Fotografia e contentamento
O tema, inicialmente, era a festa dos Caretas, que acontece durante todos os domingos de julho em algumas cidades do Recôncavo, começando pelo dia 2, data histórica da Independência da Bahia. Pela janela do ônibus, a cidadezinha chamada Acupe (92 Km de Salvador) ia se aproximando. A paisagem era aquela do Recôncavo baiano: clima bucólico, casinhas simples e ruas de pedra. A arquitetura de Acupe não é tão charmosa quanto a de Cachoeira (120 Km de Salvador), sua vizinha de território, mas, assim que o inusitado surgiu, criou-se uma aura de encantamento pelo lugar e deu-se, enfim, o charme.
Jovens, a maioria adolescentes, surgiram das vielas estreitas da pequena cidade, com os rostos escondidos por máscaras típicas de filmes de terror. Monstros, bruxas, animais ferozes com os dentes à mostra, estavam representados nessas máscaras feitas de borracha industrializada, contrastando com as roupas visivelmente caseiras, improvisadas por eles mesmos. As roupas, para ser mais exata, era a junção de todo tipo de tecido e plástico, já outros mais caprichados, usavam paletó branco. Sim, paletó branco com a máscara de monstro no rosto. Como não se surpreender?
Eram os Caretas que saiam às ruas de Acupe, correndo pelas ladeiras, atrás dos garotinhos que simulavam medo, quando na verdade queriam mesmo é entrar na brincadeira. Descemos do ônibus afoitos por capturar aquelas cenas e toda a criatividade que apontava delas. Os Caretas correndo atrás dos garotinhos e nós de toda a cena. O dia só estava começando. Decidimos entrar no ônibus e seguir para Saubara (96 Km de Salvador), outra cidadezinha próxima, que também estava em alvoroço.
Lá os Caretas estavam melhor fantasiados. Com acessórios que beneficiavam ainda mais o visual criativo. Lá eles usavam saias de palhas de bananeiras e investiam mais na riqueza de suas roupas. Uns colocavam vestidos xadrez e até vestidos de noiva. A cada esquina apareciam figuras ainda mais exuberantes e os nossos olhos de fotógrafos agradeciam. O dia foi passando e a hora de ir embora se aproximava junto com o pôr-do-sol. Voltamos para Acupe depois de recebermos a notícia de que o grupo do Nego fugido ia passar por lá.
Parecíamos caçadores. A nossa presa era a boa imagem. Enquanto o grupo não aparecia, ficamos na pracinha da cidade esperando a sua chegada. Casais de namorados, crianças, senhorinhas nas janelas e grupos de amigos compartilhavam aquele ambiente, junto com a gente, também na expectativa. Quando algum tempo depois, o som de atabaques se fazia presente e vinha de longe. Atentos, todos, inclusive nós, começamos a nos reunir.
As senhorinhas apareceram nas portas das suas casas, os senhores, sempre mais sérios, ficaram nas janelas e as crianças se misturavam conosco na maior alegria. Éramos a representação desenhada dos versos de Chico Buarque em A Banda: "A moça triste que vivia calada sorriu. A rosa triste que vivia fechada se abriu. E a meninada toda se assanhou pra ver a banda passar cantando coisas de amor". Infelizmente eles não cantavam coisas de amor.
Encenavam com muita veracidade e com toda a alma de artista as dores dos escravos e as suas lamúrias. Crianças de 7 a 10 anos com os rostos pintados de preto e as bocas tingidas de vermelho sangue representavam aquelas pessoas que tanto sofreram durante um período cruel da nossa história. Ao lado dessas crianças-artistas estavam alguns homens com os rostos também em preto, com as bocas vermelhas, vestidos com roupa de vaqueiro e espingarda na mão. Eram os capitães do mato.
Ao som dos atabaques e de músicas típicas do samba de roda, eles se assanhavam, rodopiando sem parar. As crianças-artistas pediam "socorro" ao público, "não queriam morrer": "Sinhá me salve, eu não quero ir pro tronco!" Se jogavam ao chão, contorcendo os corpinhos franzinos. Era algo impactante e muito emocionante. Embora representassem a tristeza na sua forma mais visceral, era bonito de se ver. Aquilo era arte, e melhor, aquilo era o povo atuando e contando a história dos seus antepassados.
É claro que toda essa magia se tornou um prato cheio para nós fotógrafos. Alguns de nós se deitavam no chão, agachavam, colocavam as máquinas em vários ângulos para não perderem nenhum segundo do que viam. E voltamos para casa, extasiados e felizes por termos capturado belas imagens, as nossas mais valiosas presas.
Flavia Vasconcelos, Jornalista, atua na área de jornalismo cultural e literário. Presta assessoria em eventos culturais em Salvador (exposições) e repórter de cultura no site À Queima Roupa.