A crise mundial e o neodesenvolvimentismo no Brasil
O Brasil estava mais preparado para resistir à crise econômica global! O país foi um dos últimos a entrar em crise e um dos primeiros a sair das dificuldades! Tais sentenças motivam a necessidade de estudo sobre sua verificação empírica, confirmação, realismo. É preciso esclarecer as razões e as particularidades do desempenho da economia brasileira em meio à crise. Contudo, o exame das formas e dos efeitos dos impactos da crise mundial sobre a economia do Brasil defronta-se com um fenômeno ainda em curso. Essas repercussões da crise ainda estão em processo. Falta, à esta altura, tanto a conclusão desse movimento de crise quanto o distanciamento histórico para uma avaliação mais cabal. Ademais, é fundamental articular a atual crise e o desenvolvimento nacional. Avaliar a articulação de problemas imediatos da crise com a perspectiva de longo prazo do Brasil é tarefa ainda mais complexa. Dados os seus objetivos (relativos à resposta brasileira à crise no quadro do debate de um projeto de desenvolvimento), o presente artigo tem, evidentemente, caráter parcial e preliminar.
A atual crise mundial tem sido caracterizada como a mais grave crise capitalista desde os anos 1930. Essa magnitude da crise é confirmada, considerando-se o tamanho e a globalização da economia no mundo hoje, o poder dos mercados financeiros, o volume sem precedentes dos recursos das intervenções estatais, a estatização de bancos e empresas, o impacto sobre a hegemonia americana e o papel do dólar, a contestação ao neoliberalismo e a constatação da importância dos chamados países emergentes, sobretudo a China. É da compreensão elementar, primária, que a economia capitalista não se extingue espontaneamente pelas manifestações das suas contradições em suas inevitáveis e recorrentes crises. Entretanto, essa crise mundial pode ajudar a reabrir o debate sobre projetos políticos alternativos, especialmente há apenas duas décadas do colapso do campo do socialismo soviético, especialmente no contexto da tentativa de dominação unipolar dos Estados Unidos. As condições para a discussão de um novo projeto nacional de desenvolvimento no Brasil são beneficiadas, agora, pela exposição das fragilidades da arrogância das certezas neoliberais, profundamente antinacionais, e antissociais.
Esperado ciclo: crise e recuperação lenta
Um ano após o agravamento da crise, com a quebra do Lehman Brothers em setembro de 2008, já aparecem os sinais do começo da recuperação da economia mundial. Destaque-se que o preço do petróleo chegou a 45 dólares em dezembro de 2008, mas já alcança 70 dólares em outubro deste ano, ainda longe da cotação de 140 dólares de junho de 2008. As commodities estão em alta. O índice Dow Jones da Bolsa de Nova Iorque desceu a 7.500 pontos em março deste ano, mas em outubro já registrou 10 mil pontos, ainda distante dos 13.408 de junho de 2007. França, Alemanha e Japão começam, lentamente, a aumentar a atividade econômica. Prevê-se que a China terá crescimento de 8% a 9%. Todavia, haverá, no longo prazo, desdobramentos conflituosos globais, a partir da atual crise, sobretudo nas esferas comercial, monetária e financeira. Os desequilíbrios no comércio mundial, sobretudo com os déficits externos gigantescos dos Estados Unidos, alimentam a instabilidade cambial e monetária. Aumentam as pressões norte-americanas pela valorização do yuan chinês perante o dólar.
A economia dos Estados Unidos, concentrando ¼ do produto mundial, entrou em recessão no último trimestre de 2007 e sua recuperação em 2010 marcará um ciclo de baixo dinamismo. Nesse país, mais de seis milhões de postos de trabalho foram fechados e a tendência é sua taxa de desemprego ultrapassar os 10%. Seriam necessários muitos anos de crescimento elevado para recuperar os empregos perdidos. No mundo, o vigor do crescimento econômico passou a depender majoritariamente do desempenho de alguns países emergentes, sobretudo de China e Índia.
