ÍNDICE

Capítulo I – A pré-história do anti-feminismo (link)

Capitulo II – O cristianismo e as mulheres (link)

Capítulo III – Os liberais e a igualdade da mulher (link)

Capítulo IV – A resposta socialista ao anti-feminismo liberal-burguês (link)

Capítulo V – As mulheres no socialismo: avanços e impasses (link)

Bibliografia (link)

Anexo I – As mulheres e os direitos políticos no Brasil (link)

Anexo II – Engels e a origem da opressão da mulher (link)

A PRÉ-HISTÓRIA DO ANTI-FEMINISMO

“A mulher é nossa propriedade e nós não somos propriedade dela (…) Ela é, pois, propriedade, tal qual a árvore frutífera é propriedade do jardineiro”.
Napoleão Bonaparte

Foi entre os povos gregos, particularmente entre os atenienses, que a opressão da mulher adquiriu sua forma mais acabada. Nestas sociedades, mesmo a situação das mulheres das classes dominantes pouco se diferenciavam das dos seus escravos domésticos, pois ambos eram desprovidos de qualquer tipo de direito. Os próprios filósofos gregos tinham clareza desta situação. Platão afirmou: “Se a natureza não tivesse criado as mulheres e os escravos, teria dado ao tear a propriedade de fiar sozinho”.

Os espaços sociais dos homens e mulheres eram bem delimitados. Sócrates assim os definiu: “Aos homens a política, às mulheres a casa”, sendo a política a função mais nobre de uma sociedade civilizada como a grega. Xenofonte recomendava que a mulher “vivesse sob uma estreita vigilância, visse o menos número de coisas possível, ouvisse o menor número de coisas possível e fizesse o menor número de perguntas possível”. (ALVES, PITANGUY. 1981:11-12) Estas idéias anti-femininas persistiriam por séculos.

Sobre a mulher ateniense escreveu Engels: “as moças aprendiam apenas a fiar, a tecer, costurar (…). Viviam como que enclausurada, não possuindo relação com outras mulheres. O gineceu era uma parte distinta da casa, no pavimento superior, ou atrás (…) para onde elas se retiravam quando havia visitas masculinas (…). Em casa eram formalmente vigiadas (…) fora da tarefa de procriar, elas não eram mais do que a serva principal”. (MARX, ENGELS, LENIN, 1980:20-21)

Outro socialista, Augusto Bebel, completaria o quadro da tenebrosa situação que vivia aquelas mulheres de Atenas: “A mulher comparte o leito com o homem, mas não a mesa; não se dirige a ele pelo seu nome, senão chamando-o de senhor, é sua criada. Nunca podia aparecer em público; pelas ruas ia sempre coberta com um véu (…). Se cometia adultério tinha que pagar, segundo a lei de Sólon, com sua vida ou com sua liberdade. O homem podia vendê-la como escrava”. A situação destas mulheres foi soberbamente descrita na música de Chico Buarque e Augusto Boal intitulada Mulheres de Atenas.

Diante disso as mulheres preferiam se prostituir a viver na “escravidão do matrimônio”. Escreveu Engels: “Foi precisamente sobre a base da prostituição que se desenvolveram as únicas personalidades femininas gregas que, pelo estilo e gosto artístico, são tão superiores ao nível geral do mundo feminino antigo”. ”. Eram as chamadas hetairas. (MARX, ENGELS, LENIN, 1980:21)

Demóstenes, orador grego, afirmou: “Nos casamos com a mulher para ter filhos legítimos e uma guardiã fiel de nossas casas” e temos “as hetairas para gozar do amor”. Por isso concluiu Bebel: “A esposa não era mais que um aparelho de parir filhos e um cão fiel que vigiava a casa”. (BEBEL, 1977:87) Para os gregos da antiguidade matrimônio e amor não eram uma boa combinação.

Um outro orador assim se manifestou em relação a compra de novas prostitutas pela cidade-Estado de Atenas: “Louvado sejas Sólon! Pois comprastes mulheres públicas para o bem da cidade, para o bem dos costumes de uma cidade cheia de homens jovens e fortes que, sem tua sabia instituição, se entregariam a condenáveis perseguições das mulheres honradas”. A mesma argumentação seria utilizada por políticos e ideólogos das classes dominantes ao longo dos séculos. A prostituição e a família se completavam na sagrada missão de garantir a perpetuação da boa sociedade. (BEBEL, 1977:87)

O CRISTIANISMO E AS MULHERES

Os judeus dos tempos bíblicos já viviam em sociedades patriarcais, nas quais a monogamia exclusivamente feminina imperava soberana. Entre eles a poligamia era aceita apenas para os homens, especialmente os poderosos. Prova disso é o caso de Sara que teve que “oferecer” sua escrava Agar para Abraão. Raquel, por sua vez, deu a Jacó sua escrava Bilha. O objetivo era manter a descendência ameaçada pela suposta esterilidade das esposas. Mas, a poligamia não se aplicaria apenas neste caso, pois se conta que o rei Salomão tinha 700 mulheres e 300 concubinas. (BEBEL, 1977:76)

A mulher judia carecia de quaisquer direitos e era comprada e vendida pela própria família. O casamento era um comércio como outro qualquer. Escreveu Bebel: “Se na noite de núpcias o homem acreditasse que a mulher havia perdido sua virgindade, tinha o direito não só de repudiá-la, mas também deveria ser apedrejada. Este castigo também caberia a adultera”. Os adúlteros, é claro, estavam imunes deste tipo de humilhação. (BEBEL, 1977:77)

O cristianismo, conforme se expandiu e se tornou religião de Estado, foi aprofundando o anti-feminismo das culturas judaica e greco-romana. São Paulo predicou: “Que a mulher aprenda em silêncio com toda sujeição. Porque não permito a mulher ensinar, nem exercer domínio sobre o homem, senão estar em silêncio”. Em outra passagem diria aos homens “Que vossas mulheres calem nas congregações; por que não lhe é permitido falar (…) E se quiserem aprender algo, perguntem em casa aos seus maridos”. (BEBEL, 1977:113)

Na lógica desse cristianismo misógino, que ganhou corpo na Idade Média, a mulher era impura e sedutora. Foi ela que, segundo a Bíblia, havia trazido o pecado ao mundo e arruinado a felicidade humana. A lenda de Adão e Eva sintetizava bem esta visão anti-feminina. Tertuliano exclamava: “Mulher! (…) foi tu que arruinaste o gênero humano. Mulher! Tu és a porta do inferno!”.

São Thomas de Aquino não ficou para trás ao afirmar que “a mulher era uma erva má” e que “nasceram para estar sujeitas, eternamente, ao julgo de seu dono e senhor, a quem a natureza destinou o senhorio pela superioridade que há dado ao homem em todos os aspectos”. Santo Agostinho escreveu: “Faz parte da ordem natural, entre os humanos, que as mulheres sejam submissas aos homens (…) Porque, por uma questão de justiça, a razão mais fraca deve submeter-se a mais forte”. (GARAUDY, 1981:19)

Segundo Roger Garaudy, “a Igreja moldou-se, depois de Constantino, no século IV, na forma das estruturas imperiais romanas, que haviam martirizado seu fundador e que se opunham diretamente ao seu espírito, a exclusão da mulher tornou-se cada vez mais acentuada: progressiva obrigação do celibato dos padres e desconfiança sistemática diante da mulher, assimilada, num dualismo platônico, à matéria por oposição ao espírito, em suma, identificada com o pecado”. (GARAUDY, 1981:19)

O ódio contra as mulheres chegou ao auge nos grandes movimentos de perseguições às bruxas, que ocorreram no final Idade Média e tiveram uma roupagem religiosa – católica ou protestante. Centenas de milhares de mulheres foram presas, torturadas e assassinadas brutalmente na Europa e, depois, no Novo Mundo. O simples fato de serem mulheres que se destacavam nas suas comunidades pesou muito sobre o seu trágico destino.

Relacionando a bruxaria e a fisiologia da mulher, escreveu, em 1583, o inquisidor Leonard de Vair: “Mensalmente elas se enchem de elementos supérfluos e o sangue faz exalar vapores que se elevam e passam pela boca, pelas narinas e outros condutos do corpo, lançando feitiços sobre tudo que elas encontram”. (ALVES, PITANGUY. 1981:11-12) A figura feminina era associada ao diabo e à bruxaria.

Em 1515 a cidade de Genebra queimou mais de 500 mulheres acusadas de bruxaria. No bispado de Bamberg foram queimadas 500 de uma única vez e no de Wurtzburgo, 900. Os dois últimos localizados na atual Alemanha. Muitas morreram, simplesmente, por defenderem os seus direitos seculares de exercer atividades de parteiras e curandeiras. A “caça as bruxas” foi na verdade uma “guerra santa” contra as próprias mulheres.

O avanço burguês, entre os séculos XIV e XVIII, refletiu negativamente na situação das mulheres. Elas foram oficialmente excluídas de várias profissões, como a medicina e advocacia, e também das universidades. No século XIV foi proibida a sucessão feminina nos tronos. Em 1593 o Parlamento de Paris proibiu as mulheres de exercer funções públicas. O discurso religioso foi sendo completado pelo discurso pseudocientífico dos médicos e filósofos.

OS LIBERAIS E A IGUALDADE DA MULHER

Os direitos políticos das mulheres constituem, atualmente, uma condição de qualquer democracia moderna – burguesa ou socialista. Hoje nenhum país que recusasse os direitos políticos e sociais às mulheres poderia ser considerado democrático. Mas, esta é uma situação relativamente nova – nascida no século XX – e conquistada depois de muitas lutas.

Entre os pensadores iluministas foi Condorcet um dos poucos a abraçar a causa da emancipação política das mulheres. Em 1791 escreveu o solitário “Ensaio sobre a admissão das mulheres na cidade”. Era uma exceção à regra, pois o nascente mundo intelectual liberal-burguês não via com bons olhos a proposta de participação política do sexo feminino.

Os revolucionários norte-americanos que elaboraram a famosa “Declaração da Independência” tinham claro sua posição de superioridade sobre as mulheres e pretendiam conservá-la a qualquer preço. Diante da reivindicação de direitos para mulheres feita por sua própria esposa, o líder da Independência John Quincy Adams afirmou: “Estejam certas, nós somos suficientemente lúcidos para não abrir mão do nosso sistema masculino”. (ALVES E PINTANGUY, 1981:31) A jovem república norte-americana havia sido criada para o gozo exclusivo dos homens proprietários e de pele branca.

Na revolução francesa, iniciada em 1789, se repetiria o mesmo fenômeno. A “Declaração dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos” pretendia realizar o que efetivamente prometia: “garantir os direitos dos homens” e não os direitos “de homens e mulheres”. Os homens ali não eram entendidos, como viria a ser interpretado mais tarde, como “gênero humano” e sim como membros do sexo masculino.

O principal filósofo democrático do século XVIII, e que inspirou a ala radical da Revolução Francesa, foi Jean-Jacques Rousseau. Mesmo para ele ao homem deveria caber o mundo da política (e do trabalho produtivo) e à mulher o restrito espaço do lar. O seu livro Emílio ou Da educação, especialmente o capítulo “A idade da sabedoria e do casamento”, é paradigmático neste sentido.

Segundo ele, a mulher teria sido criada pela natureza para agradar ao homem e para ser subjugada por ele, pois um era “ativo e forte” e o outro “passivo e fraco”. O seu destino era o casamento e a maternidade. Por isso: “a rigidez dos deveres relativos a ambos os sexo não pode se a mesma. Quando a mulher se queixa a esse respeito da injusta desigualdade que o homem institui, ela está errada; tal desigualdade não é uma instituição humana, ou pelo menos não é obra do preconceito, mas da razão”. (ROUSSEAU, 1995:492-493)

Já em 1789, após a queda da Bastilha, uma comissão de mulheres levou um manifesto à Assembléia Nacional no qual afirmavam: “Destruístes os preconceitos do passado, mas permitistes que se mantivesse o mais antigo, que exclui dos cargos, das dignidades das honrarias e, sobretudo, de sentar-se entre vós, a metade dos habitantes do reino (…) Destruístes o cetro do despotismo (…) e todos os dias permitis que treze milhões de escravas suportem as cadeias de treze milhões de déspotas”. (ALVES E PINTANGUY, 1981:33) As mulheres começavam lentamente a se rebelar contra a opressão milenar que pesava sobre elas.

A situação em que foram colocadas as mulheres depois da revolução fez com que Olympe de Gouges publicasse, em 1791, a sua “Declaração dos direitos da mulher e da cidadã” – uma resposta feminina aos limites da revolução francesa que, como a inglesa e norte-americana, não garantiu às mulheres o direito ao voto, ao acesso às funções públicas e nem mesmo o direito pleno à propriedade. As revoluções em curso mais do que burguesas, eram masculinas.

“As mães, as filhas, as irmãs, representantes da nação, reivindicam constituir-se em Assembléia Nacional”, assim se iniciava a “Declaração dos direitos da mulher”, que no seu 10º artigo afirmava se “a mulher tem o direito de subir ao cadafalso, também lhe deve ser dado o direito de subir à tribuna”. (Internet link: http://www.eselx.ipl.pt/ciencias-sociais/tratados/1789mulher.htm)

Gouges subiu ao cadafalso e foi guilhotinada em novembro de 1793. O radical Chaumette escreveu em Le Moniteur: "Lembrem-se de Olympe de Gouges, a primeira a instituir as associações de mulheres e que abandonou os cuidados do lar para se intrometer na República, de quem a cabeça rolou sob o ferro vingador das leis."

A sua morte, no entanto, se deve mais a razões de ordem política imediata. Ela havia defendido teses que iam contra o poder revolucionário, dirigido pelos jacobinos. Por exemplo, advogou a necessidade de um plebiscito para que os franceses decidissem se desejavam a República ou a Monarquia. Posicionou-se contra a pena de morte, mesmo para a família real, e ficou ao lado dos girondinos que começavam a ser proscritos.

