A crise em curso, a Europa, a Itália
Como é patente, a crise em curso explodiu (nos Estados Unidos) como crise financeira e imediatamente transformou-se em crise do processo de acumulação do capital, isto é, atingiu a economia produtiva de valor. Como é patente, ainda, ela teve, e tem, efeitos diferenciados sobre várias partes do mundo. Esquematicamente, pode-se dizer que os seus efeitos mais graves definem – em formas obviamente muito diferentes –, de um lado, as partes economicamente mais desenvolvidas do planeta e, de outro, as menos desenvolvidas: as ainda vítimas da exploração capitalista e do imperialismo, além de seus centros fundamentais. Entre estes, a Europa, ou melhor, a Europa centro-ocidental e, nesta, a União Europeia.
Nesta parte do mundo, além disso, os efeitos da crise resultam muito diferentes. Em geral, as economias europeias ocidentais mais significativas estavam muito menos empenhadas do que as dos EUA, sob a vertente das várias formas agonísticas da especulação financeira; a relação, na Europa, entre bancos e outras instituições do capital-dinheiro, de um lado, e, de outro, a economia produtiva (ainda que esta resulte altamente financiarizada na forma de holding polissetorial empenhada também diretamente em atividades especulativas) é de tipo mais tradicional em relação à dos Estados Unidos. Além disso, na Europa ocidental o montante do PIB concernente às atividades financeiras – relativas àquela concernente às atividades produtivas – é inferior em relação ao dos EUA.
Há um única exceção significativa: a Grã-Bretanha. A composição da sua economia é a que na Europa ocidental mais se aproxima da dos EUA. No entanto, muitos bancos europeus foram categoricamente expostos aos riscos da especulação, ao participarem da aquisição de vários tipos de títulos tóxicos produzidos nos Estados Unidos, e, entre eles, até mesmo dos bancos centrais. O que quer que tenha acontecido para isso vários países europeus sentiram de forma diferente a explosão da especulação financeira estadunidense. Assim se vai da situação da Islândia – ativada pela bancarrota de toda a sua economia – à da Itália – muito pouco exposta a riscos desse tipo.
Enfim, dois países importantes foram os mais penalizados pela crise financeira. Primeiro, a Grã-Bretanha, pois sua finança capitalista estava amplamente comprometida em atividades especulativas estadunidenses. E, depois, a Espanha, cuja notável expansão econômica de anos recentes baseava-se na expansão da produção imobiliária e na concessão “fácil” de empréstimos às famílias para adquirir uma casa. Já com relação à recessão produtiva, um raciocínio diferente a sustenta: ocorreu bastante uniforme e bem ampla. Não se trata de cifras relativas à queda produtiva como as da crise de 1929, mas de cifras em torno de 5% que, em outros casos, a superam em muito. Também a queda do emprego, da mesma forma relevante, está longe de ser como a de 1929. No entanto, existe. Em um ano o número de desempregados aumentou na União Europeia, para além de 5 milhões, e hoje dispara para 10% no complexo das forças de trabalho. Ao mesmo tempo, não se pode ver sinais indicativos de capacidade de retomada econômica em curto prazo. Ao contrário, as tendências indicam a perspectiva de uma prolongada depressão.
No entanto, lembremos também o caráter extremamente prudente e aproximativo das previsões dos economistas: se é verdade que esta crise lembra a de 1929, ela ocorre em condições diferentes. Além disso nela quase todos os grandes países capitalistas – e ainda os pequeninos – lançaram rios de dinheiro para evitar a queda tanto a produtivas quanto a de muitos bancos. Conforme ensinam os manuais, essas políticas são muito eficazes em deter uma queda; no entanto, tendem a prolongar a depressão e a tornar lenta a retomada. Veremos.
