O Nordeste e o Sudeste na divisão regional do Brasil
Mudando os critérios, os dados de 2004 aparecem ligeiramente alterados pelo próprio IBGE, na seqüência 2002 a 2006, sem alterar o essencial da tabela abaixo:
1985 1990 1995 2000 2004
Norte 3,8 4,9 4,6 4,6 5,3
Nordeste 14,1 12,9 12,8 13,1 14,1
Sudeste 60,2 58,8 58,7 57,8 54,9
Centro-Oeste 4,8 5,2 6,0 7,0 7,5
Sul 17,11 8,2 17,9 17,6 18,2
O Nordeste é a região mais estudada e talvez a mais mal interpretada do Brasil, pois sendo atrasada e sofrida (semi-árido, latifúndio feudal, coronelismo, alto desemprego, etc.) não é fácil explicar como conseguiu manter intacta sua participação no PIB nacional de 1985 a 2004 (14,1 %), enquanto São Paulo diminuiu sua presença de 36,1% para 30,9% no mesmo período e o conjunto do Sudeste, do qual São Paulo faz parte, e que é o centro dinâmico nacional, mais do que o Sudeste e principalmente mais do que São Paulo. Em resumo: a periferia teve um ritmo de crescimento econômico superior ao centro. Afinal, o que está acontecendo com a divisão regional e com a relação centro-periferia no Brasil? Para tentar decifrar, mesmo sumariamente, este enigma é preciso começar por um enfoque histórico.
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Ignacio Rangel enfatizou a ocorrência de três meias-revoluções na história brasileira: a Independência, a Abolição-República e a Revolução de 1930, que impulsionaram o país e diminuíram seu atraso em relação ao centro do sistema capitalista mundial . Na verdade, na aguda visão de R. Prebisch, o Brasil “cresceu para dentro” nos períodos depressivos da economia mundial e “cresceu para fora” nos períodos expansivos mundiais, aproveitando a contração ou a expansão da divisão internacional do trabalho . Aliás, estes movimentos fundamentais da economia mundial e da brasileira são ignorados pela maioria dos intelectuais cepalinos e dependentistas, que preferem combinar atraso e estagnação, quando a realidade brasileira de 1930 a 1980 foi de atraso e dinamismo.
Com a Independência frente a Portugal (a primeira meia-revolução) nasceu o capital comercial brasileiro, sob forma de firmas export-import, localizadas nas praças do Rio, Recife, Salvador e outras menores, controlando suas hinterlândias regionais. É bom lembrar que as referidas firmas eram comandadas por imigrantes europeus, portugueses em maioria, nascidas no período colonial, mas que com a Independência se livraram do monopólio comercial da metrópole portuguesa, se tornaram nacionais e se vincularam ao dinâmico capitalismo industrial inglês. Esta aliança estimulou os fluxos comerciais dirigidos pela Inglaterra, os sistemas portuário e ferroviário, o transporte fluvial e marítimo de cabotagem, etc. A Abolição-República modernizou as relações de trabalho no Brasil, mas as relações internacionais acima expostas permaneceram as mesmas até 1930, quando foram rompidas.
O Brasil chegou até o século XX “sob forma de um imenso território muito desigualmente ocupado e apresentando quase que exclusivamente ao longo da costa formações econômicas regionais, geralmente estruturadas em torno de um porto-empório, orientadas mais para o comércio exterior do que para o comércio com as outras regiões, tendo cada uma como espinha-dorsal um sistema regional de transportes, o qual servia de base a um esquema regional de divisão social do trabalho”, conforme assinalou Ignacio Rangel.
Ora, a terceira meia-revolução, isto é, a Revolução de 1930, mudou drasticamente este panorama. A Revolução de 1930 foi em grande parte conseqüência da crise mundial de 1929 e aparentemente um simples conflito entre facções oligárquicas brasileiras, em prejuízo da oligarquia paulista do café, além de uma simples substituição da Inglaterra pelos EUA no comando externo da economia brasileira. Esta visão é aparente, pois a Revolução consistiu em enorme terremoto na vida nacional, pois de 1930 a 1980 a economia cresceu a taxas comparáveis às do Japão e da URSS, as mais altas do mundo. Até 1930 a economia brasileira como um todo, composta de diversas economias regionais, sustentou os preços do café. A cafeicultura funcionou como motor da economia brasileira, puxando as economias regionais até a Primeira Guerra Mundial, quando os preços do café despencaram e para agravar a situação em 1920 começou o longo período depressivo mundial que só terminou após a Segunda Guerra Mundial. Isto quer dizer que durante toda a década de 20 as economias regionais periféricas sustentaram São Paulo, sem nenhuma contrapartida. Assim sendo, em 1930, as oligarquias agrárias ligadas ao mercado interno (Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Sertão do Nordeste) apearam do poder as oligarquias agrárias voltadas às exportações, principalmente a cafeeira.
Aliás, foram as oligarquias agrárias baseadas no mercado interno que dirigiram o processo de industrialização do Brasil, podendo-se dizer que Getúlio Vargas desempenhou papel semelhante ao de Bismarck, ao substituir no poder os comerciantes export-import ligados à Inglaterra pelos industriais nacionais financiados pelo sistema bancário norte-americano, acelerando o crescimento econômico e provocando um enorme rearranjo na organização territorial do país: o “arquipélago” brasileiro, constituído pelas “ilhas” voltadas para o exterior e vigente até 1930, foi rapidamente costurado em um único espaço nacional, cujas fronteiras com o exterior foram reforçadas, além de dissolvidas as “fronteiras” inter-estaduais, com a supressão dos impostos entre os estados da federação e a crescente rodoviarização. A rápida industrialização dos anos 30 deu origem a um centro dinâmico interno, dirigido pela indústria paulista, que passou a comandar as regiões periféricas, situadas nas extremidades do território unificado economicamente (Amazônia, Nordeste, Centro-Oeste e Sul), como provou C. Furtado .