O terror revolucionário recrudesceu após o assassinato de Marat, um dos mais populares propagandistas revolucionários. A sua assassina foi justamente uma mulher, a jovem girondina Charlotte Corday. O ódio contra as mulheres girondinas tomou conta das massas populares. A feminista Théroigne de Méricourt foi atacada na rua – despida e apedrejada – e acabou enlouquecendo e, anos depois, morreu esquecida num asilo de alienados.

Logo após a execução de Olympe de Gouges todos os clubes políticos femininos foram fechados. Chaumette ao propor a lei que proibia os clubes afirmou: “A Natureza disse à mulher: seja mulher! Os ternos cuidados para com a infância, as doces inquietudes da maternidade, eis ai teu trabalho”. Assim, a revolução popular minava as suas próprias bases sociais.

Robespierre e os jacobinos foram derrubados em 1794. Ao terror vermelho seguiu-se o terror branco. O líder jacobino e cerca de cem de seus seguidores foram imediatamente degolados sem julgamento. As mulheres francesas, rapidamente, sentiriam este revés da revolução.

Em 1795 um decreto determinou que: “todas as mulheres se retirarão, até ordem contrária, a seus respectivos domicílios. Aquelas que, uma hora após a publicação do presente decreto, estiver nas ruas agrupadas em número maior que cinco, serão dispersas por força das armas e presas até que a tranqüilidade pública retorne à Paris.” (ALAMBERT, 1986:9-10) A nova Convenção anti-jacobina proibiu as mulheres de assistir suas reuniões, a menos que estivessem acompanhadas de um homem.

A consolidação da derrota das mulheres se deu com a aprovação dos Códigos Civil e Penal, aprovados respectivamente em 1804 e 1808, já sob o governo de Napoleão Bonaparte. Neles se restabelecia o princípio de que “a mulher deve obediência ao homem”. O marido passava a ter legalmente, entre outras coisas, o direito de exigir que os Correios entregassem a ele todas as cartas endereçadas a esposa, de dispor livremente do seu salário – muitos receberiam os salários pelas esposas. Para tudo a mulher necessitava da autorização do pai ou do marido.

Segundo o “código napoleônico” a mulher adultera poderia ser condenada de três meses até dois anos de prisão. O adultero, pelo contrário, deveria pagar apenas uma pequena multa. Um dos seus redatores justificou tal disparidade: “A infidelidade da mulher supõe mais corrupção e tem o efeito mais perigoso que aquela do marido” e Engels, por sua vez, ridicularizou o artigo do código que decretava solenemente que “a criança concebida durante o casamento terá por pai sempre o marido” e concluiu irônico: “Eis aí o último resultado de três mil anos de monogamia.”

A REPOSTA SOCIALISTA AO ANTIFEMINISMO LIBERAL BURGUÊS

Ao contrário dos liberal-burgueses, os principais socialistas utópicos foram bastante sensíveis ao problema da emancipação das mulheres. Saint-Simon, na sua Exposição da Doutrina, escreveu: “Nós teremos que mostrar como a mulher, primeiro escrava, ou pelo menos em uma condição que se avizinha da servidão, se associa ao homem e adquire cada dia maior influência na ordem social e como as causas que determinam até aqui sua subalternidade estão se enfraquecendo sucessivamente, devendo enfim desaparecer e levar com elas esta dominação, esta tutela, esta eterna minoridade que ainda se impõem às mulheres e que seriam incompatíveis com o estado social do futuro que prevemos”. (SAFFIOTI, 1976:70)

Mas, sem dúvida, foi Fourier que levou mais longe as formulações feministas. Entre outras coisas, argumentou que a “mudança de uma época histórica sempre se deixa determinar em função do progresso das mulheres em relação à liberdade, porque é aqui, na relação da mulher com o homem (…) que aparece de maneira mais evidente a vitória da natureza humana sobre a brutalidade. O grau de emancipação da mulher é a medida natural do grau de emancipação geral”. E, continuou, “ninguém fica mais profundamente punido do que o homem quando a mulher é mantida na escravidão”. (MARX, 1987:190)

Infelizmente nem todos os socialistas foram favoráveis a conceder direitos políticos e sociais às mulheres. Dentro da esquerda talvez tenha sido Proudhon (1809-1865), o pai do anarquismo, aquele que mais se colocou contra as reivindicações femininas. Para ele a mulher era, sob todos os aspectos, inferior ao homem. Inclusive tentou expressar essa inferioridade em porcentagens pseudo-científicas. Pelos seus cálculos a mulher possuía apenas 8/27 da capacidade masculina.

Segundo Evelyne Sullerot, Proudhon chegou ao absurdo de “pregar uma seleção genéticas que permitisse eliminar as esposas más e formar uma raça de boas esposas disciplinadas, como se formava uma raça de boas vacas leiteiras. Aspirava a uma legislação que desse ao marido o direito de vida e de morte sobre sua mulher”. (SULLEROT, 1970:88) As idéias preconceituosas de Proudhon fariam carreira no movimento operário europeu.

Marx, Engels e Bebel – A descoberta das origens da opressão

As posições feministas dos socialistas utópicos teriam um forte impacto no pensamento de dois jovens revolucionários alemães: Marx e Engels. Ainda nos seus primeiríssimos artigos na Gazeta Renana, em 1842, Marx assumiu a defesa da mulher, particularmente quanto ao direito do divórcio. Rejeitou a idéia predominante de que o casamento deveria ser indissolúvel. Escreveu Saffiotti: “Ao casamento, enquanto conceito, Marx opôs o casamento como fato social e, como tal, ele nada tem de indissolúvel, pois os fatos sociais se transformam, perecem, são substituídos por outros”. (SAFFIOTI, 1976:72)

Nas suas obras de transição da juventude para a maturidade Marx e Engels se interessaram mais diretamente pela questão da opressão da mulher. Esta preocupação já pode ser sentida em A Sagrada Família (1845) e nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos (1844). Nestas obras eles incorporaram a idéia-força de Fourier de que “o grau de emancipação da mulher é a medida natural do grau de emancipação geral”. Nos Manuscritos de 1844 escreveram: “A relação imediata, natural, necessária dos seres humanos é a relação do homem com a mulher (…) Eis por que, com fundamento nesta relação, se pode aquilatar o grau de desenvolvimento do homem”. (SAFFIOTI, 1976:73)

Mas o que os socialistas utópicos, e os jovens Marx e Engels, ainda não sabiam eram quais as bases da opressão feminina e os caminhos mais adequados para superá-la. Seria o materialismo-histórico que lhes permitiria decifrar o enigma da esfinge. O grande passo foi dado com a elaboração conjunta de A Ideologia Alemã (1846) e, posteriormente, do Manifesto do Partido Comunista (1848).

Na Ideologia Alemã já afirmavam: “Esta divisão do trabalho, que implica todas estas contradições e repousa opor sua vez, sobre a divisão natural do trabalho na família e sobre a separação da sociedade em famílias isoladas e opostas umas às outras – esta divisão do trabalho implica, ao mesmo tempo, a repartição do trabalho e de seus produtos, distribuição desigual, na verdade, tanto quanto à quantidade como quanto a qualidade; onde a mulher e os filhos são os escravos do homem. A escravidão certamente muito rudimentar e latente na família é a primeira propriedade, que, aliás, corresponde já plenamente aqui à definição dos economistas modernos segundo a qual ela é a livre disposição da força de trabalho de outro”. (SAFFIOTI, 1976:76)

Assim, o primeiro passo para emancipação – e não o último – seria a incorporação da mulher no trabalho social produtivo. “Para que a emancipação se torne factível é preciso, antes de tudo, que a mulher possa participar da produção em larga escala social e que o trabalho doméstico não a ocupe além de uma medida insignificante”, afirmou Engels. (ENGELS, 1974:182) Este era apenas o primeiro passo, que capitalismo já começava a realizar. A superação definitiva desta opressão milenar se daria através de uma revolução social que transformasse os meios de produção, e a riqueza por eles produzida, em propriedade social. A revolução socialista limparia o terreno para que a libertação da mulher pudesse, finalmente, ser completada.

Sem dúvida, entre os marxistas, Augusto Bebel (1840-1913) foi o primeiro a se debruçar especificamente sobre o problema da emancipação da mulher. Ele publicou o livro A mulher e o socialismo em 1879. Dez anos depois, após o fim das leis contra os socialistas, fez uma ampla revisão e atualização do livro. Bebel era operário, autodidata e se tornaria o principal líder político da social-democracia alemã até sua morte em 1913, as vésperas da eclosão da I Guerra Mundial.

A eminente socialista e feminista alemã Clara Zetkin escreveu: “As debilidades teóricas e algumas lacunas científicas deste livro ficam reduzidas a nada se se comparam com sua grande importância histórica”. A principal virtude do livro foi ter se oposto a “equivocada conclusão de que a reivindicação da igualdade das mulheres deveria esperar a atuação de um futuro Estado (…) O principal dirigente do proletariado alemão proclamou a luta pela plena equiparação do sexo feminino como um componente da luta do proletariado e como uma tarefa do presente”. (ZETKIN, 1972:107)

Bebel reconheceu as especificidades das luta feminista, que permitiria unir as mulheres de várias classes em torno de algumas bandeiras. O conjunto do sexo feminino, escreveu, “sofre duplamente: de um lado sofre debaixo da dependência social dos homens, a qual se suaviza, porém não se elimina com a igualdade formal de direitos diante da lei, e, de outro lado, devido a dependência econômica em que se acham as mulheres em geral (…)”. Por isso “as irmãs adversárias tem em maior proporção que o mundo masculino (…) uma série de pontos em comum ao qual podem dirigir sua luta (…)”. (BEBEL, 1977:44)

No entanto, alertava que, para as socialistas, “não se tratava apenas de realizar a igualdade de direitos da mulher como o homem no terreno da ordem social e política existente, o qual constitui o objetivo do movimento feminino burguês, mas de eliminar todas as barreiras que fazem que o homem dependa do homem e, portanto, um sexo ao outro (…) Daí que quem persiga a solução total da questão feminina deve se unir a quem tem inscrito em sua bandeira a solução da questão social e cultural para toda humanidade, ou seja, os socialistas”. (BEBEL, 1977:45)

Nem todos desposavam as opiniões avançadas de Bebel. Vários socialistas alemães eram contra colocar no programa partidário o voto feminino e a inclusão das mulheres no mundo do trabalho assalariado. Os Lassalianos, por exemplo, inverteram as teses dos socialistas utópicos ao afirmaram: “A situação da mulher só pode melhorar se se melhorar a situação do homem.”.

Na sua história do movimento operário alemão Eduard Bernstein descreveu uma assembléia da social-democracia berlinense que, em 1866, “superou o dilema teórico transferindo a emancipação da mulher ao Estado socialista do futuro e estigmatizando as aspirações ao trabalho feminino na indústria, já que as considerava um meio dos capitalistas conseguirem força de trabalho a preços mais baratos”. (ZETKIN, 1976:60)

Mesmo a corrente vinculada à Marx e Engels no interior da social-democracia alemã não seguia as indicações de seus mestres. O programa socialista de Eisenach (1869), elaborado por Wilhelm Liebknecht, estipulava apenas a necessidade de se conquistar o “sufrágio universal, direto e secreto concedido a todos os homens de mais de 20 anos”. O Programa de unificação entre lassalianos e marxistas, ocorrido em Gotha (1875), por proposta de Bebel, estabeleceria a bandeira: “Sufrágio universal, direto, secreto e obrigatório para todos os cidadãos com pelo menos 20 anos”. (MARX, ENGELS, LENIN, 1971:90) O fato de estar escrito apenas cidadão e não “cidadão e cidadã” deu margem a interpretações dispares.

A dúvida só foi resolvida quando, finalmente, o Programa de Erfurt (1891) estabeleceu explicitamente que o Partido social-democrata alemão deveria lutar “por direitos e deveres iguais de todos, sem exceção de sexo ou de raça” e pelo “sufrágio universal igual, direto e secreto para todos os membros do império com mais de vinte anos, sem distinção de sexo, em todas as eleições”. Por fim, propugnava a “abolição de todas as leis que, do ponto de vista do direito (…) colocam a mulher em estado de inferioridade em relação ao homem”. (MARX, ENGELS, LENIN, 1971:96)

Clara Zetkin: feminismo e revolução socialista

Clara Zetkin (1857-1933) foi a primeira grande líder feminina (e feminista) do movimento socialista alemão e internacional. Em 1891 passou a ser redatora do órgão de imprensa feminina da social-democracia alemã, considerado o jornal feminista de maior influência na história. Em 1896 apresentou o seu famoso informe sobre a questão da mulher no Congresso do Partido em Gotha.

Neste congresso é possível observar ainda uma visão estreita sobre a questão da mulher, que seria superada posteriormente. Ali ela afirmou: “O princípio-guia deve ser o seguinte: nenhuma agitação especificamente feminista, apenas agitação socialista entre as mulheres. Não devemos por em primeiro plano os interesses mais mesquinhos do mundo da mulher (…) Nossa agitação entre as mulheres não incluem tarefas especiais”. (ZETKIN, 1976:107)

Em 1907 ocorreu, em Stuttgart, um congresso da Internacional Socialista. Nele Zetkin apresentou uma proposta de resolução que afirmava: “Os partidos socialistas de todos os países tem o dever de lutar energicamente pela conquista do sufrágio universal feminino (…) direito que deve ser reivindicado vigorosamente em todos os lugares de agitação e no parlamento”. (ZETKIN, 1976:113)

Neste conclave Zetkin, com o apoio de Lênin, combateu os socialistas austríacos e ingleses que tergiversavam na sua propaganda do sufrágio universal feminino. Eles defendiam uma tática gradualista na qual primeiro deveria ser garantido o voto masculino. Zetkin achava que neste ponto não poderia haver qualquer concessão e acabou sendo vitoriosa.