O sistema monetário internacional, objeto da especulação cambial, torna-se ainda mais instável com as novas pressões de desvalorização do dólar, deflagradas agora pelo grande aumento da dívida pública norte-americana no curso do resgate dos bancos e empresas na crise. O noticiário informa sobre as articulações da China, além de Rússia e França, com os países produtores de petróleo a fim de substituir o dólar por uma cesta de moedas. Isso se associa tanto ao fato de a China ser o segundo maior demandante de energia e conflitar com as necessidades de suprimento de petróleo dos Estados Unidos, quanto ao desejo dos produtores, inclusive do Golfo Pérsico, de protegerem-se de uma moeda sujeita a ondas de desvalorização.
Por sua vez, o sistema financeiro internacional tem sido objeto de meras proclamações retóricas do G-20 sobre a necessidade de sua reforma e regulamentação. Mantêm-se como vozes isoladas, sem repercussão nos círculos governamentais principais as propostas de tributação sobre os fluxos financeiros internacionais. Apenas momentaneamente refreados pelo contexto da sua crise, os mecanismos e as formas mais agressivas de securitização, alavancagem e especulação nos mercados financeiros internacionais tendem, sem vedações legais explícitas, a retomar seu curso no processo de financeirização. Não obstante os trilhões de dólares de ajuda, os bancos, sobretudo dos Estados Unidos, demandarão algum tempo tanto para limpar seus balanços dos ativos tóxicos quanto para elevar sua capitalização. Do ponto de vista das instituições multilaterais, mantêm-se, sem respostas cabais e definitivas, as tímidas reivindicações de aumento das cotas de voto no sistema de decisões do FMI e Banco Mundial.
O Brasil na crise
O Brasil, como parte integrante do sistema capitalista, sofreu os impactos da crise, negando, pois, validade à tese do descolamento das economias emergentes em face das grandes dificuldades nos países desenvolvidos. O crédito, o comércio e as expectativas foram canais de transmissão da crise para a economia brasileira. Evidentemente, o elevado volume de reservas internacionais foi uma defesa importante do país, mas a ausência de controles sobre os fluxos de capitais, com uma inserção financeira liberalizada nos mercados internacionais, favoreceu o choque da violenta queda econômica no final de 2008; a fuga de capitais (inclusive aceleração de remessas de lucros e dividendos para as matrizes das empresas e bancos estrangeiros); desvalorização do real; e deflagração de um processo de piora na balança comercial e nas transações correntes no Balanço de Pagamentos.
O ciclo de crescimento econômico iniciado em 2004 foi interrompido pela crise global. Em dezembro de 2008, a produção industrial diminuiu 12,4% em comparação com o mês anterior, e 14% na comparação com dezembro de 2007, registrando um recorde histórico de queda, segundo o IBGE. Estima-se que a produção industrial sofrerá queda de 7,55%, em 2009, e crescerá 6,15% no próximo ano (1).
No período de janeiro a outubro de 2008, registrou-se o saldo acumulado recorde de 2,1 milhões empregos criados com carteira assinada. Mas, de novembro de 2008 a janeiro de 2009, houve resultado líquido negativo entre admissões e demissões. O desemprego no Brasil, por conta da crise, atingiu mais os setores profissionais que vinham obtendo maiores ganhos e também, geograficamente, repercutiu mais no interior em vez de nas capitais. Antes da crise já havia um movimento de contratação de trabalhadores relativamente mais jovens, com menores níveis de renda e com maior escolaridade. A crise reforçou esse movimento, conforme o IPEA (2). Por um lado, chama a atenção o fato de que o Brasil até setembro de 2008 – antes do impacto da crise mundial, com crescimento econômico acima de 6% – a taxa de desemprego ainda se mantivesse no elevado patamar de 7,9%. Por outro, também desperta a atenção no mercado de trabalho o fato de em 2009, no acumulado até agosto, ter havido expansão da massa salarial real de 4,6%. Entre novembro de 2008 e janeiro deste ano, o país perdeu 800 mil postos de trabalho formal. Contudo, em setembro deste ano, pelo oitavo mês consecutivo de aumento do emprego, o país registrou o saldo líquido acumulado de 932.651 novos empregos formais, recuperando as vagas perdidas. Comparativamente, a criação de empregos formais em 2009 será inferior à de 2008, com geração de 1,45 milhão, e à de 2007, que teve o recorde de 1,61 milhão de novos postos de trabalho com carteira assinada.
