Por Elias Jabbour*

Por Elias Jabbour*

Quer conhecer a China de verdade? Aquela que cedo madruga sem esperar a ajuda divina? Um povo cujo horizonte moral é moldado por uma filosofia confuciana e taoísta surgida em momento histórico quase contemporâneo à filosofia clássica grega? Onde ao mesmo tempo em que uma pessoa se diz marxista, ela reafirma seu budismo, transforma Mao em uma divindade, demonstra costumes confucianos (senso de hierarquia e respeito ao mais velhos) misturados com uma rebeldia típica taoísta…

Então nada melhor que evitar hotéis afastados do centro, fugir dos círculos “ocidentalizados” e buscar uma cama num albergue qualquer situado numa das centenas de ruas estreitas (hutongs) que circundam o centro de Pequim. Eis um pedaço da China profunda apenas a alguns metros da Praça Tiananmen.

Homem, natureza, ideologia e forças produtivas

Comecemos nossa conversa concentrando tintas sobre generalidades teóricas. Sejamos radicais (ir à raiz, história) e sintéticos.

Explicar qualquer fenômeno que esse expressa na subjetividade humana demanda a plena compreensão de uma gama de determinações que formam o concreto. No caso da formação de uma subjetividade humana e nacional de caráter chinês, deve-se se compreender a cristalização de seu corpo filosófico. Muitos, que ainda vagam na fronteira que separa Kant de Hegel, afirma que “pensamento é matéria”. Pensamento não é matéria, mas é causa e consequência da evolução da matéria. Em curtas palavras, o pensamento gerido por determinada sociedade é expressão do nível de desenvolvimento das forças produtivas, do estágio de acúmulo material obtido por diferentes povos e nações.

Surge, então, outra questão – de crucial importância à compreensão – de diferentes dinâmicas sociais: o que são forças produtivas e que tipo de relação elas expressam?

Ora, as forças produtivas expressam o nível de relação intrínseca nas relações entre homem e natureza. Na Crítica ao Programa de Gotha (1875), Marx desfere cortante crítica à conclusão para quem o “trabalho é a fonte primária de toda riqueza”. O maior filósofo de todos os tempos apontou a natureza como a fonte nodal da riqueza. Logo, entrelaçando o surgimento e as características de determinada expressão ideológica e filosófica, a primeira a coisa a fazer é observar as condições naturais de reprodução humana. Abre-se, assim, um campo largo para a devida relação entre forças produtivas materiais e erupção de determinadas ideologias, nefastas ou não, messiânicas ou tolerantes.

Dos grandes vales férteis da Ásia das Monções ao Mediterrâneo Oriental

Salvo engano no capítulo XIV do Livro 1 de O Capital, Marx faz a devida relação entre trabalho necessário e excedente em diferentes pontos do globo. A partir desta análise Marx viria a provar que o capitalismo triunfou justamente onde as condições naturais eram nada propícias, onde em suas próprias palavras, “o homem teve de dominar a natureza”. Pois bem, onde homem não teve de dominar a natureza, ao contrário bastava um convívio pacífico tendo por base grande fonte de água e terra, o trabalho necessário para a reprodução humana era muito menor que em espaços desérticos ou árticos.

Pois bem, os grandes vales férteis entre os rios Amarelo e Azul (China), Ganges (Índia), Nilo (Egito) e dos rios Tigre e Eufrates (Mesopotâmia) são considerados como os berços civilizacionais. “Civilizacionais”, o sentido, mais amplo do termo, pois a tranquila convivência entre homem e natureza permitiu tanto saltos espetaculares no desenvolvimento das forças produtivas (surgimento precoce, cerca de quatro mil anos atrás, de economias mercantis dadas os crescentes excedentes de produção agrícola e da invenção do arado de boi), quanto (e consequentemente) o surgimento de filosofias tolerantes e civilizatórias (taoísmo, confucionismo e hinduísmo). Na China, por exemplo, a influência deste tipo de expressão filosófica/ideológica pode ser percebida nos inúmeros quadros e desenhos que se vendem em lojas ou mesmo nas ruas onde uma verdadeira “ode à natureza” é descrita.

Abrindo parentese, eis o sentido histórico da proclamada “sociedade socialista e harmoniosa” perseguida pelos atuais herdeiros de Mao Tsétung no poder central do país. Harmonia entre homem e natureza…

Interessante notar que Sócrates, Platão e Aristóteles, fundadores da moral ocidental, sistematizaram propostas comportamentais semelhantes e quase contemporâneas a de Confúcio e Laotsé. Cabe a nós nos perguntar, pesquisadores ou simplesmente “curiosos”, a razão pela qual enquanto o confucionismo e o taoísmo estarem ainda presentes e vivos na formação moral do povo chinês, no ocidente os fundadores da moral ocidental (filosofia clássica grega) estão devidamente colocados na lata de lixo da história. Interessante elucubração. De imediato deixo a dica para irmos além de Michel Foucault que brilhantemente, apesar de descobrir o desdobramento da subjetividade ocidental na lógica do “vigiar e punir” não apontou os verdeiros mecanismos do desenvolvimento histórico desta anomalia superestrutural.