Mas na sua justificação sentiu necessidade de esclarecer que o “reconhecimento do direito de voto ao sexo feminino não suprime a contradição entre exploradores e explorados (…) Para nós socialistas, o direito de voto das mulheres não pode ser o objetivo final, diferentemente das mulheres burguesas, porém consideramos a conquista deste direito como uma etapa bastante importante no caminho que levará até o nosso objetivo final”. (ZETKIN, 1976:113) No congresso internacional ocorrido em 1910, em Copenhague, defenderia a realização de um dia internacional das mulheres.

Apesar das resoluções aprovadas nos seus congressos, a social-democracia não colocou no centro de sua ação a luta pelos direitos sociais e políticos das mulheres. Zetkin fazendo um balanço crítico a respeito da ação socialista escreveu: “A II Internacional tolerou que as organizações inglesas afiliadas lutassem durante anos pela introdução de um direito de voto feminino restrito (…) permitiu também que o Partido social-democrata belga e, mais tarde, o austríaco se negassem a incluir, nas grandes lutas pelo direito ao voto, a reivindicação do sufrágio universal feminino (…) que o Partido dos socialistas unificados da França se contentasse com platônicas propostas parlamentares para a introdução do voto da mulher (…) A II Internacional nunca criou um órgão que promovesse em escala internacional a realização dos princípios e reivindicações a favor das mulheres. A formação de uma organização internacional das mulheres proletárias e socialistas para uma ação unitária e decidida nasceu a margem de sua organização, de forma autônoma”. (ZETKIN, 1976:143-144)

Zetkin foi uma das poucas, ao lado de Rosa de Luxemburgo, a romper com a direção reformista do Partido Social-democrata alemão, após a eclosão da I Guerra Mundial, e a ajudar a organizar o Partido Comunista. Foi eleita membro do Comitê Executivo da Internacional Comunista e presidente do Socorro Vermelho, organização mundial de solidariedade às vítimas da reação e do fascismo. Quando Hitler assumiu o poder ela era deputada comunista no Reichstag e teve que se exilar na URSS, onde veio a falecer ainda em 1933. Seu corpo foi enterrado nas muralhas do Kremlin ao lado dos heróis da revolução.

A revolução socialista de outubro de 1917 na Rússia abalaria o movimento socialista e afetaria profundamente a luta feminista de todo mundo. No nosso próximo, e último, artigo trataremos das conquistas e impasses das mulheres durante a primeira experiência de construção do socialismo ocorrida no mundo: a URSS.

AS MULHERES NO SOCIALISMO: AVANÇOS E IMPASSES

As conquistas da revolução

A situação das mulheres na Rússia czarista, como, aliás, na quase totalidade dos países capitalistas, era deplorável. No começo do século XX, 88% das mulheres russa não sabiam ler nem escrever. Em algumas regiões mais atrasadas os homens ainda tinham o direito de vida e de morte sobre suas esposas e filhas – uma tradição medieval que era tolerada pelo regime.

As perspectivas para as mulheres russas não pareciam muito boas. Em 1906 uma revista especializada – “Mensageiro da Educação” – apresentaria estudos afirmando que seria preciso 280 anos para que se conseguisse alfabetizar toda a população feminina russa. Na verdade, o Estado socialista, implantado em outubro de 1917, precisaria de apenas 50 anos para realizar esta façanha.

As mulheres russas também não podiam votar e nem participar de qualquer organização política. Não existia matrimônio civil, apenas religioso. Por isso eram vetados os casamentos entre pessoas de religiões diferentes. O divórcio era quase uma impossibilidade para as trabalhadoras e o seu ritual extremamente vexatório até mesmo para as mulheres da burguesia.

A revolução socialista viria abalar profundamente este estado de coisas e colocar a mulher em outro patamar na luta pelos seus direitos. Na verdade, a reviravolta já havia se iniciado meses antes quando o governo provisório, sob direção de Kerenski, sob pressão das massas insurgentes, especialmente das mulheres, promulgou o direito ao voto feminino.

A Rússia revolucionária foi o primeiro grande país europeu a instituir tal direito. O segundo país foi a Alemanha, após a revolução operária de 1918. A França e a Itália só viriam instituir o sufrágio feminino em 1945, após a vitória estrondosa das forças de esquerda antifascistas. A conquista dos direitos políticos e sociais das mulheres, diretamente e indiretamente, sempre esteve ligada aos avanços da revolução socialista no mundo.

Quatro dias após a tomada do poder, em outubro de 1917, os bolcheviques estabeleceram para as mulheres a jornada de 8 horas diárias de trabalho e proibiram o exercício de serviços noturnos e nas minas. Logo em seguida, aprovaram subsídios à maternidade e uma licença remunerada de oito semanas antes e oito semanas depois do parto para mulher trabalhadora.

A nova legislação, também, determinou que: “o salário das mulheres e dos homens fossem iguais quando efetuassem o mesmo trabalho e na mesma quantidade”. Como disse Evelyne Sullerot, “pela primeira vez uma nação proclamava o princípio de ‘para trabalho igual, salário igual’”. Um sonho distante para muitas mulheres do mundo capitalista naquela oportunidade.

Outro sinal de que as coisas mudariam para as mulheres na nova ordem foi a indicação da líder socialistas e feminista Alexandra Kollontai para o cargo de Comissária do Povo de Assistência Pública – título equivalente ao de ministro de Estado. Assim, Kollontai foi a primeira ministra da história. Embora tenha ficado poucos meses no cargo, é um fato que merece ser destacado.

John Reed no seu antológico livro Dez dias que abalaram o mundo descreveu este momento histórico: "Alexandra Kollontai nomeada em 3 de novembro para o Comissariado da Assistência Pública, foi saudada por uma greve geral dos funcionários. Só quarenta deles se conservaram nos seus postos. Os pobres nos asilos estavam quase nus. Delegações de inválidos caindo de fome, órfãos com as faces encovadas e lívidas, assaltaram o edifício. Kollontai, com os olhos rasos de água, foi obrigada a mandar deter os grevistas para obrigá-los a entregar as chaves das salas e dos cofres. E, quando as recebeu, verificou que o antigo ministro, a Condensa Panina, havia levado todo o dinheiro existente, negando-se a entregá-lo sem uma ordem da Assembléia Constituinte”. (REED, 1978:232) A burguesia e a direita socialista não estavam dispostas a aceitar alguém com Kollontai num Ministério até então sobre controle do clero e dos filantropos burgueses. .

A primeira constituição soviética estabeleceu que as mulheres desfrutariam de “direitos iguais aos homens em todos os terrenos da vida econômica, pública, cultural, social e política”. O código penal, por sua vez, determinou punições para os que buscassem impedir que isto se realizasse.

Após a I Guerra Mundial, com a volta dos homens dos campos de batalhas, grande parte das mulheres foi desalojada dos postos que haviam assumido nas empresas. Na Rússia revolucionária, devido a ocupação estrangeira e a guerra civil, os homens permaneceram em armas até 1921. Quando o conflito terminou tudo indicava que as russas teriam o mesmo destino das mulheres dos demais países que participaram da guerra.

Mas, esta tendência prejudicial à emancipação da mulher foi detida por intervenção direta do governo soviético. Em 1924, tomaram-se medidas concretas para impedir que as mulheres fossem demitidas e substituídas pelos homens. Uma nova legislação proibiu a demissão de mães solteiras ou separadas. Naquele mesmo ano criaram-se incentivos especiais e foram contratadas 217 mil novas operárias. Isto, segundo os bolcheviques, era uma necessidade política do socialismo.

Para que pudessem cumprir novas e maiores responsabilidades, as mulheres foram integradas massivamente nos cursos técnicos e superiores. Em 1928 o número de mulheres nestes cursos era de 83.137 mil e em 1933 já havia subido para 548.832 mil. (SULLEROT, 1970:191) Uma verdadeira revolução educacional feminina. A maior já vista na história até então.

Quando teve inicio o processo de industrialização forçada e colocou-se um fim a Nova Política Econômica, em 1929, as mulheres representavam 34,2% dos empregados nas indústrias e em 1933 já constituíam 37,7% da mão de obra. O maior símbolo daquela fase eram as sete mil motoristas de tratores. No ocidente eram usadas como exemplos negativos da masculinazação e degradação das mulheres no socialismo.

Não somente no plano do trabalho e da educação as mulheres soviéticas foram beneficiadas. Uma lei aprovada em dezembro de 1917 estabeleceu que o casamento passava a ser uma “união livre e aberta de um homem e uma mulher” e, portanto, poderia “ser dissolvido, de acordo com a vontade dos dois cônjuges, bem como de acordo com o desejo de apenas um deles”. Em caso de comum acordo o processo tramitava em menos de duas semanas. Escreveu Alexandra Kollontai: “o divórcio deixou de ser um luxo acessível aos ricos; daqui em diante, a mulher operária não terá que solicitar durante meses, ou até durante anos, um passaporte para se tornar independente de um marido brutal, ou ébrio, que a espanca”. (KOLLONTAI e LAFAGUE , 1979:47)

Mas, lembrou Heleith Saffioti, “a instituição do divórcio tem que ser vista dentro desse clima de moralidade retratado por Lênin. Não se trata de aplicá-lo em quaisquer circunstâncias, tornando uniões precárias e pouco duradouras, mas de legalizar as separações irremediáveis, dando a mulher o direito de se desligar juridicamente de um comparsa que não lhe convém. O divórcio é, assim, considerado peça fundamental de um programa de integração da mulher na sociedade em pé de igualdade com os homens”. (SAFFIOTI, 1976:88) Veremos a posição de Lênin mais abaixo.

No mesmo mês de dezembro outro decreto deixou de reconhecer a validade do casamento religioso. No início do ano seguinte, 1918, seria aprovado um Código da Família que regulamentava o casamento civil.

Por fim, foi o “país dos sovietes” que, em primeiro lugar, legalizou o aborto, dando as mulheres o direito sobre o seu próprio corpo. O decreto de outubro de 1920 afirmava: “O governo dos operários e camponeses (…) faz, em grande escala, uma sistemática propaganda contra os abortos e prevê, no caminho da estabilidade do regime socialista e dos progressos à maternidade e à infância, a extinção gradual desse fenômeno perigoso. Mas, na hora atual, as superstições de ordem moral herdadas do passado e a pressão das condições econômicas do momento ainda continuam a encaminhar certa parte da população feminina aos riscos desta operação. O Comissariado do Povo para a Saúde Pública e o Comissariado da Justiça, decretam:

1) A operação do aborto, efetuada livremente e a título gratuito, é autorizada pela lei, com a condição que ela seja praticada nos hospitais soviéticos, onde o máximo de segurança pode ser dado à paciente; 2) Uma proibição formal para efetuar esta operação é dirigida contra toda a pessoa sem diploma de médico; 3) As parteiras culpadas pela realização dessa operação, são privadas do direito de exercer sua profissão e são citadas perante o tribunal popular; 4) Todo o médico que, por motivos de lucros pecuniários, tenha feito esta operação fora das condições exigidas será citado perante o tribunal.” (NUNES, 2006)

Damos a palavra, novamente, a ministra Kollontai: “a República dos trabalhadores reconheceu que o abordo não era um delito. Essa lei foi promulgada por iniciativa e com a fervorosa participação da seção das mulheres (…) Reconhecemos que a URSS sofre, não de um excesso de força de trabalho, mas, ao contrário, carece dela (…) Como então se pode decretar que o abordo não é condenável? (…) O abordo é um fenômeno ligado ao problema da maternidade, resulta da situação precária das mulheres (…) O abordo existe e floresce em todos os países, e nem leis nem medidas de repressão puderam extirpá-lo. (…) Mas a ajuda clandestina às mulheres grávidas só serve para mutilá-las (…) Um abordo feito nas condições de uma intervenção cirúrgica normal é muito menos prejudicial, muito menos perigoso”. (KOLLONTAI, 1982:99-100)

Existiam limites a sua aplicação – vinculados à saúde e a segurança da mulher. O aborto era permitido apenas até os três primeiros meses da gravidez e exigia um parecer médico sobre os riscos da operação. Ana Lúcia Nunes constata que “o código penal soviético punia severamente a realização dos abortos fora das condições especificadas na lei. A pena poderia ser, dependendo do caso, prisão ou multa; e penas mais graves quando a ação tinha caráter profissional mercenário, realizada sem o consentimento da mulher ou a levava à morte”. (NUNES, 2006) Sem dúvida, as melhores condições da gestação, parto e maternidade ajudaram a reduzir significativamente a mortalidade infantil na URSS nas décadas de 1920 e de 1930.

Mas, existiam regiões econômica e culturalmente muito atrasadas no interior das Repúblicas Soviéticas. Locais nos quais as conquistas femininas demoraram a chegar e onde elas encontraram grandes resistências. Mesmo ali a revolução foi fazendo seu trabalho profilático, ainda que lentamente.

A jornalista comunista Anna Louise Strong, que visitou a URSS no final dos anos 1920, deu o seu testemunho sobre a cultura reacionária que ainda persistia nestas regiões e a atitude ativa do poder soviético para superá-la. Mesmo com o risco de cansar os leitores, citaremos uma longa passagem de um de seus artigos sobre a situação das mulheres na Ásia soviética:
“Ali, as mulheres eram tratadas como bens semoventes, vendidas em matrimônio. Mesmo assim, quando muito jovens, e nunca, depois disso, eram vistas em público sem o horroroso véu preto feito com crina de cavalo tecida, que cobria toda a face, dificultando a respiração e a visão das mulheres. A tradição conferia aos maridos o direito de matar as esposas caso retirassem o véu e os mulás, sacerdotes muçulmanos, justificavam tal prática através da religião”.
“Quando visitei Tashkent pela primeira vez, em 1928, uma conferência de mulheres comunistas estava denunciando: ‘Nossas camaradas estão sendo violentadas, torturadas e assassinadas. Por isso, ainda este ano, teremos que acabar com essa horrorosa obrigação do uso de véus; este deve ser um ano histórico’”.

