Libertas e serás também
Carlinhos Oliveira (José Carlos Oliveira) foi enfant terrible da crônica brasileira, escreveu no Jornal do Brasil nos anos de chumbo da ditadura militar. Lucélia Santos, estrela da telenovela Escrava Isaura, defendia com entusiasmo os povos da floresta amazônica.
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Então, o cronista publicou carta aconselhando a atriz a não paternalizar os índios e os negros na ilusão de que os branquelos somos melhores ou superiores a eles. Na verdade, dizia o polêmico jornalista, somos farinha do mesmo saco misturados à ralé judia e massagada árabe, aos degredados, vagabundos e outros indesejáveis da Europa deportados como boi de piranha para colonizar o Novo Mundo.
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Ou seja, melhor para todos brasileiros da presente e futuras gerações o tratamento e cura do ufanismo tupiniquim (somos os melhores do mundo por graça do Pai Eterno e da mãe Natureza) e do mozambismo congênito (não há neto e bisneto de português que não idealize a pátria de Camões com as armas e os barões assinalados a devassar os mares do mundo; não há caboclo nem cafuso confuso que não queira se passar por branco de olhos azuis): com que, vencendo o velho mal, o país do Carnaval assumirá com fé e orgulho a negritude de seu destino maior nos Trópicos, tomando antes a lição imortal de Nelson Mandela do que a fazer brega imitação da velha Civilização.
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Tupy or not tupy, eis a questão… Mas, sem perder nunca a ternura pela liberté, egalité, fraternité. A República em permanente avenir. Estuário da humanidade, não podemos cair na superstição de que a igualdade já chegou ou virá por força da lei da gravidade (mesmo no país dos mortos há “salvos” e “condenados”…). Por lei somos todos iguais, porém na verdade uns são mais e outros menos “iguais”. A antiga aliança entre o trono e o altar apenas foi trocada pelo casamento do dinheiro com a imagem. Deste novo casal nasceram filhos legítimos e bastardos. São os chamados Primeiro Mundo, Segundo, Terceiro… mundos e fundos, enfim, insustentáveis agora.
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Começava a carta de Carlinhos à Lucélia por recordar suposto trabalho escolar na infância do jornalista quando ele teria errado tradução da divisa latina da Inconfidência Mineira libertas quae sera tamem, por um genial axioma libertas e serás também… Errou a letra e acertou o espírito da coisa. Com pretexto de lição de moral à bela militante, o cronista passava recado aos donos do poder e toda sociedade burguesa. Precisava-se entender que não há senhor sem escravo. E vice-versa. Portanto, libertar a outrem significa também libertar a si mesmo numa relação de dependência ambivalente. Vale para a interdependência dos mundos de primeira e quinta classe. Vale também para a relação de centro e periferia. A cidade e o campo. Metrópoles e províncias. Patroa e empregada doméstica, etc…
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A tirada ontológica de Carlinhos Oliveira serve a nossos dias. A modernização conservadora à proa da História a fazer água com a mudança climática e a crise econômica global. Com uma classe conservadora oligárquica e concentradora de renda e dependente de arrocho salarial e matéria-prima barata embutido no preço da mão-de-obra ofertada o custo de desemprego, trabalho semi-escravo, quando não puramente escravo; na base da pirâmide produtiva.
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Haja vista, por exemplo, indicador emblemático de dependência entre o nobre lazer e o império do trabalho servil: o turismo e a pesca de frutos do mar. Quanto vale no prato o pescado ao consumidor final e o ganho real (dinheiro e qualidade de vida) do pescador? Quem obriga a este homem a trabalhar duro para consumir a vida sem ganhar nada durável e à sua mulher a esperar sentada a ver novela na TV aonde a imagem moderna chega com seu poder de sedução ao êxodo rural e ao consumo urbano? O Homo sapiens não sabe fazer greve à marretagem, nem tolerar seus vizinhos para compartilhar e poupar força de trabalho… O mito da nobreza do Trabalho vai, sim, tornar esse homem dependente do ócio de outros homens. Assim como o alienado consumidor de lazer ignora o trabalho e miséria que ele causa na outra ponta da cadeia.
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Na antiguidade, a escravidão havia fundamento teológico e Aristóteles filosofava “tu te tornas responsável por aquele que cativas”. Hoje pagamos salário e contribuímos à Previdência Social, na melhor das expectativas, é isto é tudo. Mas, na modernidade, o trabalho “livre” é obrigado a consumir muitas vidas para conforto de poucos que afinal de contas não parecem lá muito felizes nem conscientes do que fazem das suas próprias vidas nem da vida de outros. A alienação, lato senso, é motor da história modernizadora. Sem esquecer o “ópio do povo”, a religião de importância capital nos conflitos culturais do momento; menos mal do que drogas lícitas e ilícitas. Na contramão do sistema, grande parte do esquerdismo periférico embala-se na euforia quase messiânica da democracia popular (apesar da advertência do socialismo científico, a partir de Marx e Engels) e ambientalismo pueril tendente a sacralizar a natureza com sermões poéticos; mas incapazes de gerar emprego e renda tanto quando a gente precisa. Ou de fazer abandonar velhos hábitos de consumo.