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A indústria paulista era a mais preparada de 1930 a 1960 para liderar a substituição de importações de produtos manufaturados (têxteis, cimento, etc.), assim como tinha condições para estimular a substituição de importações agro-pecuárias na sua hinterlândia (frutas, laticínios, algodão, etc.). Por outro lado este centro dinâmico que ia se constituindo, provocava a reestruturação de todas as regiões periféricas acima citadas, em geral beneficiando-as. De todas as regiões, o Nordeste passou por maiores mudanças: destruições de setores incapacitados, como numerosos estabelecimentos têxteis, assim como grande expansão de matérias-primas como óleo de babaçu, algodão em pluma, etc. Nos anos 50 do século XX, o Nordeste tomara consciência do seu atraso num momento paradoxal, isto é, exatamente quando a região voltava a ganhar dinamismo, como apontou I. Rangel . Antes de discutirmos os impactos positivos e negativos do dinamismo paulista no Nordeste, tentaremos realizar um rápido balanço dos impactos em outras regiões.
Na Amazônia, que ainda era uma grande “ilha” até a construção da Belém-Brasília, a crise da borracha desde o início do século XX, somada à crise depressiva mundial provocou forte queda da produção e da população regional: de 4,70% dos brasileiros em 1920, a região passou a abrigar 3,55% em 1940 e apenas 3,67% em 1960. Entretanto, a economia amazônica reagiu de várias maneiras: os seringueiros passaram a produzir em maiores proporções seus sustentos alimentares (farinha de mandioca, caça e pesca, etc.), os engenhos de açúcar e aguardente substituíram importações regionais, assim como Belém do Pará desenvolveu indústrias de bens de consumo simples (massas alimentícias, refrigerantes, sabonetes e perfumes, etc.). Além disto, ainda nos anos 30 a Amazônia passou a remeter ao Sudeste borracha natural para as fábricas de pneus do Rio (Brasil) e de São Paulo (Pirelli, Firestone e Goodyear), além de guaraná, sisal, etc.
O Centro-Oeste já nasceu integrado ao Sudeste, inicialmente sob o comando do Rio de Janeiro. Saint Hilaire assinalou no início do século XIX, o esquema que ligava a criação de gado bovino em Goiás às engordas do Sul de Minas Gerais e aos abatedouros da capital do Brasil e após 1850 chegou a vez do escoamento do gado bovino do Pantanal de Cuiabá. Gradativamente, o Centro-Oeste se tornou gigantesca região pastoril, mas representava apenas 2,48% da população brasileira em 1920, alcançando 3,05% em 1940, 3,34% em 1950 e 4,24% em 1960, ainda por conta da expansão pecuária, mas também dos transportes ferroviários e rodoviários, de alguma reforma agrária e das construções de Goiânia e de Brasília, como reflexo direto do crescimento brasileiro, em particular de São Paulo.
O Sul, tal como o Centro-Oeste, se integrou precocemente ao Sudeste; as tropas de mulas, cavalos e bovinos do Rio Grande do Sul faziam o percurso terrestre até a Feira de Sorocaba-SP, que ainda funcionava até inícios do século XX, primeiro abastecendo a economia do ouro de M. Gerais e depois a economia cafeeira fluminense e paulista. A colonização européia no século XIX também se vinculou ao Sudeste, fornecendo banha e carne de porco, vinhos e laticínios de qualidade. Logo as referidas produções passaram a concorrer com as do Sudeste (suinocultura, avicultura, milho, etc.), assim como as produções industriais (têxteis, azulejos, motores, geladeiras, carrocerias, etc.), que foram dominando o mercado interno e disputando os mercados externos. Empresas como a Consul, WEG, Sadia, Gerdau. Marcopolo, foram se consolidando e o Sul foi deixando de ser periferia para se tornar parte do centro-dinâmico. Nos anos 50, J. Tricart disse a Milton Santos que o “Brasil era uma da metade de Minas Gerais para o Sul e outro para o Norte”, pois no primeiro predominava a pequena e média propriedade e no segundo o latifúndio . De 1920 a 1960, o Sul saltou de 11,54% da população brasileira a 16,73%, graças principalmente ao Paraná e Santa Catarina.
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A indústria paulista tornou-se o centro dinâmico interno do Brasil após 1930, paralelamente à continuidade da inserção do país ao centro do sistema mundial capitalista (EUA, etc.), que estava em crise. A indústria paulista passou a integrar e a reestruturar as economias regionais, como tentaremos mostrar, voltadas até então basicamente ao exterior. Paralelamente à criação da economia nacional, integrando as economias regionais isoladas, nasceu uma nova região, o Sudeste. É curioso lembrar que o Nordeste foi a primeira região brasileira: nasceu nos séculos XVI e XVII como território português, enquanto o Sudeste, como região articuladora da nação só nasceu após 1930. Nos anos 50 do século XX, o general Golbery de Couto e Silva, com sua visão geopolítica, percebeu que o Brasil tinha várias periferias, mas também um centro articulador, que chamou de “Triângulo” São Paulo-Rio-Minas Gerais.
Além do “boom” industrial, a agricultura do Sudeste, principalmente de São Paulo, passou por enormes transformações. O estado de São Paulo que até 1930 era um “mar de café” com poucas exceções, como sua fachada atlântica, a região de Sorocaba e o oeste paulista ainda em matas, desenvolveu uma agricultura moderna, em semi-círculos, obedecendo fielmente ao esquema agrário de Von Thünen . A capital paulista foi deixando de ser a “metrópole dos fazendeiros” (P. Monbeig), para se tornar a gigantesca metrópole urbano-industrial do Brasil, ofuscando o Rio de Janeiro e estimulando a criação espacial em semi-círculos de “cinturões” de abastecimento ao seu redor: 1) cinturão verde horti-granjeiro, sob direção da Cooperativa Agrícola de Cotia, 2) cinturão frutícola (uvas, figos, etc.) em Jundiaí e arredores, 3) bacia leiteira do Vale do Paraíba e Mantiqueira, 4) cinturão da cana-de-açúcar em Piracicaba, Ribeirão Preto, etc., 5) cinturão do algodão e engorda de gado bovino no Oeste Paulista e 6) cinturão da criação extensiva de bovinos no Centro-Oeste.