“Enquanto isso, incidentes chocantes deram razão a esta resolução. Houve o caso da garota de uma escola de Tashkent, que recebeu férias para que pudesse participar de agitações pelos direitos das mulheres na aldeia de sua casa. Como resposta, seu corpo desmembrado foi mandado de volta à escola em uma carroça, onde se lia: Isto é para a liberdade de suas mulheres”.

“Uma outra mulher havia recusado as atenções de um proprietário de terras e casara-se com um camponês comunista. Em conseqüência, um grupo de dezoito homens, incitados pelo proprietário, a violou no oitavo mês de gravidez e lançou seu corpo em um rio”. Mas, “ao tomar conhecimento deste fato, o Poder Soviético usou várias armas para libertar as mulheres, como a educação, a propaganda e a lei em todas as partes. Grandes julgamentos públicos condenaram duramente os maridos que assassinaram suas esposas. Com a pressão das novas exigências, juízes confirmaram a pena de morte para os praticantes do que o velho costume não considerava como crime”. (STRONG, 2003)
Eis o Estado socialista agindo a favor da libertação da mulher.

Lênin e as mulheres

Ao pensar nas grandes conquistas das mulheres sob o socialismo não podemos desassociá-las do nome do líder revolucionário Vladimir Ilitch Lênin. Uma de suas máximas, seguindo a velha tradição socialista, era “o proletariado não pode lograr a liberdade completa sem conquistar a plena liberdade para as mulheres”. Em 1902 foi ele que propôs a inclusão no programa do Partido Social-Democrata Russo do item: “estabelecimento da plena igualdade de direitos do homem e da mulher”.

O projeto de Programa, aprovado em 1903 incluía, entre outras coisas, a proibição do trabalho noturno, excetuando-se naqueles que fosse absolutamente necessário por razões técnicas. Propunha ainda a proibição do trabalho feminino em ramos que fossem prejudiciais ao seu organismo. Também apregoava o fim do trabalho infantil.

Em 1907, Lênin ficou do lado de Clara Zetkin quando, no Congresso da Internacional Socialista, ela condenou as políticas de alguns socialistas que colocavam no centro de suas reivindicações o voto masculino e re-legavam para um segundo momento a luta pelo voto feminino. Escreveu ele:

“Os social-democratas alemães, sobretudo Zetkin, protestaram quando os austríacos iniciaram a campanha pelo sufrágio universal. Zetkin declarou na imprensa que de maneira alguma se devia adiar a reivindicação do sufrágio feminino; que os austríacos sacrificavam de maneira oportunista os princípios por consideração de conveniência e que, longe de debilitar o alcance da agitação e o impulso do movimento popular, a defesa, com a mesma energia do direito eleitoral feminino, daria maior vigor ao movimento popular. (…) “Por essa discussão entre as social-democratas austríacas e alemãs, poderá o leitor constatar quão severa é a atitude dos melhores marxistas ante os menores desvios de uma tática revolucionária conseqüente de princípios”. (LÊNIN, 1980:21-22)

Lênin, ainda, se pronunciou decididamente a favor do divórcio livre. “Não se pode ser democrata e socialista, afirmou, sem exigir imediatamente a plena liberdade de divórcio, pois a falta desta liberdade implica a máxima ofensa ao sexo oprimido, da mulher, ainda que não seja nada difícil compreender que o reconhecimento da liberdade de deixar os maridos não significa convidar a todas as mulheres procederem desta forma”.

No entanto, continuou ele, “no capitalismo, o direito ao divórcio, como todos os direitos democráticos, sem exceção, é difícil de ser exercido, é convencional, limitado, estreito e formal; não obstante, nenhum social-democrata honesto tomará por socialista, nem sequer democrata, a quem negue este direito. Aí está o essencial. Toda ‘democracia’ consiste proclamar e realizar ‘direitos’, cuja realização no capitalismo é muito escassa e muito convencional; porém, sem esta proclamação, sem a luta pela concessão imediata dos direitos, sem a educação das massas no espírito de tal luta, o socialismo é impossível”. (LÊNIN, 1980:41-44)

O líder bolchevique, por outro lado, era um crítico ácido das teses do “amor livre”, conforme defendidas por várias feministas, inclusive socialistas. Em janeiro de 1917 pediu que sua amiga Inessa Armand suprimisse de um de seus folhetos a “reivindicação (feminina) do amor livre”. A preocupação de Lênin era que esta “reivindicação” fosse confundida com a defesa da licenciosidade amorosa. Numa outra carta propôs contrapor “o amoral e sujo matrimônio pequeno-burguês- intelectual-camponês sem amor (…) ao matrimônio civil proletário com amor”. (LÊNIN , 1980:39)

Nas longas conversas que teve com Clara Zetkin, Lênin expressava suas opiniões e apreensões sobre o debate em curso sobre o “amor livre”, que ganhava corpo entre a juventude:

“Ainda que eu não tenha nada de asceta sombrio, a chamada ‘nova vida sexual’ da juventude – e frequentemente dos adultos – me parece com bastante freqüência (…) uma variedade das respeitáveis casas burguesas de tolerância. Tudo isto não tem nada em comum com o amor livre, como o entende os comunistas. Você naturalmente conhece a famosa teoria de que, na sociedade comunista, satisfazer o desejo sexual e as inquietudes amorosas é uma coisa tão simples e de tão pouca importância como beber um ‘copo d’água’ (…) Os partidários dela afirmam que é uma teoria marxista (…)

Creio que a famosa teoria do ‘copo d’água’ não tem nada de marxista e, além disso, é anti-social (…) Beber água é realmente coisa individual. Porém, no amor participam dois e surge uma terceira, uma nova vida. Aqui, aparece já o interesse social, surge o dever ante a sociedade (…) Não que eu queira, com minha crítica, pregar o ascetismo. Nem pensar em tal coisa. O comunismo deve trazer consigo não o ascetismo, mas a alegria de viver e o otimismo, suscitado também pela plenitude da vida amorosa”. E concluiu irônico: “Nem um monge nem um Don Juan, nem, tampouco um filisteu alemão como termo médio”. (LÊNIN: 1980: 108-110)

Antes mesmo que outros revolucionários o fizessem, em 1913, num artigo contrário ao neomalthusianismo, Lênin defendeu abertamente o direito das mulheres ao aborto: “somos incondicionais inimigos dos neomalthusianos (…) Mas, isto não nos impede de modo algum, de exigir a abolição absoluta de todas as leis que castigam o aborto ou a difusão de obras de medicina, nas quais se expõem medidas anticoncepcionais etc. Semelhantes leis não indicam senão a hipocrisia das classes dominantes. Estas leis não curam as doenças da sociedade capitalista, mas as fazem particularmente malignas e perniciosas para as massas oprimidas.” (LÊNIN, 1980:29)

Ele sabia da importância da luta das próprias mulheres trabalhadoras para o seu processo de emancipação. Por isso afirmou em tom provocativo: “a emancipação dos operários deve ser obra dos próprios operários, e da mesma maneira a emancipação das operárias deve ser obra das próprias operárias”. As mulheres não poderiam ficar à espera da vontade soberana dos homens, mesmo sendo eles sinceros revolucionários.

Em As tarefas do proletariado em nossa revolução, escrito em abril de 1917, Lênin afirmou: “Sem incorporar a mulher na participação independente tanto na vida política em geral como no serviço social permanente que devem prestar todo cidadão, é inútil falar só em socialismo, e nem sequer de uma democracia completa e estável”. (LÊNIN, 1980:46)

Nas suas propostas para a revisão do Programa do Partido Bolchevique, elaboradas também em abril de 1917, entre outras coisas propugnou: “Proibição do trabalho feminino nos ramos nos quais é prejudicial para o organismo feminino; proibição do trabalho feminino noturno; liberar a mulher do trabalho oito semanas antes e oito semanas depois do parto, mantendo o salário completo durante todo este período, com assistência e medicamento gratuitos” e “instalação em todas as fábricas e demais empresas onde trabalhem mulheres, de creche para crianças de peito e de pouca idade e de locais para as amamentar; liberar as mulheres que amamentem do trabalho cada três horas no máximo, e não menos de meia hora cada vez; concessão de subsídio às mães que amamentam e redução de sua jornada de trabalho a seis horas”. (Lênin, 1980:51)

Menos de dois anos após a Revolução de Outubro, no artigo Uma grande Iniciativa, Lênin poderia afirmar: “Nenhum partido democrático do mundo, em nenhuma das repúblicas burguesas mais avançadas, tem feito, neste aspecto, em dezenas de anos, nem a centésima parte do que temos feito no primeiro ano do poder soviético. Não temos deixado pedra sobre pedra (…) das vergonhosas leis que estabeleciam a inferioridade jurídica da mulher, que punham obstáculo ao divórcio e exigiam para concretizá-lo requisitos odiosos, que proclamavam a ilegitimidade dos filhos naturais (…) Em todos os países civilizados subsistem numerosos vestígios destas leis, para a vergonha da burguesia e do capitalismo. Temos mil vezes razão para nos sentirmos orgulhosos do que temos feito neste sentido. Entretanto, quanto mais nos desfazemos do fardo de velhas leis e instituições burguesas, tanto mais claro vemos que somente preparamos o terreno para a construção, porém esta ainda não começou”. (LÊNIN, 1980:65)

Em outro artigo, O poder soviético e a situação da mulher (1919), escreveu: “Em palavras, a democracia burguesa promete igualdade e liberdade. Mas, de fato, as repúblicas burguesas, por mais avançadas que sejam, não tem dado à mulher, que constitui a metade do gênero humano, plena igualdade com o homem ante a lei nem a tem libertado da tutela e da opressão do homem (…) Abaixo a vil mentira! Não pode haver, não há, nem haverá ‘liberdade’ verdadeira enquanto os privilégios que a lei concede aos homens impeçam a liberdade da mulher”. (LÊNIN, 1980:76)

O orgulho de Lênin era plenamente justificado, em poucos anos a URSS tinha realizado plenamente o programa do movimento feminista de então: direitos políticos iguais, salários iguais, direito ao divórcio e ao aborto (livres e gratuitos), ensino misto e igual para os dois sexos, rede de creches e escolas públicas etc. A URSS passou a ser um exemplo para as mulheres avançadas de todos os países.
Também era claro para Lênin que as coisas não poderiam andar no mesmo ritmo em todo imenso território soviético. Ele sabia que “a igualdade na lei não significava igualdade na vida”. Era necessário que as trabalhadoras conseguissem a igualdade com os trabalhadores não somente perante a lei, mas também na vida.

Os Debates da década de 1920

Entre 1925 e 1926 a sociedade soviética foi sacudida pelo debate em torno do novo Código da Família. Nele voltou à tona temas polêmicos como a emancipação da mulher, a moral socialista, o papel do Estado na defesa da família e das crianças etc.

Com já vimos, o primeiro Código da Família soviético foi promulgado no final de 1918. Ele instituiu na Rússia soviética, pela primeira vez, o casamento civil e estabeleceu que “só o casamento civil laico, registrado no órgão apropriado dos atos de estado civil, implica direitos e deveres dos esposos”.

O Comissário do Povo da Justiça, Koursk, explicaria a diferença entre os dois Códigos: “Enquanto o Código de 1918 logo nos seus primeiros artigos centrava a atenção sobre a criação de órgãos de registro, quer dizer, sobre a regulamentação das relações matrimoniais e familiares, o novo projeto concentra a sua atenção sobre a fixação dos direitos e deveres matrimoniais, sem ter em conta o fato de o casamento ter sido ou não registrado”. (VOLKOVA, 1978:95) Portanto, segundo ele, significava um avanço sobre o código anterior.

Quando ocorreu a Revolução de Outubro não havia casamento civil, apenas o religioso. Então a primeira medida do novo Estado foi trazer o controle para si e tirá-lo das mãos do clero conservador. Assim, passaram a ser considerados apenas os casamentos registrados nos órgãos estatais. Se a lei conseguiu separar o Estado da Igreja manteve uma disparidade de direitos entre os casamentos reconhecidos (antes pela Igreja e agora pelo Estado) e os não reconhecidos. Isso ocasionava danos aos últimos na hora da separação – especialmente para as mulheres com filhos.

Era esta lacuna jurídica que a lei de 1926 procurava preencher. A legislação tinha que dar conta da realidade existente e não o inverso. A lei tinha que se adaptar ao fato de que centenas de milhares de casais conviviam maritalmente, mas se recusavam por inúmeras razões a registrar em cartório a sua situação – e esse tipo de relação resultava em certo patrimônio material e filhos. Quando ocorria a separação estava criado um vazio jurídico que pesava contra a mulher, pois era esta que ficava com o filho e não podia requerer pensão alimentar e partilhas de bens, restritas as separações dos casamentos registrados.

A filosofia de um Estado Socialista deveria ser proteger todas as crianças e mulheres independentemente dos casamentos terem sido registrados ou não. Por isso a proposta do novo Código estendia para todas as mulheres separadas os mesmos direitos.
Um dos artigos novo Código, por exemplo, proclamava: “Estabelece-se o registro do casamento com o objetivo de facilitar e salvaguardar os direitos pessoais e os direitos de propriedade, assim como os interesses dos cônjuges e das crianças”. Mas ele não era o único meio de convalidação de uma união dos cônjuges.

Afirmou outro defensor do novo Código, Brandenbourgsky: “Na lei soviética a família e as relações familiares se assentam no parentesco de fato e não na formalidade do casamento registrado” e concluiu: “o casamento tem por base, não o registro, mas o puro fato da coabitação conjugal”. (VOLKOVA, 1978:96)

Prevendo a futura legislação na transição ao comunismo, Koursky, escreveu: “Virá o tempo, estou disso perfeitamente convencido, em que colocaremos o casamento registrado e o casamento de fato em pé de igualdade sob todos os pontos de vista e aboliremos o registro (…) O legislador deve (…) dar um passo em frente e reconhecer que o registro é a bem dizer mais do que uma transição para uma forma mais elevada da união liberta de toda e qualquer formalidade”. (VOLKOVA, 1978:97)

Segundo os comunistas – assentados nas prospecções de Marx e Engels – poderia se prever que, no futuro, o Estado (e depois a sociedade auto-regulada) assumiram integralmente as necessidades das crianças. Assim, tais mecanismos legais, como registros de casamentos e de divórcios, necessidade de pensões e indenizações monetárias seriam extintos naturalmente.