O governo, a partir de setembro de 2008, adotou um conjunto de medidas fiscais, creditícias e monetárias em resposta à crise. Podem ser citadas algumas dessas políticas anticíclicas, como a importantíssima redução da meta do superávit primário. O Banco Central reduziu os recolhimentos compulsórios sobre os depósitos bancários, aumentou as operações de redesconto e elevou a venda de dólares. Efetivaram-se financiamentos para as exportações. Incentivou-se a compra de carteiras de bancos menores em dificuldades por bancos maiores e autorização para o Banco do Brasil e a Caixa Econômica adquirirem outras instituições bancárias. Promoveu-se a capitalização do BNDES. Foi reduzido o IPI para os setores de automóveis, materiais de construção civil e alguns eletrodomésticos. Manteve-se a política de aumento real do salário-mínimo. Ampliou-se o valor do Bolsa Família. O seguro desemprego foi estendido por mais tempo.
Contudo, em setembro de 2009, o Banco Central aumentou a taxa básica de juros de 13% para 13,75% ao ano, alegando, em ata divulgada, pressões inflacionárias na economia, com percepção nula da crise mundial. Em dezembro, o Banco Central extrapolou todos os limites da racionalidade e manteve a taxa básica de juros em 13,75% ao ano, lançando combustível na fogueira das dificuldades e expectativas na economia brasileira em face dos impactos da crise.
Produção e comércio exterior
Os setores mais atingidos pela crise, desde o final de 2008 até meados de 2009, na economia brasileira foram a indústria e as exportações, com o agravante da queda estimada em 11% dos investimentos fixos (FBCF) em relação ao ano passado. No último ciclo de crescimento houve, sobretudo em 2004 e 2005, importante impulso decorrente do aumento das exportações, principalmente de commodities. Desde 2006, o mercado interno mostrou-se em expressiva expansão.
Para o Brasil superar o subdesenvolvimento, avançando nas dimensões do bem-estar social, da ciência e tecnologia e da questão ambiental, é preciso, entre outros elementos, da conquista de um regime de alto crescimento econômico. Para a instauração desse regime, é indispensável transpor essa imensa e persistente barreira da formação de capital para atingir um patamar mínimo sustentado de 25% do PIB como taxa de investimento. Este é o fator crucial para o salto de qualidade da economia brasileira na atualidade.
A própria semiestagnação do Brasil, com 0,33% de taxa média de crescimento do PIB per capita entre 1981 e 2003-2004, vinculou-se à sofrível taxa média de investimento de 16,17% do PIB (3). Para reconhecer a complexidade desse problema, considere-se que, dentre 152 países, no período de 1981 a 2003-2004, apenas oito países, dentre eles China, Coreia do Sul, Finlândia, Japão Singapura e Tailândia, realizaram investimentos em uma taxa acima de 25% do PIB (4). Entre 1998 e 2007, a taxa média de investimentos, em percentual do PIB, na China foi de 35,7%; na Índia, 25,84%, e na Rússia, 17,56%.
As decisões de expansão da capacidade produtiva dependem do ritmo de crescimento da demanda e dos lucros ao lado de expectativas, confiança e previsibilidade minimamente razoáveis. Mas a crise abateu-se duramente sobre essas condições necessárias para o investimento produtivo. No último trimestre de 2008, os investimentos registraram uma queda de 9,8%. Entre 2006 e 2008, a taxa média de crescimento da formação bruta de capital fixo (FBCF) foi de 12,3%, em uma aceleração superior em mais de duas vezes perante a variação média do crescimento do PIB. Por 19 semestres, o aumento dos investimentos superou o crescimento do PIB, desde 2004. A crise golpeou esse persistente e vigoroso avanço dos investimentos, inédito havia décadas no país. Estima-se que uma taxa de investimento não inferior a 20% poderia assegurar um crescimento econômico de cerca de 5%, de modo sustentado, se não houver forte agravamento na conta corrente do Balanço de Pagamentos (5). A relação FBCF/PIB, a preços correntes, foi de 16,4% em 2002; 15,3% em 2003; 16,1% em 2004; 15,9% em 2005; 16,4% em 2006; 17,5% em 2007; e 19% em 2008 (6). E a variação real anual de -5,2% em 2002; -4,6% em 2003; 9,1% em 2004; 3,6% em 2005; e 9,8% em 2006.