Como no esquema espacial agrário descoberto na Europa por Von Thünen em inícios do século XIX, no Brasil também os cinturões intensivos estão nas proximidades da capital paulista e os extensivos mais distantes, mas é curioso lembrar que cronologicamente, o primeiro abastecimento a se estruturar foi o de carne bovina, com a criação extensiva em Goiás e Mato Grosso, a engorda de gado no Sul e Minas Gerais e o abate no Rio de Janeiro, ao longo de todo o século XIX. Com o tempo este esquema passou a ser comandado por São Paulo, enquanto o Rio foi perdendo espaço. Os demais cinturões foram surgindo e se consolidando de 1930 a 1960 nos arredores mais próximos de São Paulo.
Vários destes cinturões acima citados se tornaram abastecedores não só de São Paulo e complementarmente do Rio, como abastecedores das grandes cidades do Norte e Nordeste, de Manaus a Salvador, como o caso da produção hortícola da Cooperativa Agrícola de Cotia, no fornecimento de leite em pó da Nestlé, que foi oligopolizando a bacia leiteira de São Paulo e no fornecimento de frangos e produtos suínos (Sadia e Perdigão). Em todos estes casos as produções referidas acabaram bloqueando o desenvolvimento de concorrência no Nordeste e no Norte. Estas inibições não ocorreram no Sul do Brasil, que acabou capturando para si o cinturão de criação de suínos e aves (Oeste de Santa Catarina e do Paraná), forçando a queda da suinocultura em Minas Gerais e da avicultura em São Paulo, sem esquecer que Porto Alegre e Curitiba criaram seus próprios cinturões de abastecimento (hortícola, leiteiro, etc.)
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Como vimos, a Revolução de 1930 mudou duas equações intimamente ligadas: 1) a relação do Brasil com o exterior, pela adoção de uma política econômica nacionalista e 2) as relações das regiões entre si, anteriormente inexistentes em decorrência das vinculações diretas com o exterior, substituídas pela integração das regiões a um centro dinâmico nacional, isto é, a metrópole paulistana. A Revolução de 1930, por estas e outras razões, foi bem recebida por uma parte da intelectualidade brasileira e mal recebida por outra parte. Note-se que Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda e Caio Prado Junior, intérpretes que se destacaram na década de 30, assumiram posturas nacionalistas e otimistas a respeito do Brasil, mesmo diferentes, enquanto Paulo Prado (Retrato do Brasil, 1926) havia exposto uma visão pessimista, que se multiplicou após 1930 em vários saudosismos. Eugênio Gudin, por exemplo, pai dos economistas neo-liberais, permaneceu aguardando naqueles anos o retorno à “normalidade”, isto é, à divisão internacional do trabalho, rompida pela crise de 1929.
Este mesmo espírito pessimista se difundiu nas regiões mais atingidas pela crise, como foi o caso de todo o litoral brasileiro, anteriormente comprometido com a agro-exportação e com o esquema porto-hinterlândia daí decorrente. Belém do Pará e São Luiz do Maranhão, passando por Recife e Salvador, até Florianópolis e Rio Grande, portos ativos antes de 1930, foram envolvidos pela crise mundial e pelas reestruturações regionais e por isto entraram em processo de estagnação econômica, enquanto as hinterlândias destes portos cresciam pelos vínculos diretos com São Paulo, pela via rodoviária em crescente expansão. As indústrias oligopólicas do binômio porto-hinterlândia, protegidas por décadas de isolamento, não suportaram as pressões das indústrias concorrenciais de São Paulo, sobretudo, e foram fechando suas portas, como as indústrias têxteis de São Luiz até Rio Grande. Mesmo as que sobreviveram mais tempo (Recife e Rio de Janeiro), também desapareceram nos anos 60 e 70. A estagnação econômica de algumas cidades e regiões, como por exemplo Florianópolis e o litoral catarinense nos anos 30 e 40, ocorria paralelamente à expansão de Blumenau, Joinville e Lages e suas regiões. Este duplo processo não foi visto no seu conjunto, levando muitos intelectuais a uma visão simplificada, generalizando e “prolongando” a estagnação, mesmo quando ela já estava superada, como assinalou Ignacio Rangel em 1963, a propósito da Bahia.
Neste estado nordestino a renda per capita passou do equivalente a 47,5% da renda nacional em 1956 para 55,7% em 1960, elevando-se a surpreendente taxa de mais de 7% ao ano. Melhorou mesmo em relação ao estado de São Paulo, pois a renda per capita baiana passou de 25,4% da renda paulista em 1955 para 31,3% em 1960 . Certamente no caso da Bahia a presença da Petrobrás na extração de petróleo e da Refinaria de Mataripe, além da construção da usina hidrelétrica de Paulo Afonso, tiveram grande importância, provocando estímulos diretos e indiretos: 1) mobilização das oficinas mecânicas, fundições e outras pequenas manufaturas nascidas no período depressivo de 1873-1896, que contavam com negros de ganho e de aluguel , 2) estímulo à construção civil (prédios de apartamentos, etc.) em Salvador, que permitiu o nascimento da Odebrecht, 3) especializações agrárias ligadas aos abastecimentos urbanos (horti-granjeiros, frutas, cereais, etc.). Não se deve esquecer que pouco tempo depois nasceu o curso de Geologia na UFBA, que deu origem a várias especializações, entre elas a de Geofísica do petróleo, que tornou a Petrobrás geradora mundial de pesquisas de ponta.