O Código soviético de 1927, sem dúvida, era o mais avançado do mundo até aquele momento. Acabava com a predominância masculina no casamento, característica de todas as outras legislações. Punha fim a distinção entre casamento registrado e o “de fato”, entre filhos legítimos e “bastardos”, garantia às mulheres e aos filhos direitos até então inexistentes. Muitas dessas concepções, por pressão do movimento socialista e feminista, passariam a ser incorporadas às legislações das principais democracias burguesas ocidentais nas décadas que se seguiram. Os liberais não podem tirar dos comunistas este pioneirismo.

Mas, também, existiram aqueles que no interior do Partido Bolchevique se colocavam contra a proposta de alteração do Código da Família de 1918. Eles defendiam que o Estado soviético deveria regulamentar de maneira mais rigorosa as relações familiares. O principal mecanismo de controle familiar e social deveria ser o registro civil.

Segundo eles, o registro civil era uma exigência do nível econômico e cultural do povo russo. Belodorov afirmou: “O Estado não pode dizer: é me totalmente indiferente que o casamento dure ou não dure; ou que não se dissolva muito frequentemente; com efeito, da estabilidade dos casamentos dependem inúmeras conseqüências de importância inegável para a sociedade”. (VOLKOVA, 1978:100)

Os contrários a nova legislação acreditavam que o casamento obrigatório seria uma arma ainda necessária contra o casamento religioso, que continuava a predominar em várias regiões da Rússia e contra a poligamia, ainda praticada pelas populações muçulmanas. A legislação ainda deveria ter um caráter organizador e pedagógico nesta primeira fase da construção do socialismo. Uma certa estabilidade na família deveria existir para que os elementos da nova sociedade pudessem se manter e se desenvolver.

Riazanov foi um dos mais azedos críticos da proposta de novo Código. Na sua crítica utilizaria do argumento de autoridade, citando Lênin que havia morrido alguns anos antes:

“Segundo a nova lei, o registro dos casamentos é efetuado no interesse do Estado e da sociedade. Da antiga lei, de que Lênin dizia com razão ser uma das leis mais radicais da Revolução de Outubro, querem os nossos demasiados zelosos inovadores fazer uma simples lei burguesa (…) Bom trabalhador do partido comunista, o camarada Preobrajensky sabe perfeitamente que toda a discussão sobre este assunto não passa de conversa burguesa e anarquista”.

“Vivemos hoje num período transitório em que a sociedade evolui par uma sociedade socialista. Já realizamos as condições prévias; o poder está nas mãos do proletariado e os principais meios de produção estão nas mãos da sociedade. Mas não realizamos ainda o socialismo. É uma tarefa para um grande número de anos”.

“A própria sociedade socialista é apenas uma primeira fase da evolução para o comunismo, que é uma fase superior. Sob o regime socialista libertar-nos-emos de toda uma série de normas jurídicas e outras que ainda conservamos no período de transição. Hoje, podemos apenas atenuar o efeito dessas normas, para que elas não perturbem o desenvolvimento do socialismo”. (RIAZANOV, 1975:52-54)

Riazanov foi derrotado no debate e o novo Código seria aprovado pela ampla maioria do partido e dos órgãos soviéticos. Alguns anos mais tarde Riazazov seria afastado do Partido Comunista por “desvio de direita”, acusado de menchevismo. Ironicamente uma versão mais radicalizada – e bem mais conservadora – das teses de Riazanov seria defendida pela alta cúpula do Partido e do Estado Soviético, sob a direção de Stalin. Muitas das idéias presentes no Código de 1927 seriam consideradas ultrapassadas e condenadas como desvio de esquerda.

Impasses e regressões

A partir de meados da década de 1930 ocorreu um arrefecimento do debate em torno do problema da emancipação da mulher. Predominou amplamente uma visão economicista (produtivista) e perderam-se as múltiplas dimensões da questão feminina – que se traduziu no campo político, teórico, cultural, moral etc.

Podemos dizer que os componentes que conduziram à crise do socialismo foram os mesmo que conduziram à crise do feminismo soviético, pois o desenvolvimento do socialismo acompanha o desenvolvimento do processo de emancipação da mulher. Um se alimenta no outro. Quando um retrocede ou outro também tende a retroceder. Esta é uma conclusão dos clássicos do marxismo.

Em 1934, pela primeira vez desde 1917, a homossexualidade foi criminalizada. Dois anos depois, em 1936, uma nova lei sobre a proteção da mãe e da criança proibiu a realização do aborto e passou a se exercer forte repressão sobre aqueles que a praticavam. A nova lei estipulava que a mãe receberia uma reprimenda pública e pagaria uma multa. O médico que o realizasse cumpriria uma pena que variaria de 2 a 3 anos de prisão.

Stalin afirmou no alto de sua autoridade de principal dirigente do Estado Soviético: “O aborto que destrói a vida é inadmissível em nosso país. A mulher soviética tem os mesmo direito que o homem, porém isso não a exime do grande e nobre dever que a natureza lhe há designado: ser mãe da vida”.

Trotsky retrucou:

“Eles esqueceram visivelmente que o socialismo deveria eliminar as causas que levam a mulher ao aborto e não fazer intervir a polícia na vida íntima da mulher para lhe impor as ‘alegrias da maternidade’”. “No outono passado, os Izvestia revelou de súbito que ‘cerca de mil mulheres que se dedicavam nas ruas de Moscou ao comércio secreto do seu corpo’, acabavam de se detidas. Entre elas, cento e setenta e sete operárias, noventa e duas empregadas, cinco estudantes, etc. O que as lançava nas ruas? A insuficiência de salário, a carência ou a necessidade ‘de arranjar algum suplemento para comprar sapatos ou um vestido’. Em vão tentamos conhecer, mas só em aproximação o conseguimos, as proporções deste mal social (…) Ninguém sonhará em censurar particularmente o regime soviético por esta praga tão velha como a civilização. Mas é imperdoável falar no trunfo do socialismo enquanto existir a prostituição”. (TROTSKY, 1977:172)

“A verdadeira família socialista, libertada pela sociedade das pesadas e humilhantes tarefas cotidianas, não terá necessidade de nenhuma regulamentação. Até mesmo a idéia das lei sobre o divórcio e o abordo não lhe parecerá melhor do que a recordação das casas de prostituição ou dos sacrifícios humanos. A legislação de outubro tinha dado um passo firme na direção dessa família. O estado atrasado do país sob os aspectos econômicos e cultural provocou uma cruel reação. A legislação termidoriana recua para modelos burgueses, não sem cobrir a sua retirada com frases falsas sobre a santidade da ‘nova’ família.” (TROTSKY, 1977:178)

Estas medidas regressivas coincidiam com o crescimento da repressão política contra a oposição e o início dos chamados processos de Moscou. Graças à repressão e a violação da legalidade socialista na URSS, sob direção de Stalin, a “teoria progredia de maneira insuficiente, passava por uma fase de relativa estagnação. Surgiram variados problemas decorrências do desenvolvimento objetivo da sociedade em construção. Escasseavam respostas teóricas a tais problemas, gerando ausência de perspectiva. Medrava, em certa medida, o subjetivismo, o empirismo e o dogmatismo” (AMAZONAS, 2005:256). Isto teve conseqüências no campo das relações sociais – que tinha como um de seus elementos centrais a relação entre homens e mulheres.

Entre 1944 e 1946 vários livros e brochuras de divulgação das mudanças da situação da mulher e da família circularam pelo mundo. Destacamos aqui Maternidade, matrimônio y família na lei soviética de Sverdlov e A mulher na União Soviética de Serebrennikov. Através deles, especialmente o de Sverdlov, é possível acompanhar claramente as mudanças ocorridas na construção teórico-ideológica e nas políticas públicas relativas à mulher e a família na URSS. Sobre o novo papel da família soviética escreveria Sverdlov:

“O Estado Soviético vê na família a base da educação normal e sã das crianças. A família desenvolve e afiança no homem aquelas qualidades que devem ser norma de conduta de cada cidadão do país dos sovietes: o sentimento de solidariedade, de ajuda mútua, de responsabilidade pelo bem estar da coletividade”

“O Estado está vitalmente interessado no crescimento da população, que só pode ser assegurado ali onde se há criado as condições necessárias para uma vida normal da família. Deste modo e com este fim, o Estado trata de afiançar fortemente a família”.

“O Estado tem fundamentos sobrando para ver na família a célula em que pode apoiar-se e que é capaz de sustentá-lo. Por isso o Estado vê na família sua base real. Ao afiançar à família, se afiança a si mesmo, consolida sua força, sua potência.” (SVERDLOV, 1946: 21-22)

Foi visando “estabilizar” e “fortalecer” a família soviética que um decreto de 1944 estabeleceu que “somente os casamentos legais assegurariam direitos e deveres para o marido e para a mulher. As pessoas vivendo maritalmente deveriam legalizar a sua união”. Assim, somente os casamentos registrados e os filhos assim concebidos passariam a ser reconhecidos pelo Estado. Voltava-se, por via indireta, à antiga distinção jurídica entre filhos legítimos e naturais. Escreveu Sverdlov:

“A lei soviética reconhece o valor jurídico só daquele casamento que se realiza ante o poder civil e se registra nos órgãos de inscrição de atas de matrimônio (…) Até 8 de julho de 1944 a lei soviética reconheciam também o matrimônio não legalizado. A coabitação efetiva do homem e a mulher, ainda que não tivesse registrado nos organismos da SAGS (Registro de atas do Estado civil) traziam consigo os mesmos direitos e deveres do matrimônio registrado (para a solução de questões sobre os alimentos, repartições de bens, direito de herança).”

“O decreto de 8 de julho de 1944 introduziu sérias modificações neste assunto. Agora somente através da legalização do matrimônio, os cônjuges tem direito aos alimentos, a parte dos bens adquiridos durante o matrimônio, dos bens depois da morte do esposo etc. De tal maneira o ‘matrimônio efetivo’ carece de proteção jurídica”

O não registro pareceria aos olhos do Estado, um fenômeno “que expressa atitudes frívolas, irreflexivas, em relação ao matrimônio e a família (…) O Estado soviético está interessado na legalização do matrimônio, já que isto possibilita de influir sobre as relações matrimoniais num sentido útil e necessário (…)”. O registro seria “um ato mediante o qual Estado soviético, com toda força de sua autoridade, reconhece estas relações matrimoniais, as aprova, as apóia e as coloca sob sua defesa e proteção”. (SVERDLOV, 1946:32)

O divórcio, por sua vez, somente seria concedido em casos considerados graves e após a decisão de um juiz. Desde a década de 1930 o divórcio passou a ser pago e em caso de reincidência ele aumentava de valor. A partir de então o casal que quisesse se separar deveria pensar duas vezes, pois teria que arcar com o ônus financeiro. Deixamos novamente a palavra à Sverdlov:

“Em 1936, o governo soviético considerou necessário – para eliminar a possibilidade de uma atitude ligeira em relação à família e aos deveres familiares – introduzir algumas emendas na lei sobre o divórcio. Foi estabelecido como obrigatório a presença no SAGS dos cônjuges que desejam se divorciar. Foi introduzido a anotação do passaporte de divórcio e elevado o custo do seu registro”

“Um passo posterior foi dado pelo Decreto do Presidium do Soviete Supremo da URSS, de 8 de julho de 1944. Ao não introduzir de maneira alguma a proibição do divórcio, permitido, se para ele houver motivo sério. O direito soviético introduz normas restritivas para impedir o divórcio não fundamentados e evitar a atitude ligeira diante do casamento”.

“Tendo estabelecido o motivo, o Tribunal Popular está obrigado a tomar medidas para reconciliar os esposos. Se o tribunal não conseguir reconciliar, a causa será examinada por um tribunal de instância superior (…) Deste modo, a nova lei concede ao tribunal o direito de anulação do matrimônio ou negá-lo”. (SVERDLOV, 1946:42-43)

Aprovada a separação legal, os requerentes deveriam pagar 100 rubros ao juizado e entre 500 e 2000 rubros para o SAGS. Os trabalhadores com menor remuneração eram os que mais sofriam com tais medidas restritivas.

No final da II Guerra Mundial o Estado soviético ainda criaria condecorações para as mulheres que tivessem mais filhos: a de “Glória maternal” para aquelas que tivessem entre sete e nove filhos e a de “Mãe heróica” para aquelas com dez ou mais filhos.

Num documento soviético poderia se ler “que os interesses da mulher como mãe (…) estão melhor assegurados quando mais sólidas e constantes sejam as relações entre os esposos. (…) Precisamente a família assegura as condições normais para o nascimento e a educação dos filhos, cria as premissas mais favoráveis para que a mulher cumpra com sua nobre e alto dever de mãe”. Fortaleceu-se, assim, a imagem da mulher apenas enquanto mãe. Um estereótipo que a revolução de 1917 tentou acabar.

Nestes anos cresceu o moralismo no campo das relações familiares e sociais, que em tudo se distanciava do antigo espírito libertário forjado por Lênin e Kollontai. Em algumas regiões, por exemplo, foi re-introduzido o ensino separado entre meninas e meninos. Este clima se espalhou pelo movimento comunista internacional nas décadas de 1940 e 1950.