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Primeiro, o povão foi muito bem “educado” para aceitar a fatalidade das diferenças sociais entre ricos e pobres. Já que o Pai (avalista incomparável das loucuras humanas debitadas a erros de fabricação) fez o mundo separado entre bons e maus, fica fácil diabolizar quem não reza pelo catecismo do apartheid original. A excomungada análise marxista da alienação sócio-econonômica se confirma, apesar de tudo, cem anos depois na moderna sociedade complexa. Um alerta que, nos primórdios da revolução industrial, Voltaire vislumbrou no Cândido e mais tarde Georges Orwel (tendo vivido o colonialismo inglês na Índia) acertou na ascensão do nazifascismo com o big brother, em 1984. Hoje o grande irmão é sócio da Midia do lucro custe o que custar, mas a verdade está estampada no efeito estufa. A desertificação levando penúria a todo mundo, inclusive responsáveis diretos pelo fim da História, é como bumerangue da Colonização que retorna com a formidável horda migratória para o Primeiro Mundo. Fenômeno que lembraria a invasão dos Bárbaros no antigo império de Roma.
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Ironia da história: o povão colonizado à beira do caminho das Índias é contemplado por antigas metrópoles como tábua de salvação (países ricos acenam com polpudas doações para conservação da Amazônia forçando o pé de cabra da “internacionalização”, quando deveriam estar prontos a pagar compensações a povos e populações tradicionais lesadas pelo colonialismo).
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Mas, não seria melhor – centros e margens – entrar em acordo para inventar um novo método (caminho) para re-descobrir o “Novo” Mundo? A revolução deveria vir pela educação para aprender a nadar a favor da corrente. Certo. A humanidade filha da animalidade tem que saber que a natureza lei tem leis que se não podem mudar. A Ciência não tem pátria, mas os cientistas tem.
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O povo carece saber que não basta eleger governos progressistas para fazer o estado mudar. Não é tão difícill mudar governos (qualquer conservador hoje promete mudanças), difícil é mudar de verdade estados neocoloniais enraizados, há gerações, no estatuto pétreo das capitanias hereditárias. Não é presidente carismático que faz industrialismo desvairado desconcentrar renda e diminuir miséria e poluição. Doravante, a bola está para o campo da sociedade. Portanto, mudança seja ela climática ou não depende de educação e cultura pública. Quem conquista o poder é quem o não tem. A luta acontece no seio da sociedade, dona do estado. Estado democrático sem controle popular continua sendo estatal, mas não é democrático. Governo é serviço público, mas não é tudo.
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Carlinhos de Oliveira viajou a Paris em 1963, pela primeira vez. Voltou lá de novo sob terror psicológico do AI-5 fugindo da censura, da violência, com medo da tortura. No velho mundo desabafou: "Não quero mais falar, nunca mais quero falar de política brasileira. Os personagens que nela se movimentam são toscos, mesquinhos, incapazes de discernir o futuro da pátria acima de suas pequenas cobiças, seus nojentos rancores, sua vaidade de travesti em baile de carnaval. Trabalhando esse material vil, sujei minhas mãos e meu espírito. Tratarei agora de tomar um banho de arte imortal, e de idéias olímpicas".
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Carlinhos não havia vocação de herói à la Che. Não aguentou o tranco duro das noitadas. Não foi a Cuba nem para beber rum e fumar um Havana, não ficou para ver guerrilheiros do Araguaia ser trucidados por recrutas caboclos treinados a matar e morrer pela pátria, cegos à disciplina dos caporais da velha escola matabugre que fez a façanha dos Bandeirantes. Não viu (nem poderia ver) a caçada a patriotas socialistas mata adentro, cuja execução sumária permanece entre árvores e silêncio. Mera repetição da história do extermínio de índios hostis à Civilização. O charme de Paris chamava pelo polemista e boêmio de Cachoeiro de Itapemirim, como a tantos outros que foram e voltaram tagarelando sobre politica. Carlinhos mergulhou em espuma de campagne e calou-se para sempre. Como se na breve carta à Lucélia Santos ele tivesse dito tudo que os brasileiros devemos saber, sem engano: libertas e serás também.