Entretanto, a Bahia não era caso isolado, pois o dinamismo voltava a se manifestar em todo o Nordeste, ao contrário do que muitos acreditavam. Assim, tomando-se a renda per capita brasileira equivalente a 1000 em 1955 e em 1960, o Maranhão passou de 287 em 1955 para 341 em 1960, o Nordeste Oriental (Piauí até Alagoas) passou de 415 a 508 e o Nordeste meridional (Sergipe e Bahia) passou de 472 a 575 respectivamente . Mas, muitos empresários, políticos e intelectuais nordestinos raciocinavam como se o atraso progressivo e a estagnação continuassem. Ignacio Rangel assinalou brilhantemente: “esse paradoxo, de uma região que, ao tempo em que estava realmente estagnada e deixando-se distanciar pelo resto do país e do mundo, não tinha consciência disso, antes tendendo a embelezar essa situação, formando de si mesma uma imagem poética – ora lírica, ora bucólica – mas que se torna brusca e dolorosamente consciente de sua situação passada, precisamente quando cessa a estagnação e todo o sistema sócio-econômico regional entra em comoção, é um dos fatos mais interessantes a registrar”.
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A lucidez de Ignacio Rangel referente ao Brasil e ao Nordeste continuou a contrastar com muitas vozes de empresários, políticos e intelectuais nordestinos e de outras regiões, que continuam mesmo hoje a garantir de pés juntos, de maneira religiosa, que o Nordeste está cada vez mais atrasado e “espoliado” pelo Sul. Não foi sem motivo que Rangel criticou corajosamente Miguel Arraes, por suas declarações “dependentistas” sobre o crescimento econômico brasileiro sob a ditadura militar, após seu retorno do exílio . Na verdade foi Celso Furtado o principal responsável pela criação das ilusões “esquerdistas” dos intelectuais nordestinos. Os títulos dos livros de alguns de seus seguidores são sintomáticos: Elegia para uma Re(li)gião (1977), de Francisco de Oliveira e o Fim do Nordeste e outros mitos (2001), de Michel Zaidan Filho, que nos levam a perguntar: o Nordeste morreu? Trata-se provavelmente, de um novo tipo de saudosismo, lembrando o o saudosismo de Gilberto Freyre, que afinal tinha seu lado grandioso.
Zaidan Filho, em simplificação comovente, aponta como uma das causas principais da “decadência regional” o afastamento do Nordeste do poder político nacional pela Revolução de 1930. Na verdade, o pacto de poder de 30 marginalizou a cafeicultura paulista e a oligarquia açucareira nordestina, mas no Nordeste se baseou nos latifundiários do sertão, aliás nacionalistas e frequentemente simpatizantes da Alemanha nazista, como Agamenon Magalhães (Pernambuco), Antônio Balbino (Bahia), general Goés Monteiro (Alagoas), entre outros, todos reunidos no PSD depois da Segunda Guerra Mundial, enquanto a oligarquia açucareira nordestina se reuniu na UDN, como a decadente oligarquia cafeicultora paulista e fluminense. Por seu lado, Francisco de Oliveira discute a Sudene de maneira “dependentista”, sem que o conflito entre imperialismo e a economia nacional seja analisado. Apresenta uma “burguesia associada” como a classe dominante brasileira e hostil aos legítimos interesses do Nordeste. A burguesia associada abrangeria Matarazzo, que desapareceu com a concorrência interna? Votorantim que cresceu e diversificou? Villares que se tornou a escola brasileira de mecânica pesada? Nenhuma delas era associada a capitais estrangeiros e Villares, Prosdócimo e outras mais desapareceram quando o imperialismo impôs a contra-revolução de 1990 com o governo Collor, típico representante da oligarquia açucareira nordestina. No projeto da Sudene seria preferível indústrias de trabalho intensivo e não de capital intensivo, quando na integração do Nordeste à economia nacional em andamento muito antes da Sudene, existiam tanto empresas de capital intensivo (Refinaria de Mataripe, por exemplo), quanto manufaturas de trabalho intensivo (redes e mantas de algodão, chapéus de palha, etc.)? O Nordeste idealizado seria de baixo índice tecnológico?
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Ao tempo em que Celso Furtado fazia a lamentável distinção entre crescimento e desenvolvimento, que tantos estragos causou, e ainda causa, na cabeça de inúmeros discípulos, levando-os a rejeitar o crescimento econômico, os geógrafos percorriam o Nordeste, procurando conhecê-lo de maneira mais humilde e correta. Leo Waibel fez observações preciosas sobre a agricultura no Recôncavo Baiano , Aroldo de Azevedo e Dirceu Lino de Mattos percorreram o Maranhão de olhos atentos para as mudanças , Josué de Castro estudou a questão da fome no Nordeste e no Brasil , Milton Santos pesquisou a Zona do Cacau e logo depois o Centro da cidade de Salvador , Mário Lacerda de Mello organizou o guia de excursão sobre o Nordeste para a UGI-Rio de Janeiro , ocorreram importantes reuniões da AGB em Mossoró (1960), Penedo (1962) e Jequié (1963), incluindo relatórios de várias equipes de pesquisa e Manuel Correia de Andrade, atendendo convite de Caio Prado Jr, estudou a geografia agrária do Nordeste.
Leo Waibel, geógrafo alemão experiente em estudos agrários, se surpreendeu ao encontrar no Recôncavo Baiano agricultura altamente sofisticada, realizada por pequenos produtores negros e mulatos, com rotação trienal de cultivos, fumo, milho e mandioca, usando adubos orgânicos provenientes da criação de gado leiteiro das proximidades (Cachoeira, São Felix e Cruz das Almas). O fumo era destinado a exportações e às fábricas de charuto da região. Quase na mesma época, percorrendo o Maranhão, Aroldo de Azevedo e Dirceu Lino de Mattos constataram que os prédios das indústrias têxteis, fechadas recentemente, eram utilizados como instalações de beneficiamento de óleo de babaçu, destinado às indústrias de sabão e sabonete do Rio e São Paulo.
