Minke
A baleia que veio morrer na praia sabia de cor a rota do Pólo Sul ao Pólo Norte. É próprio de sua espécie espancar os oceanos de popa a proa. Acostam-se às águas quentes do Nordeste para amar. A baleia poderia ter morrido nos gelos, onde seu cadáver ficaria preservado para sempre, até que as gerações futuras de Andrômeda encontrassem o grande mamífero adormecido no mar de pedra.
Mas a baleia escolheu as águas mornas do Poço para seu último porto. As horas rápidas do verão apodreceram seu corpo manso e nu, adernado ao sol de domingo. Os necrológios não disseram de que a baleia morreu. Falavam apenas de seus restos entre sargaços e olhares curiosos diante da morte enorme.
Ainda há pouco tempo, as baleias morriam ao largo de Costinha, a carne explodida pela granada do arpão. Algumas, de cria, nadavam mais lentas que o bando e eram presas fáceis para o navio voraz. Muitas encontraram a viuvez no mar de Costinha, justamente quando bordejavam o amor.
Sabe-se que as baleias são os animais de maior inteligência no mar, só perdendo para seus rivais da terra, os homens baleeiros. Sabe-se, também, que outrora as baleias habitavam a terra firme e doce. Um dia, preferiram viver no mar. Em que lugar da formidável memória ou do grande coração pulsou a saudade que fez a baleia encontrar a morte no Poço? Ela conhecia o conforto da morte no mar, da morte natural e azul. Mas preferiu morrer nas águas onde foi concebida, as águas rasas onde se debruça o Atlântico.
No seu último sábado, a baleia mudou a derrota para a quebrada da morte nas ondas da praia calma. No verão de mistérios, a grande noiva do mar guinou do horizonte para o seio da areia. Era verão e sábado, hora e vez das noivas. Úmida, a baleia recostou-se no decote branco, lugar onde o mundo se divide entre mar e terra, e o tempo espuma entre morte e vida.
Grinalda de sargaços cingia o cadáver núbil que o mar em vão reclamava. Não tinha o hálito das noivas. O almíscar da morte possuía a pele de sal. Era calmo seu gesto de morte. Exalava um silêncio sem ricto de dor. Mesmo distante na morte, a baleia quedava-se íntima diante do espanto dos corpos vivos. Pescadores que a viram chegar disseram de seu natural, como se fosse rotina, descendo o degrau das ondas, demandando a terra sem prático de porto.
Em displicente decúbito, o corpo largo esperou a rapina da vida. Levaram-lhe o marfim secreto do cavername. O costado que desafiara as aspas dos gelos foi abordado pelo fio das facas. Decidido à profunda morte, deixava-se sem reação. Quantas vezes cuspira no rosto do vento seu borrifo salobre. Nunca mais a bravata bucaneira!
O grande ser das águas diluiu-se na areia como um sobejo do mar. Era pródigo no seu abandono, à deriva das perguntas. Inútil lhe pedir o porto de arribada. Simplesmente zarpara da vida como um veleiro saturado de mar. Não mais a obsessão do horizonte. Seus olhos fixos em longínquo depois diziam de um navego muito além do mar aberto.
À noite, quando as estrelas vieram carpir seus despojos, a grave alma da baleia alçou a vela grande e singrou as nuvens, levada pelo vento lunar. Deu de bordo ao sul de Antares e rumou para seu pólo absoluto.