Talvez a argumentação mais importante seja em relação às efetivas capacidades gerais de que dispõe a Europa e, nesta – por serem mais precisas –, as da União Europeia para sair da crise, mantendo seu poder econômico em relação ao dos EUA e ao dos países “emergentes”, ou re-emergentes, como Brasil, China, México, Indonésia, Rússia. Aqui a argumentação analítica deve sair do exame dos dados puramente econômicos para chegar ao que sustenta as políticas econômicas e a força política dos governantes. A União Europeia caracterizou-se, até a crise em curso – mais ou menos por duas décadas – por um ritmo moderador de seu crescimento econômico (em relação aos EUA, sem falar de China, Índia ou Brasil). As razões disso são fundamentalmente duas. Primeira: a orientação geral da política econômica, definida nos próprios principais Tratados da União Europeia, de tipo liberal-monetarista. Segunda: a inexistência de um executivo europeu dotado de competências institucionais e de poder geral necessários para impedir que os vários países-membros se orientem individualmente, fazendo assim que de um enorme esforço de conjunto se aproveite muito pouco em termos de resultados gerais.
Parece-me que a União Europeia (sobre o monetarismo que informa as suas políticas de balanço e as de seus Estados-membros) é a única parte do mundo que se impõe – por sua livre escolha – as políticas de “reajustamenteo estrutural” impostas pelo Fundo Monetário Internacional e outras instituições análogas aos países da periferia capitalista – por parte dos países imperialistas –, massacrando assim populações e economias. A potência econômica e a riqueza acumulada da Europa ocidental demandaram efeitos menos dramáticos, porém significativos. Portanto, de um lado, tivemos gigantescos processos de desvio de renda de baixo para cima na escala social e, em seguida, gigantescos fenômenos de empobrecimento das classes subalternas. De outro – pelo fato de o Estado não contribuir, dadas suas políticas restritivas de balanço, para produzir, em qualquer forma que seja, demanda agregada –, tivemos exatamente um aumento moderado, continuamente enfraquecido pelos abrandamentos e as cadeias produtivas.
Em segundo lugar, a União Europeia não dispõe nem dos instrumentos de gestão política necessários à definição e à imposição a todos os seus membros de orientações padrões para anular as políticas restritivas de balanço nem, por exemplo, de política industrial, de política fiscal, de tratamento salarial das forças de trabalho, de sistema de welfare state etc. A União Europeia dispõe certamente de uma enorme força econômica e também de uma extensão territorial e demográfica proporcionais às dos EUA e dos principais países “emergentes”. No entanto, não dispõe da força política de seus executivos estatais, por não ser um Estado e pelo fato de seus países membros – a partir dos três principais, Alemanha, França e Grã-Bretanha – defenderem ferozmente os elementos de seus interesses nacionais. Enfim, isso comprova – da pior maneira – o fato de não haver nas principais estruturas de comando econômico da União Europeia (Comissão, Banco Central) nenhuma intenção de corrigir a rota liberal-monetarista.
Já mencionei a piora das condições de vida, em curso há duas décadas, das maiorias sociais europeias. Conforme especifiquei, foram usadas como instrumento políticas restritivas de balanço. Mencionei ainda quem nos venceu: a grande burguesia, e parte das classes médias.
Ao longo do tempo, isso configurou o declínio da credibilidade social – no início altíssima – do liberalismo monetarista; como consequência, há credibilidade social das tendências políticas europeias adotadas imediatamente por essa orientação – e repentinamente abandonadas – sob pressão da reação reaganiana nos EUA e dos mass media, precedentes políticos mais ou menos keynesianos. Quer dizer, dos partidos, democratas e conservadores, de centro-direita e das social-democracias. Estes foram os autores dos Tratados constitucionais – e os mais determinados sobre as posições em questão.
No entanto, a recente queda de credibilidade social do liberalismo encontrou diferentes reações por parte de duas tendências políticas: a centro-direita tendeu a passar a um hibridismo de posições liberais e populistas, mantendo o máximo de liberalismo possível, mas ao mesmo tempo fazendo concessões conflitantes às reivindicações populares e produzindo bodes expiatórios para o mal-estar social; esta última atitude devido ao aumento de posições xenófobas e racistas. As social-democracias, ao contrário, permaneceram na defensiva, elaborando assim a sua intenção de resistir à xenofobia e ao racismo, conforme as precedentes posições liberais.
