Maranhão: antigo e novo
O Maranhão foi como é sabido, uma das províncias mais ricas do Império. Quase isolado do resto do Brasil, enquanto o principal meio de transporte foi o navio à vela, dado que a
conjugação da Corrente do Brasil com o alíseo fazia com que o caminho mais curto de São Luis a Fortaleza passasse pelo mar dos Sargaços e Lisboa, vivia também uma conjuntura econômico-social sui generis. Pensava mais com a cabeça de Coimbra e de Paris, do que do Rio de Janeiro. Não por acaso, era a Atenas Brasileira.
O navio a vapor viria romper esse isolamento, já que podia vencer a corrente oceânica e o vento, ambos correndo na direção geral Leste-Sudeste a Norte-Noroeste.
Mas restava outro fato, capaz de singularizar a conjuntura maranhense no contexto nacional. Com efeito, não se havia cumprido no Maranhão, como também em Mato Grosso – a condição nulle terre sans seigneur. Por outras palavras, persistia a possibilidade de que a abolição da escravidão representasse não um passo à frente, mas um passo atrás. Não a passagem ao feudalismo, um modo superior de produção, mas o retrocesso à tarde e à cubata, isto é, ao comunismo primitivo.
Quando chegou a 13 de maio, já o vizinho Ceará havia, de fato, abolido a escravidão por uma série de posturas municipais. Claro está que isso nem sempre significava a liberdade para os escravos, os quais eram, não raro, contrabandeados para o Sul e, inclusive, para o Maranhão. Mas significava que a economia cearense, ou melhor, o lado interno do pólo interno da dualidade havia passado ao feudalismo, um modo mais avançado de produção.
O Maranhão, como Mato Grosso – estava na transição entre o Nordeste Oriental uma área de virtual monopólio da terra pela classe dos fazendeiros, e a Amazônia, que era terra de ninguém. Assim, libertados os cativos, estes usaram sua liberdade, como era natural que o fizessem, voltando à cubata – uma forma legalizada de quilombo, como aglomerados que chegaram aos nossos dias – ou tornaram ao nomadismo copiado dos índios. (Nossa Universidade está a dever-nos um estudo da importância da mão-de-obra indígena, na composição da mão-de-obra escrava, no Maranhão).
Assim, enquanto ao Sul-especialmente no Sudeste – a Abolição representava um formidável passo à frente, o Maranhão passou a ser a “Terra do já Teve”. Especialmente a Guiana Maranhense, isto é, a área ocidental do Estado, entrou a caminhar, a passos largos, para a pré-história. Burgos ricos, como Alcântara, Turiaçu e, suponho Engenho Central, etc., entraram em decadência.
É certo que, concomitantemente com o virtual colapso da Agricultura, na esteira da Abolição assistíamos a um desenvolvimento singular da indústria da transformação, especialmente em São Luís. Assim, segundo o Prof. Jerônimo de Viveiros – meu ilustre mestre de história – com 16 fábricas, o Maranhão era o segundo parque industrial brasileiro, aí por 1895. Seguindo-se a Minas Gerais, com 37 fábricas e acima da capital Federal e ao Estado do Rio de Janeiro, da Bahia e de São Paulo que, nessa ordem tinham 15, 14, 12 e 10 fábricas, somente.
Era o apagar das luzes de um período brilhante de nossa história. Somente por meados dos anos 60, demográfica e economicamente o peso de nossa velha província, no corpo do Brasil, voltaria a começar a crescer. Demograficamente, somente em 1960, voltaríamos aos três por cento que tínhamos em 1890 – imediatamente após a Abolição.
Entrementes, o Maranhão foi a “Terra do já Teve”. Além das fábricas de fiação e tecelagem, inclusive de lã, meias e cânhamo, tínhamos tido até fábricas de fósforos e pregos, raros no Brasil de então. A epopéia rodoviária, quebrando nosso isolamento dourado, que faria com que toda área servida pela rica rede potamográfica, pela ferrovia São Luís-Teresina, pela importante frota de barcos à vela gravitasse em torno do empório da Praia Grande, o surto rodoviário viria subverter esse estado de coisas.
Com efeito, o que restava do nosso orgulhoso parque industrial da passagem do século – que não se modernizara – quebrou-se como a panela de barro em choque com a panela de ferro da fábula ao entrar em competição aberta com a nóvel indústria sulista e, inclusive, com a indústria do Nordeste oriental.
A seca de 1958, no Nordeste, deu um golpe fatal nesse parque industrial. Os caminhões que vinham buscar o arroz do Mearim, além de flagelados nordestinos, traziam os produtos industriais competitivos com os supridos por nossas fábricas sobreviventes. O taboado lançado sobre a ponte ferroviária entre Teresina e a velha Flores foi o golpe de graça.
Mas o surto agrícola, nas cinzas da velha mata, compensou com sobras essa perda. Era outro processo que se abria. Queimada a mata uma vez, não tendo mais de onde tirar madeira para a cerca e para queimar, o lavrador maranhense o declarava “terra cansada”. O migrante do Nordeste oriental, muito mais gregário, não raro emitia outro parecer. Vi roçados nordestinos, fileiras de mamona, mas protegida, toda a área por uma única cerca, o que implicava numa colossal economia de material.
Fui encontrar em Bacabal nada menos que um projeto de declará-lo “município agrícola”. Uma cerca única, envolvendo todo o município, e protegendo suas lavouras contra os bois dos municípios pecuaristas vizinhos, não estava fora de cogitações.
Essa utopia, que eu o saiba não teve seguimento e, ao que ouvi, em minha recente passagem por São Luís, Bacabal é hoje um município pecuarista. Primeiro o maranhense expelido pelo nordestino oriental, depois, este último expelido pelo boi.
