A crise americana do subprime transformou-se no último mês de setembro em uma crise sistêmica do capitalismo mundial. Uma crise sistêmica é aquela capaz de em sua fase aguda paralisar momentaneamente os circuitos financeiros, impedindo temporariamente a acumulação de capital, seguindo-se um período mais ou menos longo em que há uma forte redução na acumulação e ocorre uma destruição de capitais que, embora de modo diferenciado, atinge generalizadamente todos os setores econômicos.

O sistema financeiro dos EUA, União Européia e Grã-Bretanha só ainda se mantém funcionando graças ao forte financiamento de seus respectivos Bancos Centrais e a uma estatização parcial. As demais economias nacionais rapidamente vão sentindo os efeitos da crise; nenhuma delas pode se considerar livre de perdas ou mesmo da ameaça de um colapso econômico. Mesmo que o inédito e gigantesco plano de resgate americano de US$ 850 bilhões venha evitar a marcha ruinosa das finanças americanas, as consequências da crise sistêmica serão severas, embora variáveis de país para país. É o preço que ciclicamente a humanidade paga ao capitalismo e, em especial, agora, ao recente processo de globalização que dominou o mundo sob a hegemonia político-econômica americana. Nem o capitalismo nem a hegemonia americana acabarão nesta crise, porém não serão mais os mesmos.

O bilionário plano de resgate financeiro americano de 700 bilhões muito provavelmente não funcionará. A crise de liquidez evoluiu rapidamente para uma crise de solvência da maior parte do sistema financeiro americano e europeu. A solução, agora, está na capitalização, ou seja, na estatização das principais instituições financeiras. O que custará mais política e ideologicamente. De toda forma, quero tratar neste artigo de questões mais específicas da crise, admitindo a hipótese de que a fase aguda da crise sistêmica seja revertida.

A primeira questão é a negação do paradigma neoliberal da racionalidade superior do mercado. A idéia de que o mercado “auto-regulado” é capaz de organizar a vida social criando e distribuindo adequadamente a riqueza ficou irremediavelmente comprometida, perdendo, de uma vez por todas, sua condição de verdade auto-evidente e inconteste.

A segunda questão é como a crise pode atingir o Brasil e de que maneira a queda do paradigma neoliberal sobre a auto-regulação dos mercados pode ajudar a defender nossa economia. A súbita e significativa desvalorização do real frente ao dólar, invertendo a tendência dos últimos anos, e as iniciativas já tomadas pelo Banco Central mostram que a primeira onda de impacto da crise americana chegou às nossas praias.

A queda do principal paradigma neoliberal
Já virou lugar comum a afirmação de que a ação do FED e do Tesouro americano nesta crise pôs fim ao ideário neoliberal. O mais comum dos argumentos a justificar a afirmação é o fato de os EUA e outros Estados do centro capitalista estarem a salvar instituições financeiras privadas com dinheiro público.

Embora correto, o argumento é insuficiente para entendermos o tamanho do prejuízo que a crise vem impondo ao arcabouço teórico do neoliberalismo. Na verdade, a interferência do Estado no mercado, estabelecendo regras ou mesmo utilizando dinheiro público para cobrir prejuízo privados, é ação justificável pela teoria neoliberal.

O neoliberalismo revigorou o conceito de livre mercado do liberalismo clássico ao admitir a crítica marxista e keynesiana de que os mecanismos de mercado não são perfeitos e que, se entregues às suas próprias forças, tenderão à desorganização e ao desastre. Mas, ao mesmo tempo, o neoliberalismo afirmou que os mercados são imperfeitos apenas por faltar aos agentes um acesso igual às informações, a chamada “assimetria informacional”. Se o mercado puder contar com instituições (regras) que minimizem tal assimetria, permitindo sua auto-regulação, continuará a ser superior em eficiência e estabilidade ao Estado.

Essa assimetria informacional decorre de situações complexas em que certos agentes dominam melhor que outros detalhes operacionais ou mesmo por conta de processos de monopolização, limitando a racionalidade com que os agentes decidem. Isso ocasiona mais erros e prejudica a livre concorrência, levando à perda de eficiência, à instabilidade e à crise. Porém, segundo os neoliberais, a tentativa de correção dessa imperfeição por parte do Estado mediante regras impositivas, “rígidas”, apenas aumenta as distorções.