Não há condições de se compreender como o mal-estar das classes subalternas europeias, quase em toda parte, em nenhum momento tenda a punir eleitoralmente as social-democracias – e muito menos a centro-direita – e a premiar, amiúde, os partidos da extrema-esquerda populista, frequentemente fascistas ou semifascistas, se se evita observar o desastre cultural determinado, agora, pela histórica disposição liberal das social-democracias.
Quase todos os dados eleitorais indicam essas tendências, ao menos da parte mais ocidental da União Europeia: a queda agora acentuada do consenso em relação às social-democracias (mesmo quando elas mantêm as posições do governo, isoladas ou em coalizão); o ligeiro enfraquecimento dos partidos de centro-direita; o crescimento da extrema-esquerda; o aumento das abstenções, sobretudo por parte das classes subalternas, e não entre seus componentes mais pobres e excluídos.
Uma exposição à parte, mais complicada, trata da situação das esquerdas anticapitalistas.
As esquerdas anticapitalistas, por um lado, acertam em manter suas posições (onde, recompondo-se unitariamente, como na Alemanha, esforçam-se por sua credibilidade junto às classes subalternas e aos jovens, também como forças de governo em potencial) ou em se expandirem, com a condição de não parecerem intencionadas em participar de governos com as social-democracias liberais. Por outro, onde as esquerdas anticapitalistas foram contempladas – em anos mais ou menos recentes – para políticas de participação ou de apoio parlamentar por governos liberais centrais, das social-democracias ou de outras forças de centro-esquerda (como em França, Itália, Espanha, Suécia), elas pagam um elevado preço eleitoral. Por outro lado, ainda, onde muitas vezes – como na Itália – elas estão desunidas, em geral por desacordos em relação à mudança para a social-democracia liberal – atualmente o Partido Democrático – correm o risco de um colapso definitivo.
Desse modo, pode-se – observando alguns países da única parte mais ocidental da União Europeia – descrever a situação das esquerdas anticapitalistas. Em Portugal elas estão em ponderada expansão, e provavelmente angustiadas pelas dificuldades nas relações entre seus componentes, o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda. Na Espanha, a Esquerda Unida mantém-se em condições de extrema fraqueza. Na França, o Partido Comunista, aliado a um grupo de esquerda socialista, recuperou recentemete alguma coisa; no entanto, a esquerda francesa está angustiada pela histórica divisão entre comunistas e trotsquistas. Estes últimos obtêm resultados eleitorais que, com o tempo, continuam a variar, enquanto tendência de força, eminentemente de opinião, dirigida por um pequeno núcleo militante. A Itália tem a pior situação: sua esquerda anticapitalista segue agora excluída da representação parlamentar tanto nacional quanto da europeia. Na Refundação Comunista ocorreu uma ruptura de uma parte que pretendia continuar apoiando o Partido Democrático; apoio que se revelou falho no último governo Prodi. Além disso, já havia ocorrido uma ruptura, pela mesma razão, que levou à formação do Partido dos Comunistas Italianos: por efeito geral, tanto da experiência falha de governo quanto das rupturas, ocorreu um naufrágio eleitoral nas eleições nacionais e nas europeias. Na Grécia ocorre um ligeiro enfraquecimento de seus dois partidos de esquerda, o Partido Comunista e o Syriza. A Alemanha registra, ao contrário, um forte avanço da Linke (Esquerda), partido resultante da unificação da esquerda social-democrata e dos pós-comunistas do Partido do Socialismo Democrático.
E, ainda, a Itália é o país em que mais fortemente aparece a conquista social da direita. E daí mais evidentes e perigosas são a propensão racista e a postura de liberdade semifascista da democracia parlamentar – e, nesta, da divisão entre os poderes do Estado em nome de privilégios do executivo. Para reagir a esse estado de coisas, e ao próprio declínio, a Refundação Comunista e o Partido dos Comunistas Italianos recentemente encaminharam juntos um processo – ao qual se juntaram um grupo da esquerda socialista, a esquerda da Confederação Geral Italiana do Trabalho (maior sindicato italiano), vários grupos e associações da esquerda ambientalista, ou de outra natureza. O Partido Democrático, nestes dias, termina o seu congresso, bastante angustiado, pois também poderia ocorrer a uma ruptura.
