Política monetária: Banco Central dá as costas para o país
Por Osvaldo Bertolino
Crescem as pressões do mercado financeiro para a retomada de um novo ciclo de alta da Selic. Ao mesmo tempo, aparecem com mais intensidade alertas para os efeitos da crise econômica global. Essa contradição revela que o país continua preso às imposições autoritárias do Banco central (BC), que define a política monetária por meio de consultas a “especialistas do mercado”.
Por Osvaldo Bertolino
O jornal O Globo informa que esse janeiro não vai ser igual àquele que passou. Com a confiança tanto dos empresários quanto dos consumidores em alta, os primeiros indícios do forte aquecimento da economia começam a aparecer nos indicadores econômicos. A ponto de os “analistas de mercado” — aquela meia-dúzia de palpiteiros do mercado financeiro que balizam as decisões do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) por meio da pesquisa semanal Focus — já terem aumentado, pela segunda semana seguida, a expectativa de alta da taxa de juros Selic.
A economia real vai de vento em popa. Os indicadores antecedentes, aqueles que mostram em qual velocidade anda a economia, estão em sua maioria em alta, diz a matéria. A LCA Consultores, por exemplo, olha para três setores: consumo de energia (alta de 1,7% frente a dezembro), venda de veículos (-6%) e importações (5,6%). Todos estão em alta, com exceção dos veículos. Outro indício de retomada está no levantamento da Confederação Nacional do Comércio (CNC), que mostra que há espaço para as famílias se endividarem, já que apenas 60,2% dos consumidores estão com dívidas.
A inadimplência começou a cair e a rede bancária, que vinha ainda “cautelosa” em financiar o setor produtivo, começa a fornecer crédito, ao lado do BNDES, que passou boa parte do ano de 2009 como uma das únicas fontes para as empresas. Prova disso é que a Volks e a Peugeot Citröen anunciaram a contratação de 1.400 pessoas somente em suas unidades no Estado do Rio.
Crescimento sem inflação
O indicador de vendas a prazo, do Serviço Central de Proteção ao Crédito (SCPC), aponta alta de 5,1% nas vendas da primeira quinzena de janeiro ante a segunda de dezembro. Na mesma comparação, o SCPC/Cheque, que mede as vendas à vista, aumentou 8,5%. Os carnês em atraso caíram 2,6% no período, enquanto os cancelamentos (dívidas que saíram do registro do SCPC) cresceram 8,2%:
Na avaliação da CNC, há espaço para se ampliar o consumo — especialmente de bens duráveis — nos próximos meses. Segundo a pesquisa da entidade com cerca de 18 mil entrevistados, apenas 9,2% dos consumidores não terão como pagar suas dívidas em janeiro. Tudo vai bem. Mas o panorama visto pelo mercado financeiro é outro.
Os “especialistas” do mercado financeiro acreditam que a Selic fechará 2010 em 11,25% anuais, 0,25 ponto percentual a mais do que a projeção anterior. O movimento de alta começaria em abril. O Ministério da Fazenda, no entanto, diz que há espaço para crescimento sem inflação. Segundo os assessores do ministro Guido Mantega, o atual quadro sinaliza que o PIB tem condições de crescer entre 5% e 5,5%, sem risco de pressão inflacionária.
A anomalia dos spreads
Outra anomalia da economia ditada pelo sistema financeiro são os spreads, que continuam altos apesar da baixa inadimplência. Pelo diagnóstico do chefe do Departamento de Economia da CNC, Carlos Thadeu de Freitas, o atual patamar dos spreads não se justifica. Os números "absolutamente não são preocupantes". Para ele, "somente 9% dos consumidores dizem não ter condições de pagar dívidas, ou seja, a expectativa de inadimplência é baixa, o que mostra que não se justificam os elevados spreads bancários".
A Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), levantamento inédito relativo ao mês de janeiro, mostra que 13,5% dos consumidores disseram estar "muito endividados", sendo que no grupo dos que recebem até 10 salários mínimos o percentual sobe para 14,3% e, no conjunto dos que ganham mais de 10 mínimos, é de 8,3%.
Ainda entre os endividados, a parcela da renda familiar mensal comprometida com dívidas é, em média, de 28,4% o que, segundo Thadeu de Freitas, "não é perigoso". Segundo ele, nos Estados Unidos, antes do início da crise econômica, a parcela da renda familiar comprometida ultrapassava 100%.
Ociosidade na indústria
Outro indicador que confronta com a tese da turma do Copom é a inflação no comércio de São Paulo, que subiu só 0,46% em 2009 — bem menos que os 4,75% de 2008. O índice, calculado pela Federação do Comércio de São Paulo (Fecomercio-SP), tira mais um argumento do lobby por nova escalada dos juros. Em dezembro, os preços no comércio paulistano recuaram 0,05%, após subirem 0,11%, em novembro.