Na verdade, começava a se acelerar no Nordeste a mudança da agricultura familiar de subsistência, de baixa produtividade, para uma agricultura especializada, inserida no mercado e sujeita a melhorias técnicas crescentes. Assim sendo, paralelamente às três tradicionais regiões de agricultura comercial de exportação, a zona açucareira de Pernambuco e Alagoas, a zona do cacau da Bahia e a zona algodoeira do sertão foram se desenvolvendo outras áreas de agricultura comercial, voltadas à exportações mas também ao mercado nacional. O fumo em Arapiraca (Alagoas) se expandiu, bem como laranja na Bahia e Sergipe, feijão em Irecê (Bahia) e mais recentemente café em Vitória da Conquista e no oeste da Bahia, soja no oeste da Bahia, sul do Maranhão e Piauí, frutas tropicais (manga, melão, etc.) para exportação e mercado interno nas várzeas irrigadas do rio São Francisco e dos rios do Rio Grande do Norte e outros estados, criação de frango no agreste de Pernambuco e outros estados, bacia leiteira em Itapetinga na Bahia e em outros estados, além de experiências recentes de cultivos de flores nas chapadas do Ceará. Esse panorama seria inimaginável nos anos 50 e 60 do século XX, pois inúmeros intelectuais estavam presos às idéias de estagnação econômica e de revolução socialista, ambas equivocadas, e não percebiam que os problemas sociais da época não se deviam à “estagnação”, mas decorriam do crescimento econômico, que havia deslanchado de 1955-56 para frente, como insistia Ignacio Rangel. Infelizmente a referida intelectualidade aprisionada pela doença infantil do esquerdismo, como alguns hoje em dia, tentou por todos os meios abafar as idéias de Rangel, como no auto-de-fé que destruiu em 1963 quase toda a edição de A questão agrária, por iniciativa criminosa da assessoria de Arraes, ou na publicação somente em 2000 do relatório de 1963 sobre a Bahia .
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Nos últimos anos há um significativo retorno de mineiros e nordestinos de São Paulo para seus estados, mas ao longo de todo o século XX o Nordeste foi região exportadora líquida de capitais e de força de trabalho. Representando 38,71% da população brasileira em 1900, a região abrigava 31,60% dos brasileiros em 1960. A saída de capitais e de trabalhadores fizeram parte da retomada econômica após 1955, pelas remessas sob forma de lucros, renda fundiária e salários, além de menor pressão no mercado de trabalho regional.
Infelizmente a retomada do crescimento econômico do Nordeste, que já tem várias décadas, está pouco estudada e se trata de processo complexo, combinando vários fatores. Já assinalamos que aumentou a presença do Estado brasileiro (CHESF, Banco do Nordeste, Sudene, etc.), paralelamente à crescente especialização da agricultura regional sob vários estímulos, incluindo o aumento da população urbana consumidora em Salvador, Recife, Fortaleza, etc. A atual geografia econômica do Nordeste é muito diferente do que era em 1950-60 e muito dinâmica, como podemos perceber em vários setores produtivos.
A zona canavieira litorânea de Pernambuco e Alagoas estendia-se ao longo dos chamados rios do açúcar, em solos férteis de massapé. Estes vales, salvo exceções, não eram propícios à mecanização, que em São Paulo se potencializava em solos ricos de terra roxa, tornando a produção paulista imbatível na concorrência internacional e nacional, levando à eliminação da produção fluminense da zona de Campos. Diante do desafio mortal, os usineiros nordestinos acionaram alguns mecanismos de defesa: 1)migração dos canaviais para as áreas planas e mecanizáveis dos tabuleiros litorâneos, de solos de baixa fertilidade, mesmo adubados, 2) uso de terminais portuários especializados em Recife e Maceió, muito próximos das zonas produtoras, compensando custos de transportes terrestres, muito altos em São Paulo e Paraná, além da distância marítima dos mercados estrangeiros importadores e 3) isenções de impostos estaduais .
Mais insuspeitados do que o dinamismo dos usineiros de açúcar é a multiplicação de empresários do Agreste nordestino, partindo frequentemente de pequenos negócios. O caso antigo mais conhecido é o de Delmiro Gouveia, que ficou gravado na memória regional e nacional, como sinônimo de estrangulamento imperialista à indústria nacional. Esta multiplicação é tão surpreendente que o pequeno distrito de Serra do Machado, no município de Ribeirópolis, em Sergipe, deu origem a três grandes grupos comerciais: Paes Mendonça e Bom Preço, ambos redes de supermercados e G. Barbosa, rede de eletrodomésticos . Assim também o maior grupo empresarial do Piauí, tendo por núcleo a rede de lojas de eletrodomésticos Armazém Paraíba, além de fábricas de confecções de colchões, de carrocerias, nasceu modestamente da iniciativa de humilde retirante agrestino. Lembre-se que o desbravamento da zona do cacau da Bahia no início do século XX teve forte participação dos agrestinos sergipanos, como os pais de Jorge Amado. Para não prolongar excessivamente esta lista registramos a importância de Campina Grande: 1) nos laboratórios da Embrapa nasceu o algodão colorido, que dispensa o uso de corantes e encontra mercados crescentes na Alemanha, Japão e Itália, 2) no seu parque tecnológico crescem várias empresas de alta tecnologia, incluindo a Apel, responsável pelos serviços de som dos metrôs e aeroportos brasileiros, 3) da cidade partiu o empresário fundador da CAOC, grande concessionária de automóveis de São Paulo, proprietário da recém instalada fábrica da Hyundai, em Anápolis, Goiás.
Ora, Euclides da Cunha desmistificou a imagem negativa do sertanejo nordestino, assim como Gilberto Freyre desmascarou as idéias racistas a respeito do negro e elogiou a miscigenação. Nos últimos tempos os agrestinos tem demonstrado que o imobilsmo social que paralisou o Nordeste é uma imagem falsa diante da multiplicação das iniciativas empresariais regionais.