Mudando foco, analisando os fenômenos desta forma não fica complicado de entender que o surgimento de filosofias de tipo “destino manifesto”, “povo eleito” e afins são produto de regiões do globo onde o homem teve de arduamente dominar a natureza. Por exemplo, do Mediterrâneo Oriental (Doze Tribos de Israel) se espraiando à Europa Ocidental. Este tipo de relação dominadora ante a natureza levou o homem europeu acidental a transitar do escravismo ao feudalismo, daí até a pequena produção mercantil num ritmo histórico muito mais demorado que nos “berços civilizacionais”. Porém, com resultados que desembocaram numa transição ao capitalismo como necessidade histórica e espacial ao contrário de regiões como o Sudeste Asiático, onde a “generosidade da natureza” não levou o homem a pensar em meios e maneiras de multiplicar ganhos de produtividade, nem tampouco, em formas de dominar terceiros territórios.

Daí de um lado a atual batalha entre imperialismo de um lado e, de outro, da “ascensão pacífica” entronizada pela atual liderança chinesa.

Relações diversas

Vamos tentar dar um pouso definitivo no concreto, tentando relacionar os postulados da filosofia clássica chinesa com o dia-a-dia do hutong em que me encontro.

O trabalho por aqui começa bem cedo. Praticamente, de segunda a segunda, desde as sete da manhã percebe-se um movimento denunciando a abertura do comércio. Sendo um local onde a economia de mercado surgiu há milhares de anos, não é de tortuosa constatação o fato de num hutong com pouco menos de um quilometro, existir mais estabelecimentos comerciais que quase na totalidade da rua do Catete no Rio de Janeiro. Também, fica mais tranquilo entender a ferocidade comercial chinesa e o sucesso do “socialismo de mercado” por estas bandas. Os chineses apreenderam que a melhor maneira de levar a melhor nesta contenda de dimensões históricas (imperialismo x socialismo) é engolir o imperialismo comercialmente. Aliás, Lênin percebeu que era por aí (comércio internacional) que a “coisa” iria ser resolvida.

Abrindo parentese, tanto o confucionismo quanto o taoísmo surgem de bases sedimentadas sob uma rústica dialética (ying e yiang) e um materialismo (muito) mais avançado que de Feuerbach, formando uma base teórica/histórica de uma “ideologia do trabalho” disseminada, por exemplo, ao Japão. A existência de deus é algo estranho a um chamado “reino dos céus”, espiritualista mas não deísta. A hierarquização do poder desde a base familiar até o topo do poder estatal é sustentada pela “experiência adquirida” e a “capacidade de prover o bem comum”. Daí, em Confúcio ser importante a “ordem na casa”, mas sob o requisito do merecimento e do “poder celestial” ser “revogável pelo povo”.

Pode parecer estranho às gerações atuais ocidentais ver um “velhinho” de noventa anos abrir a boca e todos ao seu redor ficar quietos. Assim como considerar Mao Tsétung um “ditador” quando, a bem da verdade, sua “deificação” é “eterna enquanto dura”. Importante salientar isso, pois se o ocidente credita às reformas de 1978 o sucesso da China de hoje, para o povo, o “trabalhador que lê” chinês (além dos atuais herdeiros de Mao) tem muito bem em conta que 1978 é continuidade de 1949 e que sem 1949 não existiria 2009.

O retrato de Mao que domina a Praça Tianamen continuará por lá enquanto Hu Jintao e as próximas gerações dirigentes forem capazes de tocar adiante essa nação de alguns mil anos. Não somente isso. Lembremos de uma histórica declaração de Deng Xiaoping dada em meio ao fogo empreendido pelo ocidente durante e após os acontecimentos de junho de 1989 em Tiananmen, como segue; “o socialismo não acabou (…), pois enquanto a bandeira vermelha continuar sendo hasteada em solo chinês, é sinal de que o socialismo continua sendo a melhor alternativa aos povos do Terceiro Mundo (…).

Baita responsabilidade desses dirigentes…

Um povo que ri e luta…

O comércio pega fogo por aqui. O jogo da oferta e a procura é temperado com a “tolerância”, no pequeno comércio, a uma banda entre o preço mínimo e o preço máximo. Tudo, dentro da lógica do ying e do yiang: é passivo de uma solução que contente ambas as partes, a oferta e a procura. Eles vivem sorrindo. A expressão normal de um chinês pode parecer exótica, mas não é. A natureza generosa presenteou esse povo com uma estado permanente de “sorriso no rosto”, bem diferente dos europeus e judeus (e paulistas) que acham bonito viver e levar a vida com a cara amarrada, alheios a uma maior proximidade, contatos e uma conversa menos superficial, afora business e o que vai dar na próxima reunião do Comitê de Política Monetária (COPOM), de olho no rendimento dos títulos, que detém, da dívida pública brasileira.

