1- Na preparação para o recente lançamento do Tomo IV, do Livro 2º de O Capital (1)1, um parágrafo suscitou-me particular atenção:

“Na consideração das formas universais do circuito e, em geral, em todo este Livro segundo, tomamos [o] dinheiro como dinheiro metálico, com exclusão do dinheiro simbólico, meros signos de valor que apenas formam uma especialidade de certos Estados, e [com exclusão] do dinheiro creditício [Kreditgeld], que ainda não está desenvolvido. Em primeiro lugar, isto é o curso [Gang] histórico; [o] dinheiro creditício não desempenha nenhum papel, ou [um papel] apenas insignificante, na primeira época da produção capitalista. Em segundo lugar, a necessidade deste curso é também teoricamente demonstrada pelo facto de que tudo o que de crítico acerca da circulação do dinheiro creditício foi desenvolvido por Tooke e [por outros] os obrigou sempre de novo a regressar à consideração de como a coisa havia de ser exposta na base da circulação meramente metálica. Não se deve, porém, esquecer que o dinheiro metálico tanto pode funcionar como meio de compra como meio de pagamento. [Por razões de] simplificação, ele vale para nós, em geral, neste Livro II, apenas na primeira forma de função” (1ª secção, capítulo 4, pág. 124).

Várias vezes tenho voltado a esse parágrafo, e várias vezes ele me ocorre por diversas razões, embora todas evidentemente coincidentes ou convergentes.

Talvez a mais forte de todas seja a satisfação que dá encontrar nele uma das formulações mais claras (para leitores despidos de preconceitos, ou que os tenham minorado) em que Marx (e Engels) mostra os sempre presentes rigor e humildade. Sabe-se o que se sabe hoje, afirma-se o que hoje se pode afirmar e é suscetível de amanhã ser diferente porque a todo momento a vida flui, as situações se alteram, a história – que é a da luta de classes – e a vida são feitas de mudanças, como o cantou Camões.

2- Mas! Mas, ao mesmo tempo, tudo o que foi adquirido como compreensão dos mecanismos e seu funcionamento está adquirido. Há metodologias de universal aplicação temporal e espacial, há leis gerais – tendenciais – que são patrimônio da Humanidade ainda que, em determinados estádios da luta de classes, sofram agressões e entorses.

Ao se pretender estudar as “situações de crise”, ou as explosões da crise imanente e larvar própria do sistema de relações sociais, é indispensável conhecer o processo de circulação de capital, as suas dinâmicas e circuitos essenciais, e isso encontra-se nesse Tomo IV do Livro 2º, depois de, no Livro 1º, ter sido escalpelizado o processo de produção do capital.

E, na nossa contemporaneidade, começa a ser reconhecido, independentemente de posições ideológicas de base ou partida, ser imprescindível estudar Marx (e Engels, e Lênin) para se compreender o modo de produção em que se vive, e a formação social em que (con)vivemos.

Apesar de a obra de Marx – ou por isso mesmo – nunca se apresentar como acabada, dogmática, afirmando agora é assim!, a prever que, no futuro – e quando –, vai ser assim.

O parágrafo de O Capital citado acima ilustra exemplarmente esta “leitura”.

Era então predominantemente metálico o dinheiro, isto é, tinha uma base material e servia como meio de compra e de meio de pagamento de coisas reais. E Marx sublinha que nesse seu Livro 2º (aliás, “arrumado” por Engels), a sua análise do processo de circulação do capital, nas suas formas de capital-mercadoria, de capital produtivo, de capital-dinheiro, esta forma apenas vale na sua função de meio de compra. E é exaustivo na análise do processo, nas metamorfoses do capital, com os circuitos de metamorfoseação a partir quer do capital-dinheiro, na sua função de meio de compra, quer de capital-mercadoria, quer de capital produtivo.

Não importa, aqui, determo-nos no estudo desses circuitos em que Marx disseca o processo de circulação do capital, mas insistimos em duas considerações:

i. A dinâmica detectada no estudo aprofundado desse processo e seus circuitos aponta a crise como inerente ao funcionamento com base nas relações sociais prevalecentes;

ii. para essa conclusão ainda não contribui a análise do papel que o “dinheiro simbólico” e o “dinheiro creditício” possam vir a ter, numa comprovação de que o marxismo, desde as suas origens, nada tem de profético, mas sim de exaustivo sistematizador de conhecimentos, de análise científica da realidade, de cautelosa, mas firme!, denúncia das condições concretas da vida social e de dinâmicas e leis tendenciais.