A crise pode ser uma oportunidade de repensar a estrutura produtiva do país, suas condições tecnológicas e competitivas, sua inserção na economia mundial, nos marcos do debate do novo projeto nacional de desenvolvimento. Historicamente, a indústria consolidou-se no Brasil, a partir de oportunidades criadas por fatores de restrição externa, com substituição de importações, e políticas desenvolvimentistas do Estado, articulando as empresas nacionais (estatal e privada) e estrangeiras. As privatizações e a desnacionalização da década de 1990 promoveram uma reestruturação produtiva com quebra e encurtamento das cadeias produtivas, maior dependência de insumos, peças e componentes importados, acentuação das decisões externas sobre as estratégias de produção, exportação e desempenho das filiais nas transnacionais, ampliação das remessas de lucros e dividendos.
Nessa reestruturação, os grupos privados nacionais se moveram para a especialização em commodities e produtos básicos (alimentos, minerais, aço), com impactos regressivos sobre o conjunto da economia brasileira do ponto de vista da capacitação tecnológica, da qualificação do emprego, do aumento do valor agregado e da competitividade. A crise, agora, acentuou essa certa reprimarização da estrutura produtiva brasileira. Por isso, a China tornou-se o nosso principal parceiro comercial, beneficiando a recuperação brasileira na crise, mas comprando commodities.
Assim, nos primeiros sete meses de 2009, as exportações de produtos industrializados caíram em 31,3%, enquanto as de produtos básicos tiveram queda bem menor, de 11,2%. Nesse período, as exportações totais do Brasil tiveram um declínio de 24,3%, enquanto as importações caíram em 30,4% em comparação com o mesmo período de 2007. As exportações para a China aumentaram em 25,9%, enquanto as vendas para os Estados Unidos caíram em 46%.
A crise mostrou a importância da política externa do governo Lula de diversificação dos mercados para os produtos brasileiros, com as vendas para os países da Ásia, América Latina e África. O Brasil exporta relativamente pouco, mas essa menor dependência das vendas externas não pôde embaraçar a recuperação em face da crise. Em 2008, as exportações totalizaram US$ 197,9 bilhões, representando apenas 12,4% do PIB, que foi de US$ 1,596 trilhão. Desde meados de 2009, os preços das commodities retomaram a tendência de alta, o que beneficia as exportações brasileiras.
No setor externo, o déficit em transações correntes, conforme estimativas, será de US$ 15,80 bilhões, em 2009, e aumentará para US$ 25 bilhões no próximo ano. Esse déficit agravará ainda mais (sem considerar as reservas) a necessidade de entrada de capitais, a exemplo da previsão de investimento externo direto (IED) de 31 bilhões, em 2010, além de favorecer os fluxos de capitais especulativos de curto prazo. Neste ano, 2009, a balança comercial deverá registrar superávit de US$ 25,85 bilhões e estima-se queda do saldo positivo dessa conta para US$ 17,30 bilhões em 2010.
Financiamento, dívida e tributos
O crédito externo e interno recuou. A grande e crônica dependência do financiamento externo cobrou seu preço. Ademais, na crise, um grande problema de crédito decorreu da contração das operações dos bancos privados no país.
Conforme o Banco Central (7), a recuperação do volume de crédito já registrou a relação crédito/PIB em 45,2% em agosto de 2009, enquanto no mesmo mês de 2007 essa relação situava-se em 36,7%. No que diz respeito à variação do volume de crédito entre setembro de 2008 e março de 2009, houve uma contribuição dos bancos públicos de 48%, do BNDES de 34% e a dos bancos privados de apenas 18%.
Do ponto de vista do projeto nacional de desenvolvimento, coloca-se em rediscussão o padrão de financiamento da economia brasileira, observando-se os graves limites da dependência estrutural tanto dos investimentos externos diretos quanto das diversas formas de captação de créditos nos mercados financeiros internacionais, como todas as crises da economia brasileira já demonstraram sobejamente.