Alguns anos mais tarde, em 1950, um documento do PCF, a exemplo dos soviéticos, procurou justificar as alterações na legislação relativa à mulher e a família medidas:

“Os êxitos dos planos qüinqüenais consolidaram a família soviética. A partir do 2º Plano Qüinqüenal, a continua elevação do nível de vida, o crescente bem-estar dos trabalhadores, a multiplicação das maternidades, das creches, das escolas, tornaram caduca e absurda a prática do abordo (..). A defesa e o desenvolvimento da família passaram a ser uma das preocupações primordiais do governo soviético (…) A guerra contra o invasor hitleriano tinha que impelir ao reforço da família. O decreto de 8 de julho de 1944 estabelece que ‘só o casamento legal assegura direitos e deveres para o marido e para a mulher. As pessoas vivendo maritalmente deverão legalizar a sua união. O divórcio só dera concedido em casos importantes e após decisão do tribunal”.

“Assim, a legislação soviética sobre a família, inspirada nas idéias do marxismo-leninismo, obedece, na evolução por que passa desde há 30 anos, à preocupação de libertar e defender a mulher. Esta preocupação conduziu o legislador soviético do divórcio livre ao divórcio regulamentado, do aborto legal à proibição do aborto. Multiplicou-se as instituições de ajuda a família, protegeu a mão e o filho, deu à maternidade um lugar de honra ao recompensar as mães (em 1 de junho de 1949 contavam-se mais de dois milhões de mães de 5 a 6 filhos, com medalha da maternidade, 700 mil mães com 10 ou mais filhos, titulares da medalha de ‘mãe heróica’, aumentando-se nesta base os abonos e subsídios. O Estado soviético vela pela solidez e estabilidade da família. Porque a família abre ao indivíduo uma vida plena e total. É ela que educa as crianças no espírito do socialismo; é ela que assegura a capacidade de produção do país”. (FREVILLE, 1950).

Apenas cinco anos depois, em 1955, o que era “caduco” e “absurdo” voltaria a ser permitido na URSS, novamente com os aplausos do PCF e demais partidos comunistas.

As razões de algumas destas medidas estavam ligadas às necessidades econômicas de incrementar a população – devido à aplicação dos planos qüinqüenais e a sangria em sua população ocasionada pela II Guerra Mundial. Mas, a argumentação oficial era que a proibição do aborto, do homo-sexualismo, do casamento livre e os novos obstáculos impostos ao divórcio se deviam ao fato de a URSS ter entrado numa fase superior do socialismo, que a conduziria diretamente ao comunismo. Limitar os direitos das mulheres em nome da defesa do socialismo e do comunismo era um contra-senso político e teórico para qualquer marxista sério.

Nestes anos foi visível a redução do papel das mulheres no núcleo duro do poder de Estado e no Partido Comunista. A URSS não produziu mais nomes expressivos como Krupskaia, Alexandra Kollontai ou Inessa Armand. A explosão da participação política das mulheres, iniciada com a revolução russa, não foi concluída e refluiu. Os comitês femininos que jogaram um grande papel pós-revolução perderam força e desapareceram. O feminismo, inclusive na sua vertente socialista, passou a ser considerado um desvio pequeno-burguês.

Outro problema estava ligado às opções econômicas adotadas pelo governo soviético, expressas nos Planos Qüinqüenais. Escreveu Saffioti: “O grande esforço que a URSS concentrou na formação e desenvolvimento da indústria pesada retardou o aparecimento e crescimento da indústria de eletrodomésticos e de produtos alimentícios que notoriamente representam um grande auxílio à mulher economicamente ativa e que só agora estão sendo implementados.”. (SAFFIOTI, 1976:89)

Volkova constata também que no Partido Comunista “o número de mulheres manteve-se por todo um período à volta de 20%; nenhum esforço foi feito no sentido de recrutar para o partido em proporções mais representativas do seu lugar na economia”. (VOLKOVA, 1978:33) Em 1929 as mulheres representavam 13,7% dos membros do Partido; em 1941 eram 14,9%; em 1945 eram 17%; em 1950 subiram para 20,7% e se mantiveram no mesmo patamar nos anos seguintes – em 1970 chegou a 21%. O auge da participação no PCUS se deu no final da década de 1970 e início de 1979 que chegou 25,6 de participação feminina no interior do Partido. (PCUS, 1980:93)

Mas, o recuo não foi completo e a mulher soviética continuou, por longos anos, usufruindo de direitos que as mulheres no capitalismo estavam longe de conseguir. Lembramos apenas que o aborto e o divórcio livres não eram reconhecidos em quase nenhum país. Portanto, mesmo na sua fase mais “conservadora”, a URSS não ficou aquém de nenhuma das democracias ocidentais no campo do direito da família e da mulher.

Houve também um aumento gradual da participação da mulher no mercado de trabalho até o final da década de 1950. Em 1928 elas representavam 24% da mão de obra; em 1940, 39%; em 1945, 56%; em 1950, 47%, por fim em 1960, 57%. O boom de 1945 deveu-se a guerra mundial, mas em 1960 os mesmos índices eram alcançados. Embora tenha ocorrido uma relativa queda na participação nos anos seguintes. Em 1965 as mulheres representavam 49% dos trabalhadores e em 1970 subiu para 51%. (VOLKOVA, 1978:26)

Ao lado da alta porcentagem de mulheres no mercado de trabalho tínhamos uma “divisão sexual do trabalho” menos assimétrica que em outros países. Na URSS as mulheres estavam distribuídas em quase todas as profissões. Isso não significa que não houvesse desajustes que desfavoreciam as mulheres – como o fato de as profissões predominantemente femininas fossem, em geral, menor remuneradas.

Segundo Heleith Saffioti, “as mulheres representavam (em 1959) 54% das pessoas possuidoras de instrução superior, superior incompleta ou secundária especializada. Dentre as pessoas possuidoras de instrução superior e ocupadas na economia nacional, as mulheres representavam, em 1961, as seguintes porcentagens: engenheiros: 31%, agrônomos, zootécnicos, médicos veterinários 41%, economistas, estatísticos, especialistas em mercadologia: 59%; juristas: 32%, médicos (dentistas não compreendidos): 74%; professores, especialistas tendo uma instrução universitária, bibliotecários: 67%” (SAFFIOTI, 1976:90). Na década de 1970 as mulheres representavam 31% dos membros do Soviete Supremo – contra 28% em 1966. Proporções bastante altas comparadas as dos países capitalistas no mesmo período.

Mesmo uma crítica ao stalinismo como Volkona foi obrigada a reconhecer que “a posição jurídica das mulheres soviéticas e o seu papel na produção encontra-se mais avançados em relação aos países capitalistas, sob todos os pontos de vista. São presentemente melhor educadas, vivem melhor e tem um estatuto social mais elevado do que antes da revolução. Desapareceram muitos dos aspectos negativos da era stalinista, que tornaram a sua vida particularmente difícil nos anos 1930 e 1940. A educação mista foi re-introduzida, o aborto voltou agora a ser autorizado e embora os divórcios continuem sendo pagos, não custam caro (…) Existe uma maior disponibilidade de bens de consumo (…) e um aumento dos equipamentos comunais que aliviaram o trabalho das mulheres nos últimos anos”. (VOLKOVA, 197864)

Na mesma linha escreveu Heleith Saffioti: “a experiência soviética demonstra que, se a libertação da mulher e sua conseqüente integração na sociedade não se realizaram plenamente sob o regime socialista, foi sob este regime que ela atingiu seu maior grau”. (SAFFIOTI, 1976::89-90) Aprender com os acertos e os erros desta rica experiência é necessário para que possamos retomar em outro patamar a luta pelo socialismo e pela emancipação das mulheres no século XXI.

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* Ensaio publicado no livro “Revolução Russa: Processos, personagens e influências”, publicado em 2007 pelo Centro Popular de Estudos Contemporâneos (CEPEC) de Goiás. Organizado por David Maciel, Cláudio Maia e Antônio H. Lemos.

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AS MULHERES E OS DIREITOS POLÍTICOS NO BRASIL

É preciso sempre lembrar as situações degradantes que viveram as mulheres durante séculos e a luta persistente que travaram para, finalmente, conseguirem se firmar como cidadãs. É claro que muito ainda falta a ser conquistado, mas olhando para trás vemos o quanto já se caminhou.

No Brasil, por exemplo, as mulheres apenas puderam se matricular em estabelecimentos de ensino em 1827. O direito a cursar uma faculdade só foi adquirido cerca de 50 anos depois. Apenas em 1887 o país formaria sua primeira médica. As primeiras mulheres que ousaram dar esse passo rumo à sua autonomia e profissionalização foram socialmente segregadas.

O primeiro Código Civil brasileiro, aprovado em 1916, reafirmou muitas das discriminações contra a mulher. Escreveu a professora Lígia Quartim de Moraes: “Com o casamento, a mulher perdia sua capacidade civil plena. Cabia ao marido a autorização para que ela pudesse trabalhar, realizar transações financeiras e fixar residência. Além disso, o Código Civil punia severamente a mulher vista como ‘desonesta’, considerava a não virgindade da mulher como motivo de anulação do casamento (…) e permitia que a filha suspeita de ‘desonestidade’, isto é, manter relações sexuais fora do casamento, fosse deserdada”. As mulheres casadas – ou sob o pátrio poder – eram consideradas incapazes juridicamente, como as crianças, os portadores de deficiência mental, os mendigos e os índios.

Desde a formação da sociedade brasileira, as mulheres foram excluídas de todo e qualquer direito político. Por exemplo, a Carta Outorgada do Império (1824) e a primeira Constituição da República (1891) não lhes concederam o direito de votar e nem de serem votadas. Uma situação que persistiria até as primeiras décadas do século XX. Eram, portanto, consideradas cidadãs de segunda categoria.

Nesse período sombrio elas não se calaram. No entanto, só muito recentemente a história da resistência feminina começou a ser desvendada pela historiografia. As mulheres lutaram pelo direito à Educação e pelos seus direitos civis e políticos. Também se envolveram nos grandes movimentos que ajudaram a construir a nação, como as lutas pela independência, a campanha abolicionista, a proclamação da República etc.

A primeira feminista brasileira de que se tem notícia foi a potiguar Nísia Floresta (1809-1885). Ela se destacou como educadora, criando e dirigindo diversas escolas femininas no país. Considerava a educação o primeiro passo para a emancipação da mulher. Traduziu e publicou o manifesto feminista de Mary Wollstonecraft – Direitos das Mulheres e Injustiças dos Homens. Após ter permanecido 28 anos na Europa, ao voltar para o Brasil, apoiou o movimento abolicionista e republicano. Nísia foi uma pessoa muito à frente de seu tempo.

A imprensa alternativa feminina, surgida em meados do século XIX, foi, no entanto, o embrião do movimento de mulheres. Em 1852, a jornalista Juana Noronha fundou e dirigiu o primeiro jornal produzido por mulheres – o Jornal das Senhoras. No ano de 1873, a professora Francisca Motta Diniz fundou o jornal O sexo feminino. Em um de seus editoriais afirmava: “Não sabemos em que grande república ou republiqueta a mulher deixe de ser escrava e goze de direitos políticos, como o de votar e ser votada. O que é inegável é que em todo o mundo, bárbaro e civilizado, a mulher é escrava”. O jornal se envolveria na grande campanha pela abolição da escravatura.

Inúmeros outros jornais femininos surgiriam. A maior parte deles teve vida curta, e mesmo não sendo revolucionários ou ao menos abertamente feministas, ajudaram a conscientizar as mulheres sobre o papel subalterno que lhes destinava então a sociedade. Este texto se concentrará na luta das mulheres pelos direitos políticos, especialmente o direito de votar e serem votadas.

A República Velha e os direitos das mulheres

Desde meados do século XIX, as mulheres começaram a tentar romper o cerco que as envolvia e a conquistar seus direitos políticos. O voto feminino foi um dos temas tratados pelos deputados que elaboraram a 1ª Constituição Republicana (1891). Contudo, o texto final acabou não deixando clara a situação política da mulher. Ele não proibia explicitamente o voto feminino, mas também não o garantia de maneira cristalina. A ambiguidade de sua redação possibilitou que a grande maioria dos legisladores e o próprio poder judiciário interpretassem ao seu bel prazer o que pretendiam os constituintes. Isso excluiu as mulheres do processo político-eleitoral por vários anos.

As argumentações dos antifeministas radicais eram as mais execráveis. O deputado Tito Lívio afirmou que as mulheres tinham “cérebros infantis” e seriam portadoras de “inferioridade mental” e “retardo evolutivo” em relação aos homens. Lacerda Coutinho, por sua vez, disse que “as mulheres tinham funções (biológicas) que os homens não tinham e essas funções eram tão delicadas (…) que bastava a menor perturbação nervosa, um susto, um momento de excitação, para que elas se pervertessem”.

A maioria dos opositores ao voto feminino argumentava de maneira diferente. Sustentava a superioridade moral da mulher e, justamente por isso, ela seria incompatível com a política. A mulher deveria ser protegida pela sociedade deste mal. Deus e/ou a natureza haviam reservado a ela outro papel, mais nobre, o de “rainha do lar”. Essa, por exemplo, era a visão dos positivistas.

Já as mulheres leram o texto constitucional de outra forma. Se ele explicitava os que estavam excluídos (mendigos, analfabetos, índios, praças de pré e religiosos de ordens monásticas sujeitos a voto de obediência) e entre eles não se encontrava referência às mulheres, isso era uma comprovação de que o voto feminino não havia sido vetado.

Essa pequena brecha foi usada para tentar romper o dique. Ao longo dos anos, várias mulheres, em diversas regiões do país, tentaram se alistar como eleitoras. Em 1910, diante das constantes recusas, algumas mulheres de vanguarda fundaram o Partido Republicano Feminino. Ainda que pequeno, ele mostrava o grau de consciência e organização atingido pelas mulheres brasileiras no início do século XX.