3- Desde o Manifesto, é firme a convicção, para os marxistas, de que o capitalismo criou a classe que tem a missão histórica de o superar, como modo de produção e formação social. E, depois, de que o seu funcionamento gera contradições que, sempre agravadas, fazem a Humanidade passar por períodos de explosão da crise latente, em que a situação econômica e social dos trabalhadores, das populações se deteriora enormemente. Por vezes em termos absolutos, sempre na sonegação do benefício de conquistas, a que os trabalhadores, as populações teriam direito porque deles, do seu labor, resultaram essas conquistas, de que a classe dominante se apossa, em todas as oportunidades centralizando e concentrando riqueza, no sentido lato.

Atravessamos uma dessas fases críticas da História. É “a crise”, diz-se. Como foi “a crise” há 80 anos e, antes, como foi “a crise do dólar e do petróleo” e a “segunda crise do petróleo” na década de 70 do século XX, como foram as crises nos últimos anos desse século, quando tudo parecia um “mar de rosas” para o capitalismo, alcançado o objetivo de derrubar o socialismo emergente desde 1917, enquanto Estado e sistema, seguindo-se a cavalgada de outras emergências controladas pelo modo de produção e formação social, em imperialismo com o nome de globalização, mas que, agora, não parecem conseguir controlar e, em desespero, fazem perigar a própria Humanidade.

O Livro 2º de O Capital, ao tratar precisamente do processo de circulação do capital, numa análise minuciosa e rigorosa que bem define as metamorfoses do capital no seu circuito (e continua pelo estudo da rotação do capital, nos seus tempo e número de rotações), oferece-nos trechos como este:

“Resulta o seguinte: através deste ciclo, que abrange uma série de anos, de rotações conexas em que o capital é exilado pela sua parte componente fixa, resulta uma base material das crises periódicas em que o negócio percorre, uns após outros, [os] períodos do afrouxamento, vitalidade mediana, precipitação, crise. Entretanto, a crise forma sempre o ponto de partida de uma nova grande aplicação: portanto, também – considerada toda a sociedade – [forma], mais ou menos, uma base material nova para o próximo ciclo de rotação” (pág. 200).

Em muitas outras páginas se encontram pistas ou “pontas” para o que, contemporaneamente, mais exige atenção, recusando-se abordagens simplistas e manobras de criação de artificiais confianças e otimismos, e de hipócrita partilha de dificuldades com falaciosas campanhas de que “estamos todos no mesmo barco” (os que viajam em camarotes de luxo e os que se amontoam no porão…).

Só para exemplo, à página 86 pode ler-se: “O processo todo segue o seu curso, e com ele também o consumo individual, assim condicionado, do capitalista e do operário. Um ponto importante para a consideração das crises” e, na passagem para a página 87, “Esta venda absolutamente nada tem a ver com o estado real da procura. Apenas tem a ver com a procura de pagamento (sublinhado), com a necessidade absoluta de transformar mercadoria em dinheiro. Rebenta então a crise”.

4- Ao rebentar a crise, ou ao ter a crise as suas explosões, não se repetem situações porque as condições que levaram aos rebentamentos da crise – antes, agora e depois – não são as mesmas. Pelo que as comparações são estultas quando procuram ver em cada explosão uma repetição de história anterior, sempre com uma referência particular à “crise de 1929”, e não apenas e muito importante o eclodir, nas circunstâncias do momento, do que resulta do funcionamento do capitalismo, do processo de circulação do capital, para sua acumulação.

Em que forma? Esta é uma questão que, hoje, deveria conduzir à reflexão para a consideração do papel determinante desempenhado pelo “dinheiro simbólico”, não especialidade de alguns Estados, mas internacionalizado e, depois, globalizado particularmente após 1971 à decisão da inconvertibilidade do dólar e do “dinheiro creditício”, que de papel insignificante passou a ter papel muito relevante, sobretudo a partir da transformação material das comunicações e da política de crédito fácil para compensar custos salariais moderados ou comprimidos contraditoriamente com as “novidades” e os “apetites” consumistas.

Longe temporalmente (relativamente) da “primeira época da produção capitalista”, já não parece poder haver regresso à consideração da “base da circulação meramente metálica”. Marx decerto não o faria, como o fez – e bem – durante o terceiro quartel do século XIX.

Outro circuito passou a existir, com importância determinante na apropriação da “riqueza das nações”: o da metamorfoseação de capital-dinheiro em capital-dinheiro (D em D’) sem passagem por capital-mercadoria e capital produtivo. Ao que, evidentemente, não é estranha a evolução tendencial da composição orgânica do capital e da lei tendencial da baixa da taxa de lucro, sendo este o epifenômeno da mais-valia.

5- Em que situação estamos, no final da primeira década do século XXI?

Esta explosão da crise estava há muito anunciada, dados os sinais que iam confirmando as dinâmicas do processo de circulação do capital, e a verdadeira demência da criação de “dinheiro simbólico” e de “dinheiro creditício”, como formas de acumular capital-dinheiro dada a escassez ou míngua de mais-valia criada na fase de capital produtivo, assim transferindo riqueza (“das nações”) criada pelo trabalho vivo e pelo trabalho cristalizado. Por exemplo, em Portugal, o Partido Comunista preparou com todo cuidado e mobilização uma Conferência Nacional sobre questões econômicas e sociais que se realizou em novembro de 2007, antecipando em muitos meses a “surpresa” da eclosão do “subprime” nos Estados Unidos.

