Diário de bardo
Vinícius de Moraes foi um incêndio na noite – espaço de ternura e esperança, enquanto durou. Sabendo que a vida é um risco, um relâmpago na noite interminável, no atemporal, para além da provisoriedade, viveu no limite da entrega e do afeto. Achando “melhor viver do que ser feliz”, não quis para sai eterna dor de cabeça de João Cabral – nem o seu medo da vida, no jeito quadradinho de se fazer matemático do verso, quando o que lhe faltou foi pulsão de Eros.
O poetinha assumiu o risco de ser o branco mais preto do Brasil, e de cantar em buate, com o que demitiu-se do mundo dos engravatados do Itamaraty, assim reconhecendo os sem gravata aproveitam mais o direito geral, que todos têm à felicidade. Sabendo que já se nasce morrendo, não quis andar morrendo por nonadas, e no limite do risco e da paixão, esteve em todos os encontros, e em todas as despedidas.
Não foi tão sacana, como dele se propagou. “Foi só um pouquinho”, como dele disse Chico Buarque. Apenas apaixonava-se à primeira vista pelas mulheres belas, que o devolviam à vida. Em verdade, nem queria sair com a maioria das mulheres que cantava. Como se deu com Tônia Carrero, que ele cantava, sempre que podia. Ela, agastada com isso, disse-o a um cronista, boêmio como ele próprio: “Da próxima vez, aceite. Mas diga que tem que ser pra já”. Dito e feito. Vinícius cantou, Tônia aceitou, mas informou: “Tem que ser agora”. “Também não é assim, não é, formosura da vida!”, desconversou o poetinha.
Em seu arrebato de viver, o poeta tinha que estar a mil por hora – para sentir-se vivo na intensidade proporcional à energia total de Itaipu Binacional. Se viveu no limite do gesto camicase de uma intensidade total, foi por saber que “viver é perigoso”, e só se justifica o milagre de haver nascido se o prodígio for exercido com a intensidade de um incêndio – e a verdade de amar não venha cobrar recibo de um dom que vem do infinito – e que se mantém vivo enquanto dure.
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“Enquanto despertava nossas sombras descobriu o significado de si mesma”. Assim escreveu Clarice Lispector, viajante da noite de sua angústia estranha, sobre a vertigem de beirar abismos, em que se compraz certa categoria de artistas. Às vezes é preciso beirar abismos, sobreviver a terríveis perigos, para conhecer o lado vertiginoso da alma. Só então, esquecendo, depois de abandonar os cacos do passado, sem pensar em perdas e danos, tomamos a trilha incerta – o que é promessa de perigos, mas abertura a possibilidades.
Dizer do poeta Vicente Huidobro: “O mundo cambaleia/quando de meu passado recebo/aquilo de que preciso/para viver nas profundezas de mim mesmo/”.
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Tão estrategista é o ego, que quando pensamos poder vence-lo um dia, é ele que pensa isto – e em sua esperteza nos engana, a sugerir que venha a sabotar a si próprio. O pensamento é seu costumeiro disfarce, que utiliza, para nos fazer enganar a nós mesmos.
Eckart Toole assinala: “Um dia vou me libertar do ego. Quem está falando? O ego. Libertar-se dele é verdadeiramente um grande trabalho. Mas pode ser uma tarefa pequena. Basta estarmos conscientes de nossos pensamentos e de nossas emoções, à medida em que vão surgindo. Não se trata de fazer, e sim de ver com atenção. Neste sentido, é verdade que nada podemos fazer para nos libertar do ego.
Quando essa mudança acontece, ou seja, quando passamos do pensamento para a consciência, uma inteligência muito maior do que a esperteza começa a agir em nossa vida”.
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Sendo, em sua vaidosura descomunal, um peru grugulejante, metido a poetastro de província, pediu licença para “usar da palavra” roufenha, feito taquara rachada, no quintal do poetariado. Queria grugulejar sozinho, apaixonado que sempre foi por escutar sua própria voz – tão estrondosamente ruidosa que desmancha roda de bêbados.
Pior é que se acha inspirado aedo, quando apenas emburreceu no azedo. Se ao menos não nos impingisse suas lorotas, como se fossem sagas heróicas.
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No Brasil os artistas e escritores estão mal acostumados a viver e a serem tratados como artistas da fome. Convidados a atuar ou a dar palestrar nos mais distantes lugares, vão para “dar” mesmo, uma vez que jamais lhe perguntam o preço de seu trabalho. É como se só vivessem para almoçar ou jantar, como o comedor de gilette, da sátira de Ary Toledo: “Decente, deixa eu cume uma giletezinha, pra vancê vê! Que euu num cumi nadinha inda hoje!”.
Como eternos artistas da fome, não temos direito a dar o preço de nosso trabalho, em um mercado onde tudo se compra, menos o produto dos artífices do verso, como já verberava Brecht. Mas sempre chega o tempo da decadência, em que nem para trabalhar de graça são os bardos do poetariado (membros do lumpenzinato cronificado) são solicitados.
Alguns, caídos nas graças de governos, após anos de conformismo e cumplicidade, em que tiveram que atuar como obedientes serviçais, chegam a receber homenagens “em palácio”. Se tivessem brio na cara, e percebessem a mancada, perguntariam, como sugeriu Bertolt, o dramaturgo poeta: “Onde foi que errei?”. Para alguns “gênios da raça” as glórias, por frias, já chegam tarde. Outros vivem de cava-las como podem, em todos os Estados da federação, onde detêm e manobram ligadas de serviçais compadres ou comadres.
A maioria, porém, soterrada pelo esquecimento, não deixa a mínima lembrança de haver existido. Nas praças não deixarão nomes, nem serão estátuas onde pássaros farão suas titicadas. Deles se saberá que passaram, como tudo passa. Por efêmeros instantes, como o passageiro deslumbramento de fogos de artifício, refulgirão no oceano da imbecilização das consciências e em mares de novas e triunfantes mediocridades.
Brasigóis Felício, é goiano, nasceu em 1950. Poeta, contista, romancista, crítico literário e crítico de arte. Tem 36 livros publicados entre obras de poesia, contos, romances, crônicas e críticas literárias.