A despeito da violência da crise econômica que se abateu sobre o mundo há um ano, o Brasil teve desempenho notável neste período. O Brasil foi uma das últimas economias afetadas pela crise e apresenta uma recuperação das mais rápidas e consistentes. Já em meados de 2009 o País voltava a apresentar um excelente panorama para o crescimento.

Até setembro de 2008 o controle da inflação era considerado, por muitos, o principal problema, em face de uma demanda doméstica em expansão e ao aumento dos preços das commodities. Com a eclosão da crise financeira, o panorama se reverteu abruptamente. A drástica redução no crédito externo ocasionou uma redução severa na oferta doméstica, de modo que a economia experimentou um choque negativo de oferta. A queda nos preços das commodities e nos fluxos comerciais e a evasão de capitais levaram a uma notável depreciação do Real até o final de 2008. A depreciação da moeda, a falta de liquidez e a demanda internacional cadente derrubaram a confiança de consumidores e empresários, levando a uma grande queda na demanda agregada e no investimento.

A resposta do governo brasileiro a esta situação gravíssima tomou a forma de uma seqüência de ações expansionistas sem precedentes na história econômica recente do País. Um conjunto de ações monetárias e fiscais anticíclicas foi adotado de modo a impedir a contaminação da economia doméstica e especialmente do sistema financeiro pela crise. Após um ano do início da crise, reconhecida como a mais grave desde a grande depressão nos anos 30, o Brasil não apenas conseguiu evitar maiores problemas financeiros como voltou a crescer. Neste intervalo, o desemprego não explodiu, os salários reais continuaram a crescer e a confiança de empresários e consumidores está de volta aos níveis anteriores à crise. Contrariamente às expectativas de grande parte dos analistas, o País deverá experimentar um crescimento positivo em 2009 e retornar à situação favorável antes da crise em 2010, quando se prevê um crescimento na faixa de 5% ao ano.

IMPACTO DA CRISE E PRIMEIRAS REAÇÕES

A crise foi sentida de modo mais imediato no Brasil como uma notável contração do crédito. Linhas de crédito externo para bancos e empresas nacionais foram cortadas, fazendo com que a liquidez dos agentes domésticos fosse prejudicada. A depreciação do Real também fez com que exportadores com contratos em derivativos também fossem prejudicados.

A primeira reação do governo brasileiro à diminuição do crédito foi proporcionar liquidez em moeda nacional e estrangeira. O Banco Central utilizou suas reservas para vender dólares no mercado à vista e para oferecer socorro de crédito aos exportadores. Ainda que tenha ocorrido uma grande saída de capitais privados no período mais agudo da crise, tais medidas mantiveram um nível mínimo de liquidez em moeda estrangeira para as empresas nacionais. Esta estratégia do Banco Central somente foi possível porque o País havia acumulado um alto nível de reservas (US$ 208,5 bilhões em setembro de 2008). Este aumento de reservas foi reforçado a partir de meados de 2006 (em março de 2006 estavam em US$ 59,8 bilhões). À medida que a situação se normalizou, as operações temporárias de ajuda em moeda externa puderam ser revertidas no segundo semestre de 2009.

Outra medida importante foi a redução no nível de reservas obrigatórias dos bancos. Como tais níveis estavam em um patamar alto antes da crise, ocorreu uma significativa injeção de liquidez devido a esta medida. Mais importante, evitou-se o contágio da crise no mercado interbancário brasileiro. Esta medida foi complementada com incentivos temporários para que os maiores bancos emprestassem aos bancos médios e pequenos, cujos depósitos foram objeto de garantias especiais e temporárias. Desta forma, o sistema financeiro atravessou a crise de forma razoavelmente segura, sem nenhuma falência.

É fundamental ressaltar o papel dos bancos públicos durante a crise, agindo como emprestadores em “penúltima” instância. Através da abertura de uma expressiva linha especial de crédito do Tesouro para o BNDES no início de 2009, linhas especiais puderam ser oferecidas para capital de giro, para pequenas e médias empresas além dos exportadores. Além disso, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal puderam oferecer taxas reduzidas aos setores que enfrentavam dificuldades, especialmente a agricultura, no caso do BB, e habitação, no da Caixa. O governo também incentivou os bancos públicos a aumentar os empréstimos durante a crise, de modo que, entre setembro de 2008 e julho de 2009, os bancos públicos aumentaram a oferta de crédito em 33%, ao passo que os maiores bancos privados aumentaram em apenas 9,1%.

Por fim, outra conseqüência importante do combate à crise foi a diminuição das taxas de juros, iniciada em janeiro de 2009, que levou a taxa real de juros ao menor patamar em décadas, mostrando que a economia tem condições de conviver com taxas de um dígito sem reflexos inflacionários.