O financiamento compatível com a produção e os investimentos é fortemente prejudicado pela estrutura de altas taxas de juros e restrições de crédito do sistema bancário brasileiro. O volume de crédito em relação ao PIB tem melhorado, mas ainda é muito baixo em qualquer comparação internacional. Na crise, foi fundamental a queda da taxa básica de juros, a despeito da lentidão do Banco Central, e o aumento da oferta de crédito pelos bancos públicos. A apreciação da taxa de câmbio, contando com a retomada do vigor das exportações de commodities e as condições gerais da economia, favorece a diminuição da taxa de juros. Essa valorização do real ajuda na manutenção do controle da inflação,beneficia a importação de maquinaria e infunde confiança no país, mas a valorização cambial extremada resultará, em termos líquidos na concorrência espúria dos importados e na compulsória perda de competitividade externa dos produtos brasileiros, com prejuízos para a indústria, para os investimentos e para as exportações. A política de supervalorização cambial atenta gravemente contra o desenvolvimento em longo prazo da economia nacional.
No sistema de financiamento, o crédito estrangeiro depende muito da fase do ciclo da economia mundial: abundante e barato na fase expansiva; restrito e caro na fase recessiva. A poupança forçada com fundos sociais, com os recursos do FAT, continua importante para o BNDES, mas é restrita para as necessidades de fomento nas dimensões da economia brasileira. Na crise, houve forte dependência de capitalização do BNDES pelo Tesouro.
O mercado de capitais, no que diz respeito à renda fixa, mostra uma excessiva concentração em títulos da dívida pública com relativamente pouca emissão de dívida privada, enquanto o mercado acionário tem crescido de forma acentuada. Se a taxa básica de juros mantém-se baixa, para os padrões brasileiros, haverá uma necessidade de expansão das dívidas privadas para ampliar o mercado de renda fixa. O mercado acionário passou por uma grande transformação nesta década, viabilizando-se, cada vez mais, como uma grande fonte de capitalização das empresas. As significativas emissões primárias e as aberturas iniciais de capital na Bolsa, registradas em 2007 e inícios de 2008, asseguraram a provisão de volumosos recursos para projetos de expansão da capacidade produtiva das empresas. Como é óbvio, a crise mostrou a natureza extremamente volátil e especulativa das operações na Bolsa.
A dívida pública é muito importante para os investimentos em infraestrutura, sobretudo em atendimento a uma estratégia de desenvolvimento nacional. Entretanto, é claro que a dívida pública atualmente no Brasil não foi, fundamentalmente, constituída em razão de tal estratégia nos marcos do governo Fernando Henrique. O governo Lula tem conseguido reduzir significativamente essa dívida como proporção do PIB. Na perspectiva do projeto de desenvolvimento, há que se avançar ainda mais, renegociando a reestruturação dessa dívida, com sua redução mais significativamente, alongamento do seu perfil e pré-fixação de taxas de juros mais adequadas.
O papel indutor do Estado no desenvolvimento econômico exige essa mudança em relação à dívida pública em associação com uma indispensável reforma tributária. Em 2007, a União, os estados e municípios gastaram 6,2% do PIB com pagamento de juros da dívida pública, em 2008 foram gastos 5,6% do PIB (8). Nessa dimensão, essa é uma transferência inaceitável de recursos públicos para o rentismo em prejuízo do orçamento para políticas sociais e investimentos estratégicos em infraestrutura econômica. A carga tributária líquida (depois das transferências de previdência e subsídios) exclusive juros foi de 14,85% do PIB em 2008. O superávit primário, a fim de pagar os juros da dívida, foi aumentado, na prática, sistematicamente: 3,8% do PIB em 2006; 3,9% em 2007; e 4,06% em 2008.
O regressivo sistema tributário no Brasil tributa os mais pobres, com a prevalência dos impostos indiretos e os irrisórios impostos sobre a riqueza. Os 10% mais pobres pagam 32,8% de sua renda como tributos. Compare as despesas com juros, com o gasto do governo federal de 0,4% do PIB com o Bolsa Família para 11,6 milhões de famílias. Em 2006, as três esferas de governo pagaram 6,84% do PIB em juros da dívida, enquanto gastaram com a educação, do infantil à universidade, 4,3% do PIB.
A crise exigiu isenções fiscais e o declínio da atividade econômica impôs queda na arrecadação tributária. Nesse momento de começo da recuperação econômica, seria necessária a retomada da iniciativa da reforma tributária. O projeto nacional de desenvolvimento tem como um dos seus elementos principais a tributação fortemente progressiva e políticas sociais para o enfrentamento da iníqua distribuição de renda e de riqueza no Brasil.