Aí por princípios dos anos 60, conversando sobre esse processo – na primeira fase, quando entrava o nordestino e saía o maranhense – com o então Governador de Goiás, Mauro Borges dele ouvi o reverso da medalha, isto é, que havia em seu Estado, nada menos que 53 prefeitos maranhenses. O surgimento do Estado do Tocantins, em nossos dias, não deve ser estranho a esse processo.
Na seqüência natural deste, estavam implícitos dois movimentos de “fronteiras”: a) os investidos contra a mata amazônica, com seus hoje notórios desastrados efeitos ecológicos; b) a
escalada dos chapadões e dos cerrados, o que implicava na introdução de uma agricultura de novo tipo-tecnologicamente apoiada nas novéis indústrias mecânicas e químicas e na ciência agronômica e, sociologicamente, sob, o comando do novo capitalismo agrícola brasileiro, que está tomando o lugar do velho latifúndio feudal.
Parece-me claro que a penetração do capitalismo no campo – efeito socioeconômico das escaladas dos cerrados e das chapadas, não poderá deixar de contagiar-se à catinga nordestina.
Um pouco mais demoradamente, porque ao contrário do cerrado, que estava desocupado, a caatinga não está. Mas o campo de batalha dessa nova investida bandeirante, que é a penetração do capitalismo no campo, são as áreas problemas do país.
Os vastos campos da Baixada Maranhense, abrindo a porta a uma promissora agricultura irrigada, com água dos rios que formam o Golfão, parece-me igualmente estar na ordem natural das coisas, como área de eleição para o emergente capitalismo agrícola brasileiro.
Mas, para encerrar essas notas, não poderíamos deixar de lado as perspectivas da nova indústria maranhense de transformação. O Porto do Itaqui, ao emergir como porta aberta para Europa e América do Norte, tinha que ser o ponto de apoio para a alavancagem do processo todo.
Lembro-me de que, sendo Presidente da República, Jânio Quadros, eu, atendendo a uma ordem do chefe do governo, encaminhei-lhe parecer onde sugeria a continuação da então BR-24, que começava na Paraíba e, havendo cruzado o Piauí, penetrara no Maranhão, na direção geral da Amazônia. Lembro-me de que dizia aquela estrada somente devia parar – se parasse – na fronteira do Peru, e recomendava que os engenheiros incumbidos da locação da estrada estivessem de olhos bem abertos no cruzamento do divisor de águas entre o Tocantins e o Xingu. Sabemos, hoje, que a estrada não parará na fronteira do Peru e que Callao é seu término natural. Por outro lado, no divisor de águas entre o Tocantins e o Xingu está, nada menos, que Carajás.
Hoje, atrevo-me a pensar numa ferrovia projetando a Carajás-Itaqui para o Oeste, na direção geral de Callao, o que faria de Itaqui a porta do Peru para Europa e América do Norte e de Callao nossa porta natural para o Pacífico.
As conseqüências desse esboço ciclópico para o Maranhão – naturalmente complementado pela conclusão da ferrovia Norte-Sul (a Estrada Tocantina, neste primeiro trecho já lançado) não podem ser exageradas. Como meio de transporte – excluído o duto, onde couber – a ferrovia emergiu como o mais eficiente meio de transporte de cargas pesadas. Não é por acidente que o Japão no processo de transportar suas cargas para a Europa, esteja preferindo, aos tradicionais caminhos marítimos por Boa Esperança e pelo canal de Panamá, as ferrovias canadense e transiberiana, apesar dos transbordos – em Vancouver e Terra Nova, e em Vladivostok, respectivamente.
É claro que teremos que vencer dois formidáveis obstáculos, a saber, a Floresta Amazônica, com seus grandes rios e os Andes – aqueles e estes perpendiculares ao sentido da marcha – mas não creio que esses obstáculos sejam maiores que o “permafrost” agravado pelos cimos da Sibéria oriental, que não impediram o lançamento da BAMUR. Ora, somente pensando GRANDE, podemos formar juízo sobre as perspectivas que estão abertas para o nosso Maranhão.
Minha recente viagem ao Maranhão – maio/89 – persuadiu-me de que a retomada pelo nosso Estado do seu antigo lugar de grande centro industrial já começou. Com uma peculiaridade: que, em vez de indústria leve, é indústria pesada o que teremos, centrada na siderurgia e na metalurgia em geral. Embora geograficamente situado no Pará, é o Porto de Itaqui que alavanca o projeto de Carajás, apenas começando, até por que não tardaremos a “redescobrir” o antracite do Xingu, isto é, do Rio Fresco. Ora, por perto da Ponta da Madeira é que esse antracite se encontrará com nossas hulhas pobres, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Há muito que sabemos que, combinadas, com antracite, essas hulhas pobres forneceriam um coque perfeito. (A menos que, levado a termo o projeto ferroviário Norte-Sul, a localização lógica do grande projeto siderúrgico se desloque para o entroncamento ferroviário Norte-Sul com Carajás, tanto mais quanto, para Açailândia, poderá confluir o gás natural amazônico).
Mas São Luís será sempre a localização privilegiada para a indústria que converterá os lingotes de Açailândia em produtos finais.
Os exclusivismos regionalistas brasileiros – inclusive os Paulistas e Nordestinos – estão morrendo. Eles refletem imperativos geopolíticos exemplificados aqui com o casamento da corrente do Brasil com o alíseo, e imperativos geoeconômicos, herdados do antigo latifúndio feudal. O Brasil unifica-se, cada vez mais energicamente e, nessas condições o que importa decisivamente são os fatores de localização.
Os quais nos apontam uma posição de elite, no vigoroso organismo em que se converteu o Brasil.