Desse modo, ao Estado caberia apenas organizar mecanismos que eliminem a assimetria informacional, utilizando os incentivos próprios do mercado, a auto-regulação, garantindo . sua racionalidade “intrínseca”. Mesmo que os agentes individualmente cometam erros de avaliação, tais erros não são cometidos sempre na mesma direção e terão uma distribuição aleatória, fazendo com que se anulem mutuamente e a soma das consequências resulte igualmente nula. Ou seja, o mercado sempre faz a opção mais racional e correta. Já o Estado, sujeito às paixões políticas, não.

A própria especulação é defendida como uma forma espontânea de o capitalismo antecipar tendências e eventos futuros. É uma função necessária ao mercado que evita surpresas desestabilizadoras e previne perdas. Da mesma maneira, regras inibidoras do livre trânsito de bens e, principalmente, de capitais, bem como os obstáculos ao livre câmbio de moedas, deveriam ser suprimidos.

Evidentemente, a melhor regulamentação disponível, a mais adequada, seria aquela praticada pelos mercados mais maduros, as instituições (regras e organizações) existentes especialmente nos países de tradição anglo-saxônica (EUA e Reino Unido), herdeiros dos valores liberais. Daí a insistência das políticas neoliberais, desde os anos 1980, em replicar em todos os países – por meio de governos e das instituições multilaterais – a mesma fórmula institucional adotada pelos EUA: agências reguladoras independentes (a começar pelos bancos centrais), liberdade de movimento de capitais, baixas tarifas de importação, isenção tributária das exportações, equilíbrio fiscal, e as chamadas “boas práticas” financeiras e contábeis.

Embora a globalização comercial tenha avançado pouco – devido às barreiras tarifárias e não-tarifárias e aos subsídios impostos pelos países centrais – a globalização que mais importava – a do livre trânsito de capitais – praticamente imperou no mundo.

Mas esse paradigma neoliberal permite, em certos casos, operações públicas de “salvamentos” de empresas. Eles podem ocorrer em decorrência de fatores externos ao mercado, ameaçando seu funcionamento normal, como choque exógeno, guerra civil e outras comoções políticas, ou ainda quando os mercados não estejam “adequadamente regulados”. Essas exceções justificavam iniciativas como a do PROER, no governo FHC, por exemplo, ou a criação de um fundo para adquirir títulos “podres” do mercado imobiliário americano, em 1989.

A diferença desta crise é que ela acontece em um mercado cuja regulação serviu de modelo para todo o mundo, que ela não se deu a partir de fatores externos e que sem o salvamento estatal teria (ou terá) desorganizado o sistema capitalista. Mesmo sendo a economia americana a mais poderosa e “adequadamente regulada”, ela não foi capaz de superar as flutuações econômico-financeiras de modo estável e continuado. Sem a intervenção direta do Estado, o mercado tendeu ao colapso. E isso aconteceu sem que houvesse qualquer choque externo, tendo se originado da flutuação cíclica de expansão e retração da atividade econômica e da ação especulativa, considerada como essencial ao bom funcionamento do mercado.

Afora os EUA, não existe outro modelo possível de mercado que sirva de paradigma, exceto na fantasia teórica. A crise desmascarou a utopia neoliberal do mercado eficiente e estável, que precisa do Estado apenas como um auxiliar secundário para funcionar à perfeição. Essa é a fratura exposta no ideário teórico e ideológico do neoliberalismo legitimador do capitalismo da “globalização financeira”.

Negado esse princípio básico, o neoliberalismo e a sua cartilha de políticas econômicas têm pouco a oferecer ao mundo. Fica especialmente em xeque a livre movimentação de capitais e a rejeição de regulamentação do mercado que derive do poder de império do Estado. Acabou-se a aura “científica” da superioridade absoluta do mercado. Como corolário, sai bastante desgastado outro conceito caro ao princípio da superioridade do mercado: de que os agentes agem guiados por “expectativas racionais”. O que implica uma perda de legitimidade na ação do capitalista como organizador da produção da riqueza e da vida social.

Mas a quebra desse paradigma, sublinhe-se, não significa a derrota da ideologia capitalista. Nem mesmo garante que as idéias neoliberais deixarão de influenciar o mundo no futuro imediato. Por um lado, a idéia e a legitimidade do mercado como instituição social ainda gozam e continuarão gozando de grande apoio social, pelo menos quanto a sua suposta superioridade, agora relativa, frente ao Estado, que pode ser a base de um novo constructo ideológico que sirva de nova teoria a uma provável retomada capitalista pós-crise. Por outro, a experiência histórica mostra que idéias estabelecidas são muito resistentes à contestação empírica; elas tendem a persistir por certo período, mesmo quando já se mostram inadequadas.