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Nos anos 1944-45 alguns intelectuais brasileiros foram despertados para a questão do planejamento, que aliás foi praticado pelo governo federal nos anos 30, visando enfrentar a escassez de divisas estrangeiras. Roberto Simonsen assumiu a dianteira do debate e foi seguido por outros. As questões regionais implícitas no planejamento de um país das dimensões do Brasil foram lembradas por Américo Barbosa de Oliveira e Golbery de Couto e Silva, ambos com sólida formação geográfica . Já dissemos que Golbery elaborou um esquema centro-periferia, além de propor que se consolidasse a integração nacional das regiões por um sistema planejado de transportes ferroviário e rodoviário. Paralelamente à proposta de polarização de Golbery, A. Barbosa de Oliveira estudou as grandes regiões geo-econômicas homogêneas, de bases naturais: 1) das lavouras tropicais, 2) das pastagens tropicais, 3)das florestas equatoriais e 4) sub-temperadas, além de distinguir no Nordeste: 1) zona da mata, 2) agreste e 3) sertão. Deve-se notar que anos depois os geógrafos franceses passaram a trabalhar com regiões polarizadas e regiões homogêneas, quando no Brasil os referidos autores já haviam elaborado e aplicado essas idéias.
Para Ignacio Rangel o planejamento exige em primeiro lugar o conhecimento da realidade natural e humana, sobretudo as capacidades ociosas, que são potenciais a mobilizar, além dos estrangulamentos, que definem as oportunidades de investimentos. Já assinalamos a existência no Agreste nordestino da enorme capacidade empresarial ociosa, facilmente mobilizável com pequenos financiamentos. Por outro lado o litoral nordestino tem um enorme potencial turístico, em expansão recente. Ora, os investimentos programados no Nordeste, que é o 3º PIB regional brasileiro, atrás do Sul, totalizavam em fins de 2004 US$ 18,8 bilhões, abaixo apenas do Sudeste (US$ 57,2 bilhões) e acima do Norte (US$ 9,9 bilhões), do Sul (US$ 7,7 bilhões) e do Centro-Oeste (US$ 6,4 bilhões), conforme Simonsen Associados.
O litoral do Nordeste, do Maranhão ao Sul da Bahia, com milhares de quilômetros de extensão, tem multiplicado novas atividades e novos portos, modificando a situação de 1950-60 de maneira radical.
Pequenos portos antigos foram desativados (Parnaíba, Cabedelo, etc.) e surgiram novos terminais modernizando o escoamento do açúcar (Recife e Maceió) e do cacau (Ilhéus). A grande instalação portuária atual é Suape, em Pernambuco, onde deverá desembocar a ferrovia Transnordestina, controlada pela CSN e localizar a Refinaria Petrobrás-PVDSA (US$ 2,5 bilhões, programada para funcionar em 2010, o estaleiro Atlântico Sul (R$ 1,2 bilhão), além de petroquímicas, etc. Em Alcântara, junto a São Luiz funciona a base de lançamentos de satélites. No sul da Bahia a Suzano, grupo paulista, começou em 1992 a produzir celulose e papel a partir de gigantescos reflorestamentos de eucaliptos, ampliando recentemente suas instalações com novos investimentos de US$ 1,3 bilhão. Outros gigantescos reflorestamentos e instalações industriais para exportação de celulose mobilizaram US$ 1,2 bilhão da brasileira Aracruz e da escandinava Stora-Enzo, que iniciou a produção em 2005.
Nos dois extremos do litoral nordestino, no Maranhão e no sul da Bahia se instalaram grandes empreendimentos industriais com grandes terminais oceânicos. Nas proximidades de São Luiz foi construído pela CVRD, no tempo da ditadura militar, o porto de Itaqui, por onde escoa o minério de ferro de Carajás e também se localizou a Alumar (Alcoa, Alcan, etc.), usina exportadora de alumínio, semelhante à planta industrial da CVRD-Japão, nas proximidades de Belém do Pará, funcionando com bauxita da Amazônia e eletricidade de Tucuruí.
Entre estes dois extremos se multiplicaram portos e terminais, alguns destes já enumerados. Já dissemos que ao longo do litoral modificaram-se as atividades já existentes e acrescentaram-se outras. A pesca, por exemplo, que era basicamente artesanal nos anos 1950-60, tornou-se industrial em alguns lugares, no Ceará para lagosta e camarão, por exemplo. Surgiram criadouros artificiais no litoral sul do Rio Grande do Norte, que faturaram US$ 250 milhões (50 mil toneladas de camarão) em 2005. Estas atividades se exercem sem maiores fiscalizações e sem o devido apoio à pesca artesanal, que já foi mais importante na Bahia, Ceará, etc. Paralelamente aumentaram muito os plantios de coco no litoral de Alagoas.
O “boom” turístico ocorre em alta velocidade de São Luiz e Lençóis maranhenses até o extremo sul da Bahia. Nos últimos anos explodiu o fluxo de turistas europeus, respondendo a uma combinação de fatores que inclui o barateamento dos vôos aéreos, charters principalmente, o tempo de apenas seis horas entre Lisboa e Natal, por exemplo, os baixos preços de hospedagem, o rico ambiente cultural e não em último lugar, a hospitalidade. Assim, o Club Mediterranée realizou pesquisas em suas unidades espalhadas no mundo e seu village de Trancoso, no sul da Bahia, ganhou o prêmio de melhor serviço. Assim, dos R$ 3,5 bilhões previstos para construção de hotéis em todo o Brasil entre 2005 e 2008, o Nordeste receberia R$ 1,5 bilhão, isto é, os significativos 43% do total. Além dos hotéis urbanos em Salvador, Recife, etc., de capitais principalmente locais, estão sendo instalados grandes “resorts” de capitais espanhóis, portugueses, franceses, norte-americanos, além de dezenas de pousadas de europeus que migraram para o Brasil.