Entre suas fundadoras estavam a professora Leolinda Daltro e a escritora Gilka Machado. Esse aguerrido partido chegou a promover em novembro de 1917 uma passeata com quase 100 mulheres no centro do Rio de Janeiro. Não deixava de ser uma pequena revolução. No mesmo ano, o deputado socialista Maurício de Lacerda apresentou um projeto estabelecendo o voto feminino, que não chegou a ser apreciado pela Câmara.

Naquela época, outra personagem entrou em cena: Bertha Lutz. Filha de um dos mais renomados cientistas brasileiros, Adolfo Lutz, estudou na Sorbonne e formou-se em Biologia. Na França entrou em contato com as ideias feministas que fervilhavam em solo europeu.

De volta ao Brasil, em 1918, imediatamente envolveu-se na luta pelo voto feminino. Na influente Revista da Semana afirmou: “As mulheres russas, finlandesas, dinamarquesas e inglesas (…) já partilham ou brevemente partilharão do governo, não só contribuindo com o voto como podendo ser elas próprias eleitas para o exercício do Poder Legislativo (…). Só as mulheres morenas continuam, não direi cativas, mas subalternas (…). Todos os dias se leem nos jornais e nas revistas do Rio apreciações deprimentes sobre a mulher. Não há, talvez, cidade no mundo onde menos se respeite a mulher”.

Pertencente à elite econômica, política e intelectual brasileira, Bertha Lutz teve algumas condições para a sua atuação que outras não tiveram. No ano seguinte (1919), foi indicada pelo governo brasileiro para participar da reunião do Conselho Feminino da Organização Internacional do Trabalho. Ali foi aprovado o princípio de salário igual para trabalho igual, sem distinção de sexo. Ela também representou o país na I Conferência Pan-Americana da Mulher, realizada em abril de 1922.

Nos Estados Unidos, onde se realizou esse encontro, conheceu Carrie Chapman Catt. Esta representava uma corrente menos radical do movimento feminista internacional e condenava os métodos radicais das sufragistas europeias, especialmente britânicas. Bertha Lutz, numa entrevista, afirmou que a orientação da senhora Carrie era “muito salutar, pois o movimento nos Estados Unidos tem sido muito digno e completamente alheio aos métodos violentos empregados por alguns países europeus”. Esses métodos pacíficos se adequavam mais à condição social das feministas brasileiras daquele tempo.

Ainda em 1922, Bertha organizou o 1º Congresso Feminista e fundou a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF). Esta foi a primeira entidade feminista brasileira com expressão nacional e internacional. Entre os seus objetivos estavam: “assegurar à mulher os direitos políticos que a nossa constituição lhe confere” e “estreitar os laços de amizade com os demais países americanos a fim de garantir a manutenção perpétua da paz e da justiça no Hemisfério Ocidental”. A referência ao “hemisfério ocidental” não era casual e refletia a ideologia predominante no movimento.

Um congresso jurídico realizado no Rio de Janeiro aprovou por 28 votos contra apenas 4 resoluções que diziam: “1º) A mulher não é, moral nem intelectualmente, inapta para o exercício dos direitos políticos; 2º) Em face da Constituição Federal, não é proibido às mulheres o exercício dos direitos políticos”. Rui Barbosa também passara a defender a tese da constitucionalidade do voto feminino.

Uma garota do barulho

Entre os nomes femininos que cabe ainda destacar neste conturbado ano de 1922 é o da combativa estudante Diva Nolf Nazário. Na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde estudava, defendeu, contra a maioria de seus pares, o simples direito de votar na eleição do diretório acadêmico XI de Agosto. Consciente da situação inferior que se encontravam as mulheres, participou ativamente da fundação da Aliança Paulista pelo Sufrágio Universal, tendo sido sua secretária-geral.

Convencida da constitucionalidade do voto feminino, ela tentou se registrar como eleitora. Para isso, fez uma verdadeira peregrinação por vários órgãos públicos. Chegou mesmo, depois de muita insistência, a conseguir um registro eleitoral provisório. Contudo, o parecer do juiz eleitoral foi-lhe desfavorável.

Escreveu o magistrado: “Entendem, por certo, a maioria dos nossos representantes que (…) não era ainda o momento de romper com as tradições do nosso direito, segundo as quais as palavras ‘cidadãos brasileiros’, empregadas nas leis eleitorais, designam sempre cidadãos do sexo masculino”. Para ele as atribuições plenas da cidadania se vinculavam às “energias e veemências próprias da organização viril”. A mulher seria uma criatura “destinada a dividir harmonicamente com o homem a responsabilidade da vida em comum, ela, na tranquilidade do lar, cuidando da ordem doméstica, ele, no trabalho cotidiano, auferindo meios de prover a subsistência da família”. Diva recorreu da decisão e seu pedido foi indeferido. O caso repercutiu nacionalmente e ganhou as páginas dos principais jornais.

No ano seguinte, 1923, ela publicou Voto Feminino e Feminismo, no qual apresentou sua luta e as diversas posições existentes em relação ao sufrágio feminino, através de artigos publicados na imprensa daquela época. O livro, cuja edição fac-similar antecede este texto, é referência obrigatória para aqueles que desejam pesquisar o movimento feminista no início do século XX.

A crise do Estado Oligárquico e o avanço feminista

No Congresso Nacional também crescia o número de parlamentares favoráveis ao voto feminino. Alguns projetos chegaram mesmo a ser aprovados nas comissões e em primeira votação nas duas casas legislativas. Nas eleições presidenciais de 1922, a vitória eleitoral de Arthur Bernardes – um opositor do voto feminino – representou um duro golpe para os objetivos da FBPF. Seu governo foi marcado pelas rebeliões tenentistas, o permanente estado de sítio e perseguições políticas a seus opositores.

Washington Luís, eleito presidente em 1926, incluiu em sua plataforma eleitoral o voto feminino. Sua vitória animou as militantes feministas. A luta foi retomada dentro e fora do parlamento. O estopim foi a proposta de realização de uma reforma eleitoral. Novamente foram apresentados projetos que garantiam o voto às mulheres e as Comissões de Justiça deram pareceres favoráveis a eles.

As entidades femininas fizeram um abaixo-assinado com mais de duas mil assinaturas, em geral de mulheres de projeção social. Uma comissão passou a acompanhar de perto o trabalho parlamentar. Tudo indicava que, desta vez, a situação seria resolvida favoravelmente às mulheres.

Contudo, o projeto que instituía o voto feminino acabou não sendo votado, pois dois senadores apresentaram emendas desfigurando-o. Uma das emendas elevava a idade mínima para votação e eleição de 21 para 35 anos, com o objetivo de evitar que “meninas de pouca idade” fossem eleitas para o Congresso. A outra emenda também estabelecia o voto diferenciado para mulheres, em que se afirmava: “Podem votar e ser votadas (…) as mulheres diplomadas com títulos científicos e de professora, que não estiverem sob poder marital nem paterno”. A matéria voltou para a Comissão de Justiça que rejeitou as emendas. O projeto entrou em lista de espera para nova votação, que nunca ocorreria.

O dique, no entanto, começara a ser rompido. Juvenal Lamartine havia sido um dos senadores que mais defenderam a proposta do direito de voto para as mulheres e, por isso mesmo, foi apoiado por elas na sua campanha ao governo do Rio Grande do Norte. Antes mesmo de tomar posse, solicitou que seus correligionários na Assembleia Legislativa aprovassem o projeto que estabelecia o voto feminino. Assim, as mulheres potiguares foram as primeiras a usufruir desse direito, bem como foram as primeiras mulheres a assumirem cargos no legislativo e executivo no país. Júlia Alves Barbosa foi eleita intendente (vereadora) em Natal e Alzira Soriano eleita prefeita em Lajes, ambos municípios do Rio Grande do Norte.

Em 1927, os votos femininos contabilizados na eleição para o Senado foram cassados pela Comissão de Poderes do Congresso Nacional. Segundo essa Comissão, as mulheres poderiam votar apenas nas eleições para as Câmaras Municipais e Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte, mas não nas eleições federais. A FBPF, em protesto, lançou um duro Manifesto à Nação. Ficava cada vez mais claro para muitas mulheres que não seria aquele sistema decadente que garantiria o seu direito ao voto.

A direção da FBPF procurava tomar distância da política partidária – embora tivesse ligação com setores das oligarquias presentes no poder. Quando Nathércia Silveira, dirigente nacional, se envolveu abertamente na campanha de Getúlio Vargas, teve que se afastar da entidade. Logo após a vitória da Revolução de 1930, ela fundou a Aliança Nacional de Mulheres (ANM) que congregou mais de 3 mil filiadas e procurou dar sustentação política e social ao novo regime.

A Revolução de 1930 e a conquista do voto feminino

A primeira proposta de código eleitoral feita pelo governo provisório de Vargas ainda limitava o voto feminino, determinando que só poderiam votar as mulheres solteiras e viúvas acima de 21 anos e, as casadas, apenas com autorização dos maridos. Houve uma grande campanha unificada entre a ANM e a FBPF para derrubar tais restrições. As líderes feministas se encontraram pessoalmente com Vargas e tiveram então suas reivindicações atendidas.

O novo Código Eleitoral, promulgado em 1932, garantiu-lhes o direito de votar e serem votadas. Essa prerrogativa seria exercida, pela primeira vez, na eleição da Assembleia Nacional Constituinte de 1934, quando o Brasil se tornou o quarto país das Américas a estabelecer o voto feminino. Antes dele, haviam-no concedido o Canadá, Estados Unidos e Equador.

A paulista Carlota Pereira de Queiróz foi a primeira mulher eleita para a Câmara dos Deputados. Formada em Medicina, era também uma representante destacada da elite paulista. Berta Lutz, apesar de seu esforço, não conseguiu se eleger pelo Rio de Janeiro. Ela ficaria na primeira suplência. Alagoas, Bahia, Sergipe, São Paulo e Amazonas elegeram deputadas estaduais. O Sul teria que esperar um pouco mais.

Vargas indicou Bertha e Nathércia, como representantes das mulheres brasileiras, para a comissão especial encarregada de elaborar a proposta de constituição federal que seria apreciada pelo Congresso – um fato inédito na história política brasileira. A Constituição de 1934 iria estabelecer claramente, sem ambiguidade, o direito de voto para as mulheres. Bertha assumiria, finalmente, sua vaga na Câmara dos Deputados, em 1936.

Naquela conjuntura de crise cresceu a influência da esquerda entre as mulheres. Como resultado, em 1934, foi fundada a União Feminina. Ela se integraria à Aliança Nacional Libertadora (ANL), que tinha participação de socialistas, comunistas e anti-imperialistas. Após a cassação desta entidade e do esmagamento do levante aliancista, ocorrido em novembro de 1935, as principais dirigentes da União Feminina foram presas. Em seguida, a FBPF e demais entidades femininas sofreriam um duro golpe com a criação do Estado Novo em 1937. Com a ausência de democracia, o movimento feminino sofreu forte impacto e um refluxo involuntário.

As operárias, embora tivessem grande atuação nas greves pelas campanhas salariais e de melhores condições de trabalho, não tiveram grande atuação na luta pelos direitos políticos. Isso refletia vicissitudes do movimento operário brasileiro daquela época. Os anarquistas, força hegemônica até meados da década de 1920, negavam a importância da atuação política institucional e não se incorporaram na luta pelo sufrágio universal, que consideravam improcedente. O próprio Partido Comunista, criado em 1922, ainda padecia de certo obreirismo e pouquíssima inserção junto às mulheres, mesmo as trabalhadoras.

Assim, a luta pelo sufrágio feminino foi travada fundamentalmente pelos setores de vanguarda da burguesia e da pequena burguesia urbana. Isso teve consequências na ideologia e nas formas de organização e de luta do movimento feminista brasileiro do início do século XX. Sem bases sociais populares, não se produziu uma forte corrente de esquerda como aconteceu em alguns países europeus.

Apesar desses limites, podemos afirmar que sem a ação decidida de mulheres como Berta Lutz e Diva Nolf, não seria possível falar em democracia e cidadania no Brasil. Por isso, seus nomes deveriam constar num lugar de honra dos nossos livros de história, rompendo assim com a situação de invisibilidade que o mundo burguês masculino procurou condená-las.

** Artigo publicado em Voto Feminino e Feminismo de Diva Nolf Nazario, Editora Imprensa Oficial (SP) em 2009.

ENGELS E AS ORIGENS DA OPRESSÃO DA MULHER

Marx e Engels foram, no século 19, os pensadores que mais contribuíram para o desvendamento das verdadeiras origens da opressão da mulher e, com isso, criaram as condições para que fossem construídos os caminhos que conduziriam à sua libertação. Um dos ma
Esta obra, escrita por Engels, teve por base uma série de anotações deixadas pelo próprio Marx, que havia falecido no ano anterior à sua publicação. Por isso, segundo seu autor, o livro foi “a execução de um testamento” e concluiu: “o meu trabalho só debilmente pode substituir aquele que o meu falecido amigo não chegou a escrever”.

O livro se tornou um êxito de venda – atingindo 4 edições em menos de sete anos – e foi traduzido em várias línguas. Até hoje continua sendo uma referência obrigatória para todos aqueles que querem entender melhor a formação da família e do Estado modernos.

Trataremos neste pequeno artigo apenas dos aspectos referentes à história da família e, consequentemente, da história da derrota da mulher no seu interior e os caminhos apontados por Engels (e Marx) para superação desta opressão milenar.

A “ciência da família” estava dando os seus primeiros passos quando os dois pensadores socialistas alemães se interessaram por ela. A obra pioneira neste campo havia sido O direito Materno de Bachofen, publicada em 1861. Nela o autor expõe, pela primeira vez e para escândalo geral, a tese de que nas sociedades primitivas, em certo período, teria predominado o matriarcado – ou seja, havia predominado a ascendência social e política das mulheres sobre os homens.

Engels, no prefácio de 1891, referindo-se a descoberta de Bachofen, escreveu: “primitivamente não se podia contar a descendência senão por uma linha feminina (..) essa situação primitiva das mães, como os únicos genitores certos de seus filhos, lhes assegurou (…) a posição social mais elevada que tiveram (…), Banchofen não enunciou esses princípios com tanta clareza (…) mas, o simples fato de tê-los demonstrado, em 1861, tinha o significado de uma revolução”.

