A ação desimpedida dos mercados financeiros desregulados culminou com uma crise de proporções gigantescas. Não fosse a intervenção decidida dos Tesouros e das Autoridades Monetárias (sobretudo nos EUA), e as consequências do desastre financeiro teriam sido catastróficas. A aparente calma e o discreto otimismo atual dos mercados não devem ocultar um fato fundamental: o raio que atingiu o coração do sistema financeiro internacional precipitou uma crise de dimensões profundas. A economia mundial ainda permanece atordoada pelos efeitos do golpe de 2008. No caso norte-americano, o endividamento generalizado das famílias e os percalços do sistema bancário (com a consequente retração dos empréstimos) tornam problemática a perspectiva de uma retomada consistente dos gastos. A teia das dívidas, a fragilização financeira e a aversão ao risco ainda inibem a recuperação sustentada do consumo e do investimento. As estimativas recentes indicam a continuidade da escalada do desemprego nos EUA e na Europa. Nos chamados países emergentes (com destaque para a China) a situação é menos crítica, mas o crescimento é incapaz de irradiar estímulos cumulativos em uma escala global.

Ainda é cedo para tecer comentários seguros sobre a evolução provável da economia mundial. As avaliações mais otimistas especulam sobre a possibilidade de uma trajetória em forma de V (uma contração seguida de uma recuperação continuada). Os pessimistas prognosticam uma trajetória em forma de L (uma contração seguida de uma prostração prolongada) ou em forma de W (uma contração seguida de uma recuperação abortada). Independentemente da forma que venha a assumir a tendência de variação da economia internacional, parece claro que a atual crise é muito mais do que um simples “momento de recessão”. Ao que assistimos hoje não é apenas mais um ponto de baixa, uma inflexão meramente singela e reversível no curso natural de um “ciclo normal de negócios”. A crise atual traz implícita a possibilidade de uma transformação relevante na própria estruturação do capitalismo em termos mundiais.

Para esclarecer essa questão é conveniente relembrar as grandes estruturações do capitalismo ao longo do século XX.

A agonia da ordem liberal burguesa e a desordem do entreguerras

O início do século assistiu aos estertores da chamada ordem liberal burguesa. A ordem comandada pela Inglaterra – que tinha no padrão-ouro e no livre-câmbio seus pilares essenciais – já dava, na virada do século, sinais de progressiva exaustão. A agilidade das estruturas produtivas, comerciais e financeiras dos Estados Unidos e da Alemanha (em particular a centralização dos capitais e a associação entre seus bancos e a indústria) já havia transformado os referidos países nos principais promotores e beneficiários da II Revolução Industrial (motor a combustão interna, química, petróleo, aço, eletricidade etc.) e relegado a indústria inglesa a uma posição secundária na concorrência mundial. A Inglaterra, neste então, já deixara de ser a “oficina do mundo”. Não se tratava, contudo, de uma nação enfraquecida: sua força advinha da presença internacional de suas finanças, da extensão e relevância de seu império, e do poder de sua Marinha. A hegemonia mundial inglesa, no entanto, já dava mostras de um progressivo esvaecimento: a exacerbação da concorrência interestatal e intercapitalista, o avanço imperialista sobre África e Ásia, a corrida protecionista e as divisões políticas no seio da Europa indicavam que a Pax Britanica estava com os dias contados.

A carnificina da Primeira Guerra Mundial, dentre tantas sequelas, vitimou também a Inglaterra. Apesar de vitoriosa nos campos de batalha, a nação tornara-se devedora dos Estados Unidos, estes sim os reais vencedores da guerra. A ordem internacional daí emergente – a segunda estruturação do capitalismo em termos mundiais no século XX – revelou-