A “crise” começou nos Estados Unidos, na área dos empréstimos bancários imobiliários e enquanto ia alastrando, ia sendo sempre considerada como uma situação localizada e controlada enquanto todos os sinais de alastramento, contaminação e descaminho mostravam o contrário. A passagem por etapas com designações técnicas e estatistificadas, correspondentes ao que Marx chamou de “afrouxamento, vitalidade mediana, precipitação, crise”, foi sendo percorrida negando sucessivamente as declarações oficiais, que a si próprias se iam contradizendo.

Instalada “a crise”, tomaram-se medidas, sobretudo de injeção de mais “dinheiro simbólico” e de “dinheiro creditício” (utilizando a terminologia que vimos aproveitando), por parte dos Estados e de organizações internacionais que terão, aparentemente, sustido o processo e evitado males maiores. Encontraram-se alguns “culpados”, vulgo “bodes expiatórios”, que teriam sido “excessivos” e “imprudentes” ou “irresponsáveis”, mas que nada mais fizeram que… ter sido excessivos e imprudentes aos comandos das alavancas do funcionamento do processo de circulação do capital e não desrespeitadores das regras e métodos dos circuitos dessa circulação.

Diz-se que essa explosão de crise teria “batido no fundo”, devendo apenas esperar-se pela próxima, nas condições que, entretanto, se forem criando na continuidade do sistema e do seu funcionamento essencial?

6- A grande batalha comunicacional – e a comunicação social, dominada pelos grandes grupos financeiros transnacionais, tem papel cada vez mais importante, até porque os meios técnicos, a economia real, vieram-lhe facultar impressionante penetração e a tornaram peça fulcral na batalha ideológica da luta de classes – é a da recuperação da confiança.

Recuperação da confiança em que, por quem? Nos investidores para continuarem o seu jogo, a sua “economia de cassino”? Arriscando, sabendo-se que só alguns ganharão em detrimento de todos, concentrando e centralizando capital-dinheiro, forma veicular para a concentração e centralização da “riqueza das nações”, a economia real, de que se passou a falar, embora efemeramente.

E não falta a apresentação de sinais dessa recuperação. E as seguintes afirmações. Se qualquer indicador econômico, nenhum neutro e todos de duvidosa objetividade, revela que houve desaceleração na queda há que dizer que começou a recuperação e não que a queda continua; se uma discutível regra qualificativa da evolução conjuntural (três trimestres de números negativos, por exemplo) logo apregoar a inversão para a subida, se a variação em relação ao período anterior é menos negativo ou até ligeiramente positiva logo se faz manchete esquecendo que a variação em relação a período homólogo pode continuar a ser de forte descida.

Esta verdadeira manipulação da informação, mormente da especializada, tem de ser denunciada. A “crise” continua neste final de 2009 por mais que enrolada em papéis coloridos. E não se resolve com otimismos, mas com medidas de ruptura em relação ao funcionamento da economia.

7- Por outro lado, ou na outra face da moeda em que se quer cunhar o otimismo desligado da agora tão (mal) falada economia real, o que não se apresenta como otimismo ou pessimismo, mas como uma fatalidade: o desemprego, a precarização dos vínculos e da prestação de trabalho.

A acompanhar o otimismo balofo, porque não consistente, na economia fiduciária, o anúncio da inevitabilidade do agravamento do desemprego, a necessidade de fazer da força de trabalho uma mercadoria igual às outras, sendo a única propriedade dos trabalhadores, ao mesmo tempo que se lhes acena com a mirífica entrada no que já se chamou “capitalismo popular”, pela porta estreita e que dá para o “buraco negro” (salvo para raríssimos felizes e/ou ausentes de todos os escrúpulos) da “economia de cassino”.

Também, nessa outra face da moeda, o mal disfarçado esforço de controle dos ditos países emergentes que querem na verdade, e de verdade, emergir como países independentes com os destinos nas mãos dos seus povos, sem o fazerem a prazo e imersos numa globalização especulativo-financeira sob tutela imperialista.

8- “(…) sempre que um homem sonha/ o mundo pula e avança/ como bola colorida/ entre as mãos de uma criança”, de António Gedeão cantado por Manuel Freire. Que o mundo pula e avança é indesmentível, mas é urgente que os seres humanos sonhem, e lutem, para que pule e avance não para o abismo, mas para um mundo humano.

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Sérgio Ribeiro é economista, membro do Comité Central do Partido Comunista Português

Publicado originalmente na revista Princípios