Em entrevista ao Monitor Mercantil, o coordenador do Indicador Ipea de Produção Industrial Mensal, Leonardo Carvalho, disse que a questão da inflação envolve outros fatores além dos juros. "Ainda existe ociosidade na indústria em relação ao patamar do nível de utilização pré-crise, cujo pico, segundo o indicador Nível de Utilização da Capacidade da Indústria (Nuci/CNI), foi em setembro de 2008", lembrou.
Segundo Carvalho, desde o terceiro trimestre o investimento em bens de capital vem subindo. "Voltamos a crescer num ciclo no qual os investimentos assumem papel cada vez mais importante. Desde o terceiro trimestre de 2009, eles voltaram a crescer, na margem, acima de 5%. Outro fator é o câmbio, com peso importante nos preços transacionáveis, bastante influenciados pelos internacionais. Por esse lado, também não esperamos pressão preocupante. E os IGPs vieram com deflação em 2009, então, os preços administrados devem vir mais baixos", resumiu.
Dólar hiperinflacionado
O BC também deveria olhar com mais atenção para o cenário global antes de dar ouvidos ao sistema financeiro e ficar atento à necessidade de preservar o poder da economia interna diante de possíveis recrudescimentos da crise econômica mundial. O diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Dominique Strauss-Kahn, afirmou que economias “emergentes” como Brasil, China e Índia "lideram a saída da crise global".
No entanto, Adriano Benayon, professor da Universidade de Brasília (UnB), que é um crítico do acúmulo de reservas em dólar, alerta para a grave situação monetária e fiscal nos países desenvolvidos e para a possibilidade dos “emergentes” serem chamados a pagar a conta. "O dólar está hiperinflacionado e não há como sustentar seu valor. Desde 2008, o colapso financeiro levou a emissões de US$ 23 trilhões (de moeda pelo Fed e de títulos e garantias pelo Tesouro dos EUA). Agora, não falta muito para estourarem novas bolhas", disse.
Benayon calcula que a oferta potencial de dólares (M1 + M2 + M3) chegue a US$ 15 trilhões, somente nos EUA. "As reservas em dólares em bancos centrais (fora o Fed) são estimadas em US$ 6 trilhões. Há, também, dezenas de trilhões de dólares em contas de bancos e de fundos em todo o mundo, inclusive paraísos fiscais, e cerca de US$ 300 trilhões de derivativos", informa Benayon.
Bola inflando
O Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz também alertou que a crise financeira mundial não está perto do fim e só terminará, pelo menos, em 2013. "Certamente, o mundo não sairá da crise nem em 2010, nem em 2011. Talvez nem em 2012 e 2013", disse Stiglitz a uma publicação sérvia.
Segundo o economista, o país onde começou a crise, Estados Unidos, lutará durante muito tempo contra o déficit e pela recuperação da política monetária. Stiglitz disse que o otimismo em círculos de negócios é baseado nas previsões de que a recuperação está perto e que a bolsa se estabilizou, mas que o sistema financeiro não depende só dos fatores econômicos.
"É normal que em Wall Street se fale do crescimento global da economia, porque isso vende ações. Os economistas com que falei e com os quais estou de acordo não pensam assim. Pelo contrário: afirmam que o sistema financeiro neste momento é muito mais frágil que antes da crise e representa um risco para uma estabilidade duradoura", afirmou. "A única pergunta que seria preciso fazer é: quando isso tudo se repetirá?", questionou.
Stiglitz se disse decepcionado com o fato de o momento não ter sido aproveitado para reformar o sistema financeiro global. "É horrível ver que a bola está inflando e não fazer nada, embora esteja claro que explodirá. E não se fez nada nem depois da explosão, principalmente nos Estados Unidos", disse.
Cortes largos
Entre as propostas feitas por Stiglitz, estão a prevenção de uma nova crise e a criação de um organismo com mais competências e representação que os existentes, porque "a crise global requer uma resposta global". Outra reforma proposta por Stiglitz é um novo sistema global de reservas, com uma moeda única, porque é necessário um sistema multilateral que não dependa da moeda de nenhum país concreto.
Alguns economistas (entre eles, Nouriel Roubini) advertem que a atual recuperação despencará numa forte recessão a ser revertida mais adiante. É o que, segundo eles, desenhará nos gráficos a linha em formato de W, que provocaria, como diz hoje no jornal O Estado de S. Paulo Celso Ming, um montão de mortos e feridos antes que a última perna do W se pusesse novamente de pé.
Oferecer condições para solidificar a resistência do país aos efeitos da crise, operando cortes largos na gastança com a especulação financeira, deveria ser a prioridade do BC. O enfrentamento desse problema é responsabilidade do governo no período que resta de seu mandato. Das soluções que puder encontrar, não há dúvida, dependerá grandemente o futuro político da frente que se formou em 2002 para eleger o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.