Pode-se, então, acrescentar que, de um lado, nas social-democracias europeias, os sinais de uma reflexão estratégica estão extremamente fracos, ou inexistem. De outro, não parece fácil nenhuma reflexão que as desloque para a esquerda, dado que também se constituiu maioria dentro de partidos social-democratas orientados nesse sentido. Conforme indica a análise das perdas eleitorais, nas mais recentes eleições políticas, da social-democracia alemã, 1.400 milhão de seus eleitores mudaram para a Linke; 1 milhão aos dois partidos democratas cristãos; 700 mil aos verdes (que na Alemanha são um partido liberal-democrata com resíduos ambientalistas). Além disso, segundo constata recente sondagem sobre as atitudes do eleitorado social-democrata alemão, uma parte dele desejaria o deslocamento à esquerda de seu partido e uma aliança com a Linke; e, como essa aliança é rejeitada pela maioria, a outra parte, ao contrário, desejaria um deslocamentgo mais moderado e uma aliança com os democratas cristãos e os liberais. Hoje, é mais ou menos essa a situação da social-democracia europeia. O PD italiano, ao contrário, se caracteriza por uma dialética interna totalmente em posição mais ou menos liberal; e provavelmente o seu eleitorado seja diferenciado.
Por último – enquanto é fácil prever como se desenvolverão nos próximos períodos as atividades políticas em quase todos os países mais ocidentais da União Europeia – difícil é tentar prever o andamento das coisas na Itália. A ofensiva incessante do chefe de governo da direita, Silvio Berlusconi, contra os juízes que questionam seus inúmeros crimes econômicos – por ele cometidos na aquisição e ampliação de seu império midiático contra o presidente da República, em geral contra os arranjos democrático-parlamentares do Estado – inquieta sempre mais o establishment capitalista italiano, em cujo topo se encontram as grandes famílias industriais, a partir da que controla a Fiat, e as grandes instituições bancárias.
Outras forças – também no interior da direita política e do Vaticano – forçam desde já por uma alteração soft na sede do governo, isto é, para a continuação do governo de direita, mas com outro presidente do conselho, e além disso organizam um movimento de condescendência ao centro democrata cristão contrário ao governo e ao PD. A preocupação do establishment capitalista é que a situação italiana possa se expandir para uma situação de anarquia institucional e que isso favoreça a retomada de amplas mobilizações de classe – iniciadas parcialmente há tempos – devido ao desemprego na indústria que, pelas previsões, está em ampla expansão. Além disso, seria um grave dano ao establishment qualquer forma de crise nas relações entre a Itália e a União Europeia, justamente, por exemplo, por uma revirada antidemocrática.
E ainda o establishment teme que a direita do governo, mais antidemocrática, possa intensificar suas posições populistas e, com a intenção de uma mobilização popular em defesa de Berlusconi, elabore alguma medida social em prejuízo dos interesses capitalistas. Dessa intenção já se veem os primeiros sinais. Naturalmente, no final tudo poderia terminar com um tipo qualquer de compromisso, mas poderia também detoná-la.
A recuperação de credibilidade, e do consenso, por parte da esquerda anticapitalista italiana deve, pois, não simplesmente basear-se em sua capacidade de recuperação (em andamento) de relacionamento com as mobilizações sociais, para fornecer-lhes o suporte organizativo e material necessário. Mas também em sua capacidade de enfrentar uma crise democrática que ameaça piorar, indicando saídas concretas, também baseadas em amplas coalizões ao mesmo tempo capazes de evitar – beneficiando essencialmente o PD – o relançamento daquelas políticas liberais antissociais, que viram a falência dos governos Prodi e as vitórias eleitorais cada vez mais expressivas de Berlusconi. Desse ponto de vista, a questão é a de uma “estratégica” de curto prazo na qual sejam concreta e visivelmente estabelecidos objetivos sociais e democráticos.
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Luigi Vinci é membro da direção nacional do Partido da Refundação Comunista
Tradução de José Luiz Del Roio, e revisão técnica de Maria Lucilia Ruy.
Publicado originalmente na revista Princípios