Num calor terrível que assola Pequim nesta época do ano não é incomum presenciarmos almoços e jantares ao ar livre, numa clara reminiscência das comunidades agrárias, igualitaristas e milenares chinesas. O fator “camponês” está presente nos pratos servidos a céu aberto: uma quantidade enorme de comida, parecendo um lar interiorano brasileiro em que se serve, no café da manhã, além de pão com manteiga, um delicioso mix de “café :com bolo de fubá”. É a “China Profunda” nos quarteirões muito próximos do portão de entrada da Cidade Proibida.

O taoísmo que se conhece no Brasil é aquele que busca a harmonia humana a partir de um contato benéfico com a natureza. É isso aí, mas diferente do confucionismo (apesar de não negá-lo – preocupado com estado das coisas no âmbito da administração pública (ética, por exemplo, expresso no fato de o instituto do concurso público existir por aqui há cerca de 1500 anos, daí o nível de excelência e capacidade política dos dirigentes do Estado e do Partido Comunista da China – PCCh) – o taoísmo engendrou na subjetividade do camponês simples chinês, um presente estado de rebeldia e sentimento de justiça tão caros à nossa formação cotidiana de um comunista, seja no Brasil, seja na China. Isso se revela no dia-a-dia em verdadeiros “quebra-paus” entre as pessoas comuns contra alguma autoridade policial (que justamente por esse motivo não anda armado por aqui, ao contrário das “democracias” ocidentais”) ou diante de algum comerciante mais experto.

Mao aproveitou-se muito deste espírito rebelde camponês. Eis aí a essência do “pensamento de Mao Tsétung”. A consequência “natural” desta sociedade onde a dialética remonta a milênios foi um devido “chega-prá-lá” quando a União Soviética passou a querer se intrometer demais nos assuntos e no “modelo” a ser seguido pela China.

Unidade na diversidade subjetiva

Muito bom puxar papo com algum morador daqui. Perguntado se é comunista, ele diz que si, Perguntado se é budista, idém. Inquirido sobre Confúcio, prontamente se coloca como seguidor. Lao Tsé, foi “um grande homem. Ou seja, a um marxista educado pelos manuais soviéticos produzidos na época da decadência ideológica do regime, algo pode parecer estranho. Na hora vem aquele papo-furado de “revisionismo” e bravatas inconsequentes sobre a superioridade do “marxismo-leninismo”.

Mas, só podemos decifrar a vitória dos exércitos de Mao Tsétung e Zhou De se observarmos que tudo que é externo à China acaba que por ser absorvido e subsumido ao materialismo intrínseco ao confucionismo e ao taoísmo. O budismo que nasce na Índia e ganha uma expressão ultrareacionária no Tibet, na China han se torna algo contraditório com o marxismo. Ao contrário, pois o “budista” chinês sempre foi um agricultor livre ao contrário do camponês cristão ortodoxo russo que sempre fora um servo. Logo, independente de haver reencarnação ou não, o negócio é “se virar na Terra”. Outro exemplo desta absorção e não supressão de influências externas: os muçulmanos chineses são os únicos que comercializam álcool (aqui no hutong existem três restaurantes muçulmanos vendendo álcool de todos os tipos e o ocidente com essa conversa de “opressão cultural”. Fala sério!!!) e onde aos homens somente é permitida uma única companhia feminina (e não “sete”). É o “islamismo com características chinesas”.

Neste momento fica irresistível não lembrar de minha querida, porém falecida mãe, Maria da Luz Jabbour. Paraibana, guerreira e que nunca deixou a peteca cair para colocar um prato de comida na mesa para seus dois filhos. Nunca compreendi como ele poderia se dizer católica, curtir uma macumba e de vez em quando passar umas horas pela Igreja Universal. E ainda votar no Lula (1989, 1994 e 1998). O segredo está no espírito prático, elo de convergência entre a subjetividade chinesa e brasileira.

Hoje eu entendo:minha mãe é expressão, na parte, de um todo humano que foi capaz de fazer nossa Pátria transitar da Idade Média (1930) à Idade Contemporânea (1980); porém, sem nunca perder a ternura (“Maria, Maria” – Milton Nascimento).

Já os chineses a expressão deste espírito generoso e lutador está nos anais da história pela passagem dos 60 anos da maior revolução social do século XX, na cotidiana rotina de hasteamento da “bandeira vermelha de cinco estrelas” e no presente à humanidade sintetizada na superação dos males e da indignidade da fome e da pilhagem estrangeira.

*Geógrafo e pesquisador da Fundação Maurício Grabois