ENTRA A POLÍTICA FISCAL

As medidas monetárias foram fundamentais, mas sua eficácia não é imediata. Desta forma, o governo complementou as medidas monetárias com uma série de medidas que se iniciaram no último trimestre de 2008, focadas principalmente em desonerações para estimular as vendas e a produção, mantendo a confiança dos principais setores produtivos e evitando acumulação de estoques. O primeiro setor contemplado com as desonerações foi o automobilístico, em dezembro de 2008. Em 2009, as desonerações se ampliaram, atingindo os setores de eletrodomésticos, bens de capital e insumos para construção civil. Também foram contemplados alguns itens referentes à alimentação (trigo) e, no conjunto, estima-se que atinja 0,3% do PIB em 2009. O resultado foi que as desonerações reduziram a severidade da recessão no início do ano e aceleraram a retomada mais para o final.

Menos divulgadas, mas não menos importantes, foram as transferências extraordinárias do governo federal para Estados e Municípios. O mesmo valor nominal do orçamento anterior foi mantido para as transferências de 2009 e o governo federal também assumiu parte dos gastos em programas conjuntos de água, saneamento e transporte urbano, perfazendo outros 0,2% do PIB. Tais medidas impediram uma política fiscal pró-cíclica regional, que teria efeitos danosos especialmente sobre o emprego.

Estas ações temporárias foram complementadas por um aumento tanto no período quanto no valor do seguro-desemprego, além de subsídio nas taxas de juros para investimentos em máquinas e equipamentos realizados em 2009. Assim, assistindo os trabalhadores nos setores mais afetados pela redução de exportações e cortes em investimentos e,simultaneamente, estimulando as empresas a não postergarem os investimentos, obteve-se a sustentação dos mercados durante o período mais agudo da crise, além de reverter progressivamente as expectativas dos agentes econômicos.

A contrapartida a essas medidas foi a diminuição nas metas fiscais. A perda de receita devido ao menor crescimento, as desonerações e os maiores gastos com a manutenção dos programas governamentais foram acomodadas com a revisão das metas fiscais para 2009 e 2010. Para 2009, a meta de superávit primário foi reduzida de 3,3% para 2,5% do PIB, considerando o investimento público, ou de 2,8 para 1,6% do PIB, excluindo o investimento público. Já para 2010 a meta foi mantida a mesma (3,3%), com o possível desconto do investimento público (0,65%).

O que se observou durante o ano foi um pequeno aumento no déficit orçamentário e na dívida pública, aumento bem menor do que o verificado em outras economias durante a crise. Assim, o déficit orçamentário do setor público em 12 meses aumentou de 2,0% do PIB em 2008 para 3,5% do PIB ao final do terceiro trimestre. Já a dívida pública aumentou de 41,8% do PIB em agosto de 2008 para 44,0% do PIB em agosto de 2009. Dadas as perspectivas favoráveis em relação ao crescimento, inflação e taxas de juros para 2010 e 2011, o País precisará de um resultado primário de 1,5% do PIB de modo a manter sua dívida interna líquida estável, em termos do PIB, no futuro próximo.

INICIATIVAS ESTRUTURAIS

A crise ensejou a antecipação de iniciativas já presentes na agenda governamental, com a tomada de medidas estruturais. As mais importantes foram a modificação nas alíquotas do Imposto de Renda das Pessoas Físicas, o novo Programa Habitacional para famílias de menor renda e a redução na taxa de juro básica da economia.

A mudança no imposto de renda consistiu no aumento no número de alíquotas, o que tornou o sistema mais progressivo, beneficiando especialmente a classe média. Esta medida deve injetar mais 0,2% do PIB como renda disponível no decorrer de 2009. Já a iniciativa do Programa Habitacional Minha Casa, Minha Vida, procurou suprir uma deficiência histórica do setor. O objetivo é a construção de um milhão de novas residências, com subsídios equivalentes a 1,2% do PIB, distribuídos em três anos. O programa foi construído em torno de cinco iniciativas principais. Em primeiro lugar, um fundo governamental vai adquirir 400 mil unidades residenciais em projetos residenciais; uma vez completada a construção, feita por empresas privadas, as unidades serão repassadas a famílias de baixa renda a valores e taxas de juros subsidiadas. O governo garantirá a demanda, de acordo como normas pré-especificadas quanto a valores e garantias. Em segundo, governo e FGTS proporcionarão subsídios e taxas de juros favoráveis a famílias de renda baixa e média para a compra de 600 mil casas através do mercado, sendo a construção feita igualmente por empresas privadas, com o financiamento contratado diretamente entre famílias e bancos. A terceira iniciativa é a redução dos impostos indiretos na construção das residências incluídas no programa, a quarta a criação de instrumentos creditícios para investimentos privados na infra-estrutura de programas habitacionais e a última a criação de uma linha de crédito dirigida ao aumento do uso de tecnologias modernas de construção pelas empresas nacionais.

Este programa é fundamental na estratégia do governo, ao expandir o acesso das famílias mais pobres à educação e simultaneamente uma boa iniciativa para combater o impacto da crise, pois estimula um setor intensivo em trabalho e insumos domésticos. Assim, espera-se que o setor residencial se torne progressivamente um dos mais dinâmicos da economia.