No entanto, uma coisa é certa: após essa crise, o capitalismo não se apresentará da mesma maneira. Há agora a necessidade de reduzir o poder do capital na sociedade. A realidade da ruptura ideológica no neoliberalismo abrirá, daqui por diante, um grande espaço para a discussão de novas políticas públicas e econômicas com base em pressupostos até hoje estigmatizados por ele, como a reafirmação da soberania nacional, instrumento legítimo de defesa de um Estado frente ao poder econômico do mais forte. Também a hegemonia americana terá sofrido um forte revés, ao mostrar ao mundo uma fragilidade em um de seus pilares fundamentais, sendo a evidente culpada – tanto política como ideologicamente – de impor às nações perdas generalizadas e um período de instabilidade com consequências políticas e econômicas ainda imprevisíveis.

Brasil: as três frentes do choque externo
A volta da desvalorização do real, a acentuada queda da Bolsa de São Paulo, as recentes intervenções do Banco Central e outras medidas tomadas pelo governo são uma demonstração inequívoca de que a crise sistêmica começa a afetar a economia brasileira. Apesar de o Brasil estar em melhores condições do que a maioria dos países para enfrentar a crise, o processo de contaminação, por pertencermos ao sistema capitalista mundial, é inevitável. Em especial, deve-se levar em consideração que a recessão internacional, pela dimensão já assumida – e mesmo que não sobrevenha nenhum desastre maior –, deverá perdurar por dois ou até mais anos, após encerrada a fase mais aguda que vivemos.

Autoridades e analistas apontam dois canais de transmissão da crise: as exportações e o crédito externo. A esses dois canais deve-se acrescentar um terceiro, a conta de capital, associada aos mercados financeiro e de câmbio, a que denomino mais apropriadamente como frentes de choque. As três frentes são interligadas e formam o que se pode considerar a vulnerabilidade externa da economia. A conta de capital difere das outras duas frentes de choque por decorrer diretamente da regulação de abertura dos mercados financeiro e cambial que veio sendo adotada desde os anos 1990 sob a direção do paradigma neoliberal do livre mercado.

A exportação. As perdas comerciais mais expressivas decorrerão do comportamento dos preços de commodities e também da disponibilidade de linhas de crédito comercial externo e de crédito interno, principalmente o crédito agrícola. É de se esperar uma queda paulatina tanto na quantidade como no valor das exportações por um período considerável de tempo, impactando as contas externas e reduzindo o crescimento do PIB, especialmente no setor agrícola e mineral. As perdas na renda interna devem ser compensadas parcialmente pela desvalorização do real frente ao dólar, desde que não seja anulada por um novo processo inflacionário.

O crédito externo. A redução do crédito externo deve ser considerável e deve ocorrer nas linhas comerciais, nas operações de repasse aos bancos nacionais e também no financiamento de investimentos – tanto os investimentos diretos como os no fornecimento de bens de capitais estrangeiros para grandes projetos de infra-estrutura. Ao contrário das exportações, nesta frente a redução tende a ser brusca e já começou.

O governo Lula mostra-se empenhado em garantir a oferta de crédito externo e interno, mas é impossível suprir toda a perda que sobrevirá. A oferta de crédito externa é obviamente insubstituível, exceto parcialmente pelo mecanismo de mercados de câmbio local, como o que foi criado com a Argentina, sem intermediação do dólar. Esses mercados podem ser rapidamente expandidos a todo o MERCOSUL e a outros países sul-americanos. As reservas podem até suprir parte desse crédito, mas de forma limitada e provisória. Resta ao governo a capacidade de pelo menos poder hierarquizar as prioridades nacionais.

As perdas decorrentes da redução do crédito poderão ainda ser ampliadas em caso de um surto inflacionário e reduzirão o crescimento do PIB por meio da queda significativa dos investimentos de 2009 em diante.

Os mercados mobiliário e cambial. A terceira frente de choque – que não vem sendo referida por autoridades e analistas da mídia – é a dos mercados mobiliário e cambial. Ao contrário das duas outras frentes, que resultam mais da abertura comercial, a dos mercados financeiro e cambial decorre diretamente das reformas liberalizantes da globalização financeira, inspiradas no paradigma da superioridade dos mercados livres e auto-regulamentados. A reforma desses dois mercados, iniciada no governo Collor e concluída em 2005, mantém o câmbio flutuante, permitindo a mais completa liberdade para o fluxo de capitais entre o Brasil e o mundo, inclusive para os capitais de brasileiros residentes que podem ser transferidos para o estrangeiro, subordinando-se apenas à satisfação das obrigações fiscais.
As duas primeiras frentes prejudicam a acumulação de capitais no Brasil, a terceira permite a transferência de capitais aqui acumulados para o centro do sistema capitalista.

