viu a uva.