Até a década de sessenta (do século 19), continuou, “não se poderia sequer pensar em uma história da família. As ciências históricas ainda se achavam, nesse domínio, sob a influência dos Cinco Livros de Moisés. A forma patriarcal da família, pintada nesses cinco livros como maior riqueza de minúcias do que em qualquer outro lugar, não somente era admitida, sem reservas, como a mais antiga, como também se identificava – descontando a poligamia – com a família burguesa de hoje, de modo que era como se a família não tivesse tido evolução alguma através da história”. Era como se Deus e/ou a Natureza tivessem, desde sempre, reservado à mulher um papel subalterno no interior da família e da sociedade.

Na seqüência do livro de Bachofen foram publicadas obras como O casamento primitivo (1865) de autoria de Mac Lennan, Origem da Civilização (1870) de Lubbock e, por fim, A sociedade antiga (1877) de Lewis Morgan. Esta última teve um forte impacto sobre Marx e Engels. No prefácio de A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado afirmou-se: “Na América, Morgan descobriu de novo, e à sua maneira, a concepção materialista da história – formulada por Marx, quarenta anos antes”.

Isso não significa que Engels e Marx abonassem tudo o que dissera Morgan. O próprio Engels escreveu: “A coisa, aliás, não teria sentido se eu quisesse escrever ‘objetivamente’ não criticando Morgan, não utilizando os resultados recentemente conseguidos, não os colocando em relação como nossas concepções e os dados já estabelecidos. Isto não serviria em nada aos nossos operários”. Na última versão da obra (1891), Engels já sentiu a necessidade de fazer algumas alterações baseadas no desenvolvimento da ciência nos sete anos decorrido desde a primeira edição.

O grande mérito destas obras, publicadas nas décadas de 1870 e 1880, foi a constatação de que a família tinha história e que, ao longo dos séculos, tinha conhecido várias formas. A família monogâmico-patriarcal era apenas uma delas. Conclusão: o poder masculino e a submissão da mulher não eram eternos, como diziam as religiões e as pseudociências racistas e sexistas da época.

Entre 1880 e 1881, Marx estudou profundamente a obra de Morgan e produziu cerca de cem páginas de anotações. Depois passou a devorar o que havia de mais atualizado sobre o assunto. O seu objetivo era escrever um tratado sobre a evolução da família e a relação entre os sexos, mas morreu antes que pudesse concluir o seu ousado projeto. Infelizmente Marx morreu, também, sem concluir os capítulos sobre as classes sociais e o Estado, que comporiam a sua obra magna O Capital. Talvez, se tivesse concluído estes importantes trabalhos, teríamos uma outra visão sobre o fundador do materialismo-histórico.

A empolgação de Engels pelas descobertas de homens como Bachofen e, especialmente Morgan, pode ser aquilatada ainda no prefácio de 1891. Ali concluiu que o “descobrimento da primitiva gens de direito materno, como etapa anterior à gens e direito paterno dos povos civilizados, tem, para a história primitiva, a mesma importância que a teoria da evolução de Darwin para a biologia e a teoria da mais-valia, enunciada por Marx, para a economia política”.

Morgan havia ido mais longe que Bachofen, que era idealista, ao afirmar que a evolução da família estava relacionada, em última instância, às transformações ocorridas no mundo da produção. Foi do livro de Morgan, por exemplo, que Engels e Marx extraíram a famosa divisão da sociedade antiga em “três épocas principais”: estado selvagem, barbárie e civilização – divididos segundo os “progressos obtidos na produção dos meios de subsistência”. Morgan, também, tratou de maneira mais fundamentada – e de maneira materialista – a transição do matriarcado ao patriarcado monogâmico.

Seguindo a trilha aberta Morgan, Engels afirmou: “Temos, pois, três formas principais de casamento que correspondem grosseiramente aos três estágios principais da evolução humana. No estado selvagem, o casamento por grupos; na barbárie o casamento sindiástico, na civilização, a monogamia completada pelo adultério e a prostituição”. Atente-se aqui para as palavras “três épocas principais” (e não únicas) e “correspondem grosseiramente” (e não exatamente).

Na sociedade primitiva a descendência “contava apenas pela linha feminina”. Os filhos não pertenciam a gens paterna e sim a gens materna. “Com a morte do proprietário de rebanhos estes teriam de passar primeiramente para seus irmãos e irmãs e aos filhos destes últimos, ou aos descendentes das irmãs de sua mãe. Quanto aos seus próprios filhos, eram deserdados”.

Continuou Engels: “À medida, portanto, que as riquezas aumentavam estas davam ao homem, por um lado, uma situação mais importante na família que a da mulher, e, por outro lado, faziam nascer nele a idéia de utilização dessa situação a fim de que revertesse em benefício dos filhos a ordem de sucessão tradicional. Mas isso não podia ser feito enquanto permanecia em vigor a filiação segundo o direito materno. Este deveria, assim, ser abolido e foi o que se verificou”. Assim “foi estabelecida a filiação masculina e o direito hereditário paterno”.

Engels, como teórico socialista, tinha plena consciência da significação social e política das descobertas daqueles cientistas, particularmente no que dizia respeito à libertação da mulher. Para ele ficava claro que a “reversão do direito materno foi a grande derrota histórica do sexo feminino. O homem passou a governar também na casa, a mulher foi degradada, escravizada, tornou-se escrava do prazer do homem e um simples instrumento de reprodução”. A monogamia, assim, “não apareceria de modo algum, na história, como um acordo entre o homem e a mulher e muito menos como a forma mais elevada de casamento. Ao contrário, ela aparece sob a forma de escravidão de um sexo pelo outro, como a proclamação de um conflito entre os sexos até então desconhecido em toda a pré-história”.

Por isso, concluiu que “o primeiro antagonismo de classe que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia e a primeira opressão de classe coincide com a opressão do sexo feminino pelo sexo masculino. A monogamia foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo tempo, ela abre, ao lado da escravatura e da propriedade privada, a época que dura ainda hoje, onde cada passo para frente é ao mesmo tempo um relativo passo atrás, o bem-estar e o progresso de uns se realizam através da infelicidade e do recalcamento de outros”.

A monogamia teria sido “fundada sob a dominação do homem com o fim expresso de procriar filhos duma paternidade incontestável, e essa paternidade é exigida porque essas crianças devem, na qualidade de herdeiros diretos, entrar um dia na posse da fortuna paterna.” Agora “somente o homem pode romper esse laço (matrimonial)”, “o direito da infidelidade conjugal fica-lhe (…) garantido pelo menos pelos costumes”, no entanto, a mulher que deseje conquistar sua liberdade sexual será “punida mais severamente do que em qualquer outra época precedente”. Nesta forma de casamento e de família, “o que para a mulher é um crime com graves conseqüências legais e sociais, é considerado para o homem como uma honra, ou, na pior das hipóteses, como uma leve mácula que ele carrega com prazer”.

A monogamia gerava uma sociedade essencialmente hipócrita e Engels ironizou esta situação: “Os homens haviam obtido vitória sobre as mulheres, mas derrotadas se encarregaram generosamente de coroar a fronte dos vencedores. Ao lado da monogamia e do heterismo, o adultério torna-se uma instituição social fatal – proscrita, rigorosamente punida, mas impossível de ser suprimida. A certidão da paternidade repousa, antes e depois (…) na convicção moral, e, para resolver a insolúvel contradição, o código de Napoleão decreta, art. 312: ‘A criança concebida durante o casamento tem por pai o marido’. Eis aí o último resultado de três mil anos de monogamia.” Lembramos que Engels escreveu estas palavras em 1884, quando a monogamia-patriarcal reinava quase absoluta no mundo.

O primeiro passo para emancipação – e não o último – seria a incorporação da mulher no trabalho social produtivo. Para Engels (e para Marx) “a emancipação da mulher, sua igualdade de condição com o homem é e continuará impossível enquanto a mulher for excluída do trabalho social produtivo e tiver de limitar-se o trabalho privado doméstico. Para que a emancipação se torne factível é preciso, antes de tudo, que a mulher possa participar da produção em larga escala social e que o trabalho doméstico não a ocupe além de uma medida insignificante”.

O capitalismo iniciou esta revolução democrática, mas foi incapaz de concluí-la, pois a forma monogâmico-patriarcal – que está na gênese da dominação da mulher, nasceu justamente da “concentração das grandes riquezas nas mesmas mãos – as dos homens – e do desejo de transmitir essas riquezas por heranças aos filhos desses mesmos homens”. Assim, “a preponderância do homem no casamento é uma simples conseqüência da sua preponderância econômica e desaparecerá com esta”.

A superação deste estado de coisa milenar deve passar, necessariamente, por uma revolução social que transforme os meios de produção, e a riqueza produzida por eles, em propriedade social. Assim, a conclusão do processo emancipatório passa pela eliminação da propriedade privada dos meios de produção e pelo fim da exploração do homem pelo homem. Somente uma profunda revolução social, de caráter socialista, poderia limpar o terreno para que a libertação da mulher pudesse, finalmente, ser completada. Engels, em minha opinião, subestima a capacidade do capitalismo de quebrar “a preponderância econômica” do homem no interior da família. Afinal, o século 19 dava pouquíssimos sinais de que isso poderia acontecer.

E, como escrevi no último artigo, a “conquista do socialismo é uma das condições para emancipação da mulher, mas ela não é ainda suficiente. A emancipação das mulheres exige uma dura e prolongada luta de idéias no interior do Partido e da sociedade, inclusive após a revolução socialista. A emancipação, portanto, não será o resultado automático – mais ou menos natural – do processo de expropriação dos principais meios de produção das mãos da burguesia”.

Engels acreditava que, na sociedade de comunista futura, a monogamia deveria adquirir uma nova qualidade, pois se tornaria “enfim, uma realidade – mesmo para o homem”. Seria, assim, uma monogamia de novo tipo, assentada na plena igualdade e liberdade entre os sexos. Marx e Engels, ao contrário que pensam alguns, estavam longe de serem defensores da “promiscuidade sexual”.

Conclusão

A antropologia e a etnologia modernas negam que a humanidade tenha, necessariamente, passado por uma fase caracterizada pela ascendência da mulher sobre o homem. Alguns pesquisadores chegam mesmo a negar a existência de tais sociedades matriarcais.

Uma renomada marxista (e feminista) brasileira, Zuleika Alambert, também, aderiu às críticas feitas às conclusões de Morgan e Engels. Para ela o controle nas sociedades primitivas “sempre (grifo é nosso) foram exercido pelos homens”, pois a “relação entre os sexos nas sociedades primitivas era, fundamentalmente, assimétrica e não recíproca. No sistema matrilinear a autoridade pertencia ao irmão da mulher e ao tio materno, enquanto no patrilinear pertencia ao pai e ao marido.” Mas, logo em seguida, relativiza tal afirmação ao dizer: “Assim, por exemplo, nem a tese do matriarcado total (grifo nosso), nem a equivalência da descendência matriarcal com uma posição de predomínio social da mulher foram confirmadas pela pesquisa moderna”.

Por outro lado, até a segunda metade do século 20, autores soviéticos, como Diakov e Kovalev, continuavam afirmando que o “clã materno” era “uma fase inevitável da evolução da sociedade humana” e que no matriarcado “a mulher era igual ao homem na vida econômica e social”. Para eles, os que buscavam “desmentir as idéias sustentadas por Engels” visavam, exclusivamente, “provar a eternidade do papel subalterno da mulher”. Mas, contraditoriamente, seriam as teóricas do movimento feminista que mais se bateriam contra a tese do matriarcado.

Acho que nesta discussão seria bom não irmos nem tanto ao céu nem tanto a terra. Hoje já se sabe que a classificação da história das sociedades primitivas feita por Morgan é bastante imprecisa. O próprio Engels, logo na abertura de seu livro, afirmou que a classificação de Morgan “permanecerá em vigor até que uma riqueza de dados muito mais considerável nos obrigue a modificá-la”. Como previu, os novos aportes oferecidos pela etnologia, antropologia e pela história nos obrigaram a reformular os modelos de Morgan.

O principal erro desses autores revolucionários do século XIX foi o de ter conjeturado a existência do matriarcado em todas as sociedades primitivas na fase denominada barbárie. Algo que se mostrou incorreto. Os próprios autores soviéticos citados acima chegaram à conclusão de que “enquanto Morgan (…) tinha indicado só uma linha de evolução da sociedade humana, os sábios do século 20 puderam traçar as vias complexas e múltiplas do progresso do homem”.

É claro que isto não nega, como afirmam alguns autores anti-engelsianos, que em determinadas sociedades possam ter existido – e os indícios são fortes neste sentido – organizações sociais de tipo matriarcal na qual as mulheres pudessem desfrutar de um maior prestigio social e econômico do que viriam a ter nos períodos posteriores e o simples reconhecimento desta possibilidade continua ter para nós um significado revolucionário.

Bibliografia

Alambert, Zuleika, Feminismo: o ponto de vista marxista, Ed. Nobel, S.P., 1986.

Bebel, August – La mujer y el socialismo, Akal editor, Espanha, 1977

Diakov, V e Kovalev, S. – A Sociedade Primitiva, Global editora, S.P., 1982.

Engels, F – A Origem da família, da propriedade privada e do Estado, Ed. Civilização Brasileira, RJ, 1974.

Garaudy, Roger – Liberação da mulher. Liberação humana, Ed. Zahar, RJ., 1982

Lênin, V.I – Sobre a emancipação da mulher, Ed. Alfa-Omega, S.P., 1980

Marx, Engels e Lênin, Sobre a Mulher, Global editora, S.P., 1980

Saffioti, Heleieth I. B. – A mulher na sociedade de classe: Mito e realidade, Ed. Vozes, Petrópolis, 1976.