MUDANÇA NA PERCEPÇÃO EXTERNA E QUEDA NOS JUROS

As boas condições macroeconômicas apresentadas pelo País, sua capacidade de absorver o impacto da crise financeira internacional a um custo inferior ao da maioria dos países, o reconhecimento do grande potencial de nosso mercado interno e o acerto das políticas utilizadas na superação da crise contribuíram para a pronta recuperação da atividade. Levaram o reconhecimento do país no exterior a um novo patamar, aumentando o interesse dos investidores internacionais pelo Brasil. Assim, as agências de rating concordaram em dar “grau de investimento” ao País. Como resultado, o País volta a receber enorme afluxo de capital externo.

Hoje, existe um consenso de que o novo ciclo de desenvolvimento inaugurado anos atrás já está sendo retomado, de modo que o crescimento esperado para 2010 ficará na casa dos 5%, sem comprometer o desempenho fiscal ou monetário. As instituições financeiras públicas e privadas estão fortalecidas, sua regulação é efetuada de modo responsável e a proporção do crédito no PIB vem avançando com firmeza, permitindo traçar um horizonte de crescimento em prazos mais longos.

Outro efeito derivado da crise foi que a redução no nível da atividade econômica e a apreciação do Real em 2009 reduziram as pressões inflacionárias, permitindo ao Banco Central reduzir a taxa básica de juros a níveis sem precedentes para nossa história recente. Ainda que parte da redução seja um resultado temporário da crise, muito deve ser permanente, resultado de nosso desempenho ao enfrentar as dificuldades. Antes da crise a taxa de juros real flutuava entre 7 e 9% ao ano. No futuro tem todas as condições de chegar a um nível civilizado, entre 2 e 3%.

PRINCIPAIS LIÇÕES DA CRISE

A crise reforçou a importância da execução de políticas anticíclicas por economias em desenvolvimento. A experiência brasileira também indicou que uma situação fiscal estável e, especialmente, reservas internacionais suficientes, são condições fundamentais para a execução de tais políticas. Isto porque as economias em desenvolvimento não dispõem de um emprestador internacional de última instância para atravessar crises da magnitude desta iniciada em 2008. Assim, uma primeira lição é que o nível confortável de reservas proporcionou ao governo brasileiro alternativas de política econômica para lidar com a crise.

Contudo, não basta que as políticas sejam possíveis: sua execução, seu modo específico de implantação depende do desenvolvimento institucional da economia. Assim, outra lição a ser extraída da crise é que a existência de uma rede de proteção social ajuda a execução de políticas anticíclicas, ao passo que os instrumentos tradicionais do “estado desenvolvimentista” facilitam muito as ações do governo. Um sistema abrangente de transferências pessoais de renda é útil para assistir famílias de menor renda em períodos de crise, mas a existência de bancos públicos, companhias estatais, política industrial e programas de investimento é complemento necessário para facilitar e acelerar as ações do Estado na estabilização econômica. Uma segunda lição, no caso brasileiro, foi especialmente o grande programa de investimentos públicos já em andamento quando a crise nos atingiu. Este programa beneficiou enormemente a reação, assim como a existência de um Banco Nacional de Desenvolvimento capaz de implantar tal programa.

Uma terceira lição diz respeito à qualidade da regulação financeira prudencial. Devemos reconhecer que ela não é somente útil para prevenir as crises – algo que os países centrais descobriram por conta própria e com grandes custos – mas também para combater seus efeitos. Assim, a experiência brasileira mostrou que a baixa alavancagem e o alto nível de reservas obrigatórias exigidas pelo Banco Central foram de extrema valia durante a crise. A baixa alavancagem impediu problemas mais sérios de solvência no sistema bancário, ao passo que as altas reservas obrigatórias significaram que liquidez suficiente pode ser injetada no sistema sem depender de mecanismos complicados. Da mesma forma, a supervisão dos contratos de derivativos permitiu mapear as principais fragilidades das empresas rapidamente, durante o período de depreciação mais acentuada da moeda. Assim, a terceira lição é que vale muito a pena ter um sistema regulatório mais atuante, especialmente durante as crises.

Por fim, uma palavra sobre o modo de atuação governamental. As medidas de política econômica tomadas durante a crise enfatizaram a necessidade de ações rápidas e suficientes, de modo a impedir que a economia fosse tragada pela perda de confiança dos agentes, sucumbindo à depressão. A sustentabilidade monetária e fiscal das políticas esteve presente nas decisões governamentais, mas sua duração foi deixada em aberto, de modo a acomodar as inevitáveis incertezas advindas das crises. Assim, uma última lição é que uma abordagem pragmática, livre de restrições ideológicas, pode levar a excelentes resultados.

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Guido Mantega é Ministro de Estado da Fazenda

Publicado originalmente na revista Princípios