Os estrangeiros acumularam um enorme patrimônio em ações e títulos desde 2003. Essas aplicações têm grande liquidez, apesar de poderem se desvalorizar também rapidamente. A saída de aplicações de estrangeiros em ações da Bovespa – cerca de US$ 19 bilhões entre abril e setembro – para cobrir perdas em Nova Iorque e em outros centros financeiros ilustra a situação.
Mas a transferência registrada ainda representa uma pequena parcela do patrimônio em ativos financeiros que os investidores estrangeiros acumularam no país desde 2003. Em março de 2008, último dado disponível, eles detinham o equivalente a US$ 154 bilhões em ações na Bovespa e US$ 56 bilhões em títulos de renda fixa. Ao final de setembro, estimam-se esses estoques em cerca de US$ 90 bilhões e US$ 40 bilhões, respectivamente (2). Um patrimônio mobiliário ainda muito elevado para o tamanho de nossa economia e de nosso mercado financeiro, sendo superior, inclusive, a dois terços de nossas reservas internacionais (3). Caso os ativos financeiros continuem a ser liquidados e remetidos neste ritmo, as reservas em divisas se reduzirão mais rapidamente do que indicam as perdas decorrentes das duas outras frentes de choque.
Por outro lado, a forte desvalorização do real em setembro decorreu, por exemplo, não da saída de divisas, mas o saldo cambial continuou liquidamente positivo no mês. Ela foi determinada por aplicações especulativas na Bolsa de Mercadorias & Futuros de São Paulo (BM & F), comandada por investidores estrangeiros que, desde agosto, fecharam contratos de mais de sete bilhões de dólares em posições de compra de dólar no mercado futuro (o que equivale a uma aposta na alta do dólar). Ao elevarem a cotação futura do dólar, “puxaram” a cotação à vista, desvalorizando nossa moeda sem precisar sequer comprar ou vender. Esse tipo de operação foi em grande parte responsável também pela valorização do real desde 2004.
A abertura da conta de capitais e a regulamentação do mercado financeiro, seguindo o padrão americano, permitem esse tipo de operação, fazendo com que nossa moeda fique vulnerável a movimentos especulativos, gerando perdas financeiras, pressão inflacionária, incerteza e instabilidade aos investimentos produtivos.
Conclusão
As perdas com as exportações e com o crédito externo serão inevitáveis, embora possam ser minoradas. O governo já vem adotando medidas nesta direção, e outras podem ainda ser tomadas, especialmente a redução da taxa de juros. Porém, onde o Estado pode defender o país de modo mais efetivo é alterando as regras excessivamente liberais dos mercados cambial e financeiro, em especial as de negociação de contratos de futuro. De imediato, estar-se-á evitando a drenagem das reservas de US$ 208 bilhões que podem contrabalançar as perdas com exportações e crédito externo. É hora de proteger nossa economia e as melhorias recentes no padrão de vida do povo, limitando a irrestrita liberdade de movimento do capital.
Para tanto, torna-se necessário que o governo e as forças que o apóiam comecem a criar as condições políticas que permitam adotar essas mudanças. Logo chegará a hora em que o governo Lula terá de conclamar toda a Nação a apoiar essa ação defensiva que minimizará as perdas do presente e poderá garantir um futuro viável para o Brasil no novo mundo que surgirá do rescaldo desta crise sistêmica.
A quebra no paradigma da supremacia absoluta do mercado sobre o Estado pode ser um facilitador das restrições que o Brasil venha a fazer à movimentação de capitais. Mesmo porque, é de se esperar que países do mundo inteiro estarão reformando seus mercados na mesma direção, buscando, como nós, protegerem-se da grande borrasca que se inicia.

Notas

(1) Lecio Morais é economista, mestre em Ciência Política e assessor na Câmara dos Deputados.

(2) Os valores em dólares são calculados ao câmbio de cada mês. A forte desvalorização do real em setembro é responsável pela maior parte da redução do valor dos dois ativos.

(3) Para uma discussão sobre a vulnerabilidade externa e o crescimento dos ativos financeiros de estrangeiros no Brasil, ver MORAIS, Lecio. “Vulnerabilidade externa e investimento estrangeiro: sentados sobre uma bolha especulativa 2008” (Artigo). http://www.desempregozero.org.br/artigos/vulnerabilidade_Lecio.pdf

Publicado originalmente na revista Princípios