Na crise, o sistema bancário brasileiro, em contraste com os bancos nos países desenvolvidos, mostrou-se, em geral, relativamente sólido. Essa resistência do sistema decorre da presença e reação dos bancos públicos e da longa trajetória de absurda lucrativadade dos bancos no Brasil, inclusive beneficiando-se da política de altas taxas de juros implementada pelo Banco Central, além da sua (dos bancos) incipiente participação em crédito e risco para a produção, em prazos e volumes maiores.
A estrutura bancária no Brasil, desde os anos 1990, passou por importante transformação. Na crise acentuou-se a concentração bancária, a exemplo da fusão Itaú-Unibanco, seguindo o processo em que os 20 maiores bancos subiram de 72% para 86% de participação no total de ativos do setor, entre 1996 e 2006. Do ponto de vista do número de bancos, nesses onze anos, houve uma queda de 32,2%. Os bancos públicos eram 32, em 1996 (com 58,1% das operações de crédito – ver Gráfico abaixo (9)) e passaram a 13, em 2006 (com apenas cerca de 31,9% das operações de crédito). Na Tabela abaixo (10), constata-se a grande diferença nos spreads comparando os bancos no Brasil e no exterior. A título de exemplo das distorções, observa-se que, na primeira semana de abril de 2009, o Santander cobrava uma taxa anual real de juros total sobre empréstimos pessoais na Espanha de 10,81% e no Brasil, de 55,74%. Da mesma forma, o HSBC cobrava 6,60% na Inglaterra e 63,42% no Brasil. Já o Banco do Brasil 25,05% enquanto o Itaú cobrava 63,25%.
Evolução da participação das instituições bancárias nas operações de crédito (em %)
Taxa média anual de juros reais em Brasil, EUA e Zona do Euro para pessoas físicas e jurídicas, na primeira semana de abril (em %)
A crise significou prejuízos importantes para o Brasil, mas o mercado interno – a partir da recuperação do consumo e do crédito, com as medidas anticíclicas fiscais e monetárias do governo, além dos investimentos e expectativas associados ao PAC e Plano de Habitação, as perspectivas promissoras do pré-sal, e ainda contando com inflação sob controle – permitiu ao país resistir e começar a sair da crise. De fato, no 2º trimestre de 2009, houve crescimento de 1,9% em relação ao 1º trimestre. O risco-país, conforme o indicador EMBI do J. P. Morgan, era de 223 pontos em 22 de julho de 2008; de 560 pontos em 28 de outubro de 2008; e de 228 pontos em 23 de setembro de 2008. O PIB teria variação de 0,4% neste ano e 5,6% em 2010, conforme a previsão do Grupo de Conjuntura do Instituto de Economia da UFRJ (11).
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Renildo Souza é professor do CEFET-BA e membro do Comitê Central do PCdoB
Notas
(1) Banco Central do Brasil. Boletim Focus. Brasília, 13 de outubro de 2009.
(2) Grupo de Conjuntura do IE/UFRJ. “Conjuntura macroeconômica”. Economia e Conjuntura. Rio de Janeiro. Ano 9, n. 89, p. 6.
(3) Assessoria Técnica da Presidência do IPEA. Comunicado da Presidência do IPEA, n. 21, Brasília, 29 abr. 2009, p. 18.
(4) DATHEIN, Ricardo. Crescimento, investimento e taxa de lucro na economia brasileira, p. 3.
(5) Ibidem.
(6) Grupo de Conjuntura do IE/UFRJ. “Conjuntura macroeconômica”. Economia e Conjuntura. Rio de Janeiro. Ano 9, n. 89, p. 13-14.
(7) IBGE. Sistema de Contas Nacionais 2002-2006. Diretoria de Pesquisas – Coordenação de Contas Nacionais. Brasília-DF.
(8) Banco Central do Brasil. “Política Monetária e Operações de Crédito do Sistema Financeiro”. Nota para a Imprensa. Brasília, 29 de setembro de 2009.
(9) Assessoria Técnica da Presidência do IPEA. Comunicado da Presidência do IPEA, n. 22, p. 7.
(10) Assessoria Técnica da Presidência do IPEA. Comunicado da Presidência do IPEA, n. 20, p. 8.
(11) Assessoria Técnica da Presidência do IPEA. Comunicado da Presidência do IPEA, n. 20, Brasília, 07 de abril de 2009, p. 22.
Publicado originalmente na revista Princípios