O ascenso desenvolvimentista no Brasil, iniciado a partir de 2007, está enfrentando pesado obstáculo desde setembro do ano passado com a agudização e expansão da crise econômica e financeira mundial. O país retomou o patamar de desenvolvimento do PIB anual acima dos 5% e a tendência apontava para uma aceleração do seu crescimento a níveis mais altos, por um período mais longo. Essa crise integral do capitalismo que sacode o mundo em todas as direções atingiu o Brasil em pleno voo, provocando uma queda acentuada de 3,6% do PIB (na indústria 7,4%), já no último trimestre de 2008, ano que ainda alcançou um crescimento importante de 5,1% do PIB.


A evolução do governo Lula

No final dos oito anos de governo de FHC, o Brasil se encontrava numa crise aguda e profunda, tutelado e subordinado pela segunda vez pelo FMI, com um volumoso déficit no balanço de transações correntes, sem reservas internacionais, sem crédito externo. Isso tudo ocorreu mesmo tendo queimado 100 bilhões de dólares com as privatizações de estatais de grande porte. O dólar nas alturas, desemprego aberto em ascenso e o país no caminho da neo-colonização com a imposição estadunidense da Alca para os países das Américas. O FMI exigia de todos os candidatos à presidência em 2002 o cumprimento integral do contratado com o governo brasileiro e com o crescimento de Lula na campanha eleitoral, setores dominantes econômicos auxiliados pela grande mídia incendiava o clima de desconfiança e pânico.

Neste contexto gravíssimo é que se instala o primeiro governo Lula. Diante de tal situação e decorrente da correlação das forças políticas de então, o presidente Lula foi levado a estabelecer uma forma de pacto político que exprimia um duplo compromisso contraditório: responder ao apoio da base democrática e popular que o apoiou desde 1989 e, ao mesmo tempo, estabelecer um acordo que cedia aos interesses da oligarquia financeira beneficiária da política neoliberal implantada desde início de 1990.

A expressão programática desse pacto – Carta aos Brasileiros – foi elaborada pelo comando da candidatura Lula, no ápice da desconfiança, inflada pela dominação midiático-empresarial, para aplacar a ira desses setores predominantes. Essa Carta é que deu ao novo governo, desde sua origem, uma característica de dualidade, como já afirmávamos desde sua posse em 2003. A manifestação desse tipo de pacto na composição do governo ficou demonstrada no papel de avalistas do acordo, exercido por Antonio Palocci, titular do Ministério da Fazenda, e na escolha que se arrastou de um presidente para o Banco Central da confiança dos grandes círculos financeiros internos e externos. Numa formação heterogênea, o restante do governo foi completado com muitas figuras de origem democrática e progressista, vinculados ao campo popular e democrático.

O primeiro mandato do governo Lula atravessou momentos de grande instabilidade, sobretudo em 2005, acossado pelos mesmos setores que fabricavam crise após crise desde sua posse. Apesar do caráter contraditório desse pacto, esse tipo de coalizão política e social é que permitiu na prática – em condições de crescimento da economia mundial – que o governo Lula se estabilizasse economicamente na crítica situação por que passava o país, se impusesse e começasse a distribuir renda primária aos mais deserdados. Simultaneamente, o governo se livrou do plano Alca dos Estados Unidos e da tutela do FMI, buscando a afirmação de uma nova política externa “Sul-Sul”, de integração do subcontinente e diversificação comercial, dando ao Brasil importante protagonismo no cenário externo.

O segundo governo Lula colocou o centro de gravidade de suas ações na aceleração do desenvolvimento, no reforço dos programas sociais e na integração do subcontinente. A dualidade que se refletia na luta entre continuidade e mudança, neoliberais e antineoliberais, desenvolvimentistas e ortodoxos, partidários de políticas públicas universais e focalizadas, estatistas e mercadistas esteve sempre presente e se elevou numa maior contenda com a saída acidental de Antonio Palocci da Fazenda, substituído por Guido Mantega, personalidade de feição progressista. Foi sendo configurado na política econômica um caráter sem muito rigor conceitual – pode-se denominar de “híbrido” – ou seja, a conjunção de política macroeconômica ortodoxa liberal e políticas econômicas de cunho desenvolvimentista. Apesar desses limites e contradições o Brasil começou uma fase ascendente e promissora de desenvolvimento desde 2007.

Novo desafio, nova oportunidade

Porém, o início da fase aguda da crise sistêmica do capitalismo iniciada em setembro de 2008, atingindo toda a economia mundial, impôs uma nova situação. Os Estados Unidos “exportam” sua recessão para o mundo inteiro. Antes, analistas americanos afirmavam que a crise não ia atingir a Europa. Hoje ela a atinge em cheio e já impõe grandes sofrimentos aos países em vias de desenvolvimento. Agora, aqueles mesmos analistas afirmam que não se chegará a uma depressão em escala mundial, mas na realidade é manifesto que os EUA não têm nenhum domínio sobre o curso da crise. O Brasil, com suas reservas e aplicação de elevados investimentos em curso, de imediato não foi atingido. Contudo, começou a ser impactado com a recessão que se alastra mundo afora, tornando-se incerto o desdobramento dessa situação de crise no país, sobretudo nos próximos seis primeiros meses de 2009 e daí por diante.

O Banco Central (BC) manteve sua política monetária ortodoxa, completamente caduca em período de uma crise da atual dimensão. Agora, a queda da Selic iniciada pelo BC é insuficiente e tardia. Desde o estouro agudo da crise em setembro de 2008, o Brasil já se encontrava nos marcos de uma nova situação financeira e econômica mundial, tornando-se o risco maior a tendência à recessão e não mais a inflação como fixamente se comportou essa instituição dominada pelo monetarismo que defende o interesse financeiro-rentista.

Em virtude da dimensão da crise em marcha – que põe em xeque a exacerbada globalização financeira liberalizante e ao próprio hegemonismo unipolar dos EUA –, os povos e países da chamada periferia do sistema são jogados diante de ingentes desafios: encontrar novas respostas políticas e econômicas que não se limitem a remediar o impasse da nova grande crise do capitalismo, mas, distinguir novas oportunidades e caminhos para transformar o Brasil em uma nação soberana, democrática, próspera e socialmente avançada.

Muitos exemplos da história demonstram que esses momentos de grandes crises do sistema, que ocorrem no seio dos países capitalistas centrais, criam oportunidades aos países dependentes e subdesenvolvidos para buscar caminhos próprios de desenvolvimento nacional. A industrialização do Brasil ganhou impulso, no primeiro governo Getúlio Vargas, em consequência da grande crise do capitalismo de 1929-30 e a ocorrência da Segunda Guerra Mundial, na qual o Brasil ficou mais livre da dependência para buscar caminho próprio levando em conta os interesses da nação.

A crise dessa dimensão, como fundamentava Lênin, “descarta o convencional” e “traz à tona os impulsos e forças mais profundas”. Ela é fecunda e propicia a busca de alternativas, tão essencial ao futuro exitoso independente da nação brasileira e ao seu desenvolvimento civilizacional. Isto porque pode ser um período de reforço das convicções e iniciativas pelo rompimento de concepções e dogmas que sustentam o domínio da elite dominante e exploradora, consubstanciados nos paradigmas neoliberais que perpassaram toda a última década.

Hoje, comparativamente entre os países que compõem o BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), o Brasil reúne excepcionais condições objetivas. Vasto território, imensas terras agricultáveis, condições excepcionais de responder à questão da fronteira energética de nossa época, podendo ser um grande exportador de alimentos e energia e, também, desenvolver a indústria do conhecimento em vários setores. E nestes últimos 100 anos de história é a primeira vez que o Brasil diante de uma crise dessa dimensão não se torna insolvente, não “quebra”, com um acúmulo de reserva de divisas internacional de monta e comércio exterior bem diversificado. Em tais condições, com aplicação de um justo direcionamento político e econômico, que preserve a economia nacional, multiplique o investimento público, amplie seu mercado interno e defenda o emprego e a renda do trabalhador, o Brasil poderá comparativamente sair mais rapidamente da crise e assumir uma posição mais importante no cenário internacional. A nação brasileira pode se tornar mais fortalecida e passos maiores poderão ser dados no avanço do progresso social.

A encruzilhada diante do governo Lula

No Brasil o novo contexto gerado pela grande crise – tendo em conta a eleição geral de 2010, onde estará em disputa a presidência da República – leva o governo Lula a uma encruzilhada: conseguir manter um nível de desenvolvimento e emprego positivo, barrando a recessão, ou ser vencido pela retração econômica e expansão do desemprego. Prevalecendo a primeira vertente, o prestígio popular do governo e do presidente se elevará ainda mais, podendo irromper forte clamor nacional pela continuidade de Lula.

Se o governo conduz bem o país diante de grave crise global pode estimular a consciência de que a mudança do presidente em momento delicado como esse, na direção desse complexo empreendimento, pode ser muito arriscada, sendo por isso mais seguro mantê-lo. No período da grande depressão na década de 1930 nos EUA, o presidente Franklin Delano Roosevelt, com o projeto do New Deal que reergueu a nação norte-americana superando a grande crise do capitalismo, foi reeleito quatro vezes, talvez não chegando à quinta porque faleceu.

Mas, se prevalece a segunda vertente, o presidente Lula pode perder o prestígio e a confiança hoje depositada à sua condução à frente da Nação. Assim sendo, possibilitaria o aparecimento de “salvadores da pátria”, reforçando o discurso revanchista da oposição, o que dificultaria vitória do candidato, ou candidata, que seja escolhido(a) como seu sucessor. Fato que poderia truncar o novo ciclo político aberto por Lula desde sua posse em 2003.

Esta é objetivamente a encruzilhada política que vive o governo, tornando a reconstrução do pacto político, que na prática prevaleceu até hoje de uma forma ou de outra, a iniciativa necessária para assegurar a vertente que leva ao êxito no enfrentamento da crise.

Reconstruir o pacto político

O curso dos modelos de desenvolvimento capitalista tendo como centro o Estado liberal do início do século passado, o Estado do bem-estar social do segundo pós-guerra, substituído pelo Estado neoliberal, ao fim e ao cabo fracassou porque aprofundou o fosso entre países ricos e pobres, aumentou a dependência econômica e tecnológica entre centro e periferia no mundo, não conseguiu incluir praticamente dois terços da humanidade na marcha do desenvolvimento e levou o mundo a uma nova grande crise que já está provocando perdas imensas de forças produtivas, e é predadora do bem-estar dos trabalhadores e da maioria da humanidade.

Nos países centrais em que irrompeu a crise, onde – guardada a diferença entre eles – predominam Estados do capitalismo monopolista, nesse momento respondem à crise com criatividade para salvar o grande capital, colocando o Estado a seu serviço, numa gastança (dinheiro do contribuinte e endividamento das gerações futuras) de trilhões de dólares. Por outro lado, a crise é ostensivamente destrutiva para os trabalhadores e povos, porque provoca desemprego em grande escala, queda acentuada da renda do trabalho, perdas e restrições significativas às aposentadorias e multiplicação das camadas deserdadas.

Nesse contexto, a busca das saídas econômicas para a crise responde a interesses determinados, sendo assim em verdade um terreno de acirrada luta política, refletindo a correlação de poder político em âmbito tanto nacional como internacional. Não existe saída econômica neutra ou simplesmente “técnica”, sobretudo em momentos de crise que põem a nu os verdadeiros interesses das classes dominantes. A manifestação da luta entre classes e nações explode nitidamente nesses momentos. A questão incontornável é: quem vai pagar pela crise? A lógica do sistema é empurrar a dívida para a maioria, o real ônus do capitalismo, e livrar o punhado privilegiado e responsável por tal situação, concedendo-lhe o bônus do “socialismo”.

Como se pode compreender a luta política no Brasil para a saída econômica e financeira da crise? Parte importante dos compromissos assumidos desde o primeiro governo Lula correspondeu à adoção do regime de juros muito altos e superávit fiscal elevado. Medidas adotadas para tornar atrativos e garantidos os títulos da dívida pública, respondendo à crise de confiança com a vitória de Lula, manifestada pelos grandes credores que detinham o domínio financeiro da economia. A origem desse acordo não provinha da necessidade de uma solução “técnica”, para justo desenvolvimento econômico, mas da imposição predominante dos setores financeiros e rentistas. Eles impunham através de sua força política e econômica as condições de seus altos ganhos alcançados na aplicação do modelo neoliberal concretizada, sobretudo nos governos de Fernando Henrique Cardoso. Por isso, para o enfrentamento da crise, o desafio é mais político que econômico. Porque é chegada a hora de reconstruir o pacto político conformado nas circunstâncias do momento da primeira posse de Lula à presidência da República.

O novo pacto político deve consistir em dar maior força à base popular e democrática, aos trabalhadores e às camadas médias, em aliança com os empresários da produção e do comércio. É preciso construir, assim, um grande pacto pela defesa e impulso do desenvolvimento da economia nacional e do mercado interno, da renda do trabalho e do emprego. Em consequência da ação crescente da crise capitalista estamos diante de um risco maior: a recessão. Por isso, toda iniciativa e mobilização deve se voltar para viabilizar os meios que visem à expansão, e não à retração da economia.

Em suma, como consequência do novo pacto político deve ser vencida a política da desregulamentação financeira, de juros altos e do câmbio livre da fase da economia “cassino”, submetida a fortes injunções da hegemonia dos grandes agentes financeiros. Hoje, manter juro real básico no patamar acima de 5% é o mesmo que continuar acelerando a marcha para o abismo da depressão econômica. E deixar o câmbio livre de qualquer controle é voltar a cavar a vulnerabilidade externa do país. Em resposta a essa situação, impõe-se o nivelamento do juro real básico ao patamar internacional nesse tempo de crise, e certa forma de controle do câmbio e do fluxo de entrada e saída de capitais. Hoje, esse novo pacto político é o caminho para construção e êxito do novo modelo de desenvolvimento nacional, que afirme a independência do Brasil, o avanço democrático, o progresso social e a integração solidária do continente.

No entanto, o curso da história expõe com mais nitidez que a saída de fundo para a crise não se dará nos marcos do capitalismo. Os modelos de desenvolvimento capitalistas fracassaram, expondo a maioria da humanidade a crises depredadoras de maior amplitude. A verdade de nossa época é que o capitalismo já não comporta mais as imensas forças produtivas geradas em seu bojo, sendo incapaz de transformá-las em mais avançadas relações de produção e distribuição de renda e riqueza, e de uma ordem mundial equitativa e solidária. Neste tempo histórico, o capitalismo passou a ser o obstáculo para a soberania das nações e seu avanço civilizacional. O socialismo que irrompeu na cena da história contemporânea ressurge como a alternativa necessária e viável. É o caminho que pode abrir uma nova era para a soberania dos países e despontar o caminho para um novo tempo de renascimento civilizacional.

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Renato Rabelo é presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB)

Publicado originalmente na revista Princípios