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As cidades nordestinas na ocasião da crise de 1929-30 eram basicamente litorâneas, além daquelas que faziam o contato comercial entre o litoral e o sertão, na zona do Agreste, formando uma linha de cidades-feiras, com destaque para Feira de Santana, Campina Grande, entre outras. Entre as grandes cidades litorâneas, Recife, a mais importante praça import-export, foi a mais atingida pela crise, em conseqüência da rápida desativação de suas grandes firmas atacadistas e da lenta desativação de suas indústrias têxteis, nascidas do antigo esquema do “exclusivo regional”. A primeira grande cidade litorânea a se recuperar foi Salvador, que após a Refinaria Landulfo Alves, abrigou o pólo petroquímico de Camaçari e recebeu inúmeras plantas industriais multinacionais, como a Ford ou nacionais, como Cerâmica Eliane, que além de substituir importações do Sudeste, tornaram-se desde o início exportadoras, devido a tecnologia de última geração de suas instalações.
Deve-se chamar a atenção para o fato de que todas as capitais estaduais do Nordeste, de São Luiz a Salvador, passando por Teresina e as demais, viveram nas últimas décadas dois processos paralelos e divergentes: 1) receberam grandes fluxos populacionais decorrentes da crise agrária, processo agravado pela contra-revolução de 1990 (Collor e FHC), com o desemprego industrial galopante e 2) foram beneficiadas pela implantação de vários órgãos federais e estaduais, incluindo as universidades, que receberam grande impulso durante a ditadura militar, formando muitos estudantes nas áreas científicas e tecnológicas, alguns dos quais foram absorvidos no exterior pela Google, HP, etc. Assim, o Parque Tecnológico de Campina Grande, o Instituto de Neurociências de Natal e o Porto Digital de Recife tem confirmado a vitalidade intelectual dos nordestinos, pois se trata da região brasileira onde o prestígio da vida cultural está acima do dinheiro, herança viva do passado medieval português.
Recife, a última das grandes cidades a se recuperar, reúne no Porto Digital mais de cem empresas de alta tecnologia, em maioria de ex-alunos da Universidade Federal, algumas especializadas em jogos eletrônicos (25% do mercado brasileiro), inteligência artificial, etc., estando presentes laboratórios de Nokia, Samsung, LG, IBM, etc. O Porto Digital data de 2001, quando as empresas já produziam 1,3% do PIB estadual, superou os 4% em 2005 e projeta responder por 15% em 2015.
Fortaleza se beneficiou da pioneira política estadual de incentivos fiscais, iniciado em fins dos anos 70, com o objetivo de superar o atraso industrial do Ceará. Por coincidência houve interrupção do dinamismo industrial brasileiro do longo período 1930-80 e assim as empresas do Sul e do Sudeste dos setores de mão-de-obra intensiva responderam prontamente às isenções, financiamentos, salários baixos, etc. Em pouco tempo, Fortaleza e arredores, se tornaram o 3º pólo calçadista brasileiro, empregando 70 mil pessoas e o 3º pólo têxtil e de confecções, com 60 mil empregos em 2006. No setor de calçados as exportações do Ceará foram de US$ 106 milhões em 2001 e alcançaram US$ 186 milhões em 2004, passando de 6,6% para 10,3% do total brasileiro, quando o Rio Grande do Sul caiu de 81,5% para 70,3%. No setor têxtil o grupo paulista Vicunha começou com uma fiação em 1988, seguida de tecelagem, acrescidas depois de outras unidades. Empregava 7,5 mil funcionários em 2006, produzindo tecidos índigo, em grande parte exportados (o grupo todo exportava US$ 160 milhões em 2005). A produção de índigo acabou estimulando o desenvolvimento de confecções no Ceará e em outros lugares do Nordeste: bermudas em São Domingos do Cariri, no sertão da Paraíba, jeans em Caruaru e em Toritama, sertão de Pernambuco, onde trabalham 3 mil empresas formais e 1,5 mil informais, totalizando 15% da produção brasileira de jeans.
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Na verdade, Fortaleza é parte do semi-árido, uma área gigantesca do Nordeste, com prolongamento até o norte de Minas Gerais. A capital do Ceará é um exemplo típico da grande capacidade empresarial dos agrestinos e os sertanejos. Ao lado das indústrias do Sudeste e do Sul acima referidas, Fortaleza abriga empresas locais dinâmicas, como o grupo Jereissati (Shopping Iguatemi, etc.), M. Dias Branco e J. Macedo, ligados à moagem de trigo e derivados, que no Brasil dos anos 1950-60 era dominada pelo grupo Bunge, que ainda hoje está no mercado. Há no Porto de Fortaleza o Tergran, terminal importador de trigo da Argentina, etc controlado pelas referidas firmas. Elas possuem moinhos e indústrias em vários portos e lugares do Brasil e tiveram em 2007 receitas brutas de R$ 1979 milhões e R$ 1360 milhões respectivamente, trabalham com marcas conhecidas nacionalmente (Dona Benta, Petybon, Adria, Isabela), tendo presença em todo o mercado nacional, sendo o Sudeste 20,3% e 47% e o Sul 8,3% e 9% respectivamente . Deve-se dizer que os dirigentes políticos do Ceará, que tiveram a habilidade de “inventar” os incentivos fiscais e os empréstimos (Banco do Nordeste, Banco do Brasil) para atrair empresas de fora e reforçar as empresas locais procuram no momento viabilizar duas obras importantes para o estado: a siderúrgica em Fortaleza e a transposição do Rio São Francisco.
O interior do Nordeste corresponde ao semi-árido mais povoado do mundo, como disse Jean Dresch a Aziz Ab’Saber em 1956 na excursão “Nordeste” (UGI), o que exige convivência do homem com os períodos secos, levando em conta as possibilidades naturais e sociais viáveis. Na Paraíba, com pequenos recursos, desenvolvem-se criações de cabras destinadas à produção de leite para as crianças e os idosos carentes, com sustentação governamental do preço mínimo ao produtor. Em Cabaceiras, 200 trabalhadores cooperativados, com assessoria do Sebrae e apoio do governo federal e estadual, transformam couro de cabras em calçados e acessórios comercializados no Nordeste, Sudeste, Brasília e Sul .
Aliás, sob forma industrial, manufatureira ou artesanal tem crescido as produções de calçados, têxteis e de confecções em todo o Nordeste. A Coteminas e a Alpargatas tem grandes unidades em Campina Grande e as exportações de calçados da Paraíba aumentaram de US$ 26,6 milhões em 2001 para US$ 37,7 milhões em 2004, assim como nas mesmas datas aumentaram as exportações da Bahia de US$ 8,8 milhões para US$ 50,7 milhões, quando diminuíram as exportações gaúchas.
A superação do complexo rural familiar pela especialização agrícola, que já ocorria quando Rangel escreveu sobre as mudanças agrárias na Bahia, está nas bases das substituições de importações de alimentos provenientes do Sudeste e do Sul: Luna Avícola, de Arapiraca, com ovos e frangos vivos, a fábrica de leite em pó na bacia leiteira das proximidades de Vitória da Conquista, os grandes investimentos da Perdigão em laticínios e embutidos de frango em Bom Conselho (950 empregos) e da Sadia em Vitória de Santo Adão (1350 empregos), etc.
No Rio Grande do Norte podemos apontar a extração de petróleo, resultante em parte do empenho em 1960, quando os recursos da Petrobrás eram escassos, de Vinte-um Rosado e Aziz Ab’Saber . Mais tarde o litoral norte do Estado foi ocupado por enormes plantações de caju e o Vale do Apodi por plantios irrigados de frutas, como melão, banana, mamão, etc. Continuando em direção ao litoral do Ceará, vamos encontrar em início de operação (2009), três parques eólicos (Praia do Morgado, Parajurú e Volta do Rio), incentivados pelo programa federal de fontes energéticas alternativas. Completando o processo o grupo argentino Pescarmona está instalando no Porto de Suape uma fábrica de aerogeradores (R$ 150 milhões), considerando a vantagem logística .
Ocorreram muitas mudanças no semi-árido desde 1950-60, mas a exploração mineral está engatinhando: 1) lapidações de pedras semi-preciosas do Cariri no Parque Tecnológico de Campina Grande ou 2) exploração de níquel pela CVRD no Piauí, onde existem reservas de mármore, etc.
No semi-árido o crescimento mais espetacular se deu na fruticultura irrigada, que alia o sol o ano todo, baixa umidade do ar e água na quantidade certa. No Vale do Apodi, junto a Mossoró, as exportações começaram em 1980 e alcançaram US$ 90 milhões em 2005, principalmente de melões destinados à Europa. No Vale do São Francisco, acima e abaixo de Juazeiro-Petrolina, a Embrapa conseguiu aperfeiçoar várias frutas, mas as uvas e as mangas são os principais cultivos em 110 mil hectares, com obtenção de 2,5 safras/ano. As exportações alcançaram US$ 120 milhões em 2005, ano em que começaram a sair aviões cargueiros de Petrolina para Lisboa e Luxemburgo. Entre os grandes produtores aparecem o Carrefour francês, cujas uvas seguem para suas lojas na Europa, Estados Unidos e China; a Frutifort, de empresários locais, exporta R$ 20 milhões de mangas para os Estados Unidos e Europa; as vinícolas gaúchas plantam grandes parreirais e vendem seus vinhos no mercado nacional .
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O Nordeste e o Brasil mudaram desde 1950-60, mas ainda temos muito o que mudar. Como disse o Governador Jacques Wagner, pouco depois de eleito, a Bahia tem o sexto PIB do Brasil, mais ocupa o vigésimo lugar em saúde e educação. O acesso a água e ao esgoto, sem o que não há saúde, assim como à eletricidade, sem o que não há produtividade econômica, são tarefas inadiáveis para milhões de nordestinos de hoje em dia. Estes estrangulamentos são grandes oportunidades de investimentos, a começar pela transposição do rio São Francisco. Mas nos anos 60, após o golpe militar, Celso Furtado decretou do alto da revista de J. P. Sartre, Les Temps Modernes, nº 257: 1) o país sem futuro, 2) a estagnação econômica e 3) a pecuarização a que seria submetida a economia brasileira. Seus exercícios de demiurgia como planejador foram substituídos por suas falsas profecias, ao mesmo tempo em que seus seguidores anunciavam a morte do Nordeste. Na verdade, o que estava morrendo era o Nordeste feudal do coronel Chico Heráclito e hoje das oligarquias parasitárias (ACM, Sarney, etc.).
A Revolução de 1930, conduzida pelas oligarquias agrárias do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e sertão do Nordeste dinamizou o país. Da mesma forma que na Alemanha de Bismarck, onde a Renânia foi a região que mais tirou proveito, apesar da origem prussiana da revolução, o mesmo aconteceu no Brasil, onde o crescimento se espraiou a partir de São Paulo, não dos fazendeiros de café decadentes, mas dos imigrantes ascendentes. Entretanto, se é verdadeira a observação de Jean Tricart, sobre a divisão regional do Brasil, exposta a Milton Santos, acima referida, é também verdadeira a clivagem mapeada por A. Barbosa de Oliveira entre a “região das lavouras tropicais” e a “região das pastagens tropicais”. As raízes do nacionalismo brasileiro continuam fincadas nas áreas pastoris do semi-árido nordestino, em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul. Não foi sem motivo que o neoliberalismo imposto ao Brasil de 1990 a 2002 começou a ser interrompido pela liderança de um nordestino do Agreste, que iniciou sua carreira política inspirado em Antônio Conselheiro, na luminosa observação de Carlos Augusto Figueiredo Monteiro e dá continuidade a ela como o João Grilo, de Ariano Suassuna.
*Professor livre-docente do departamento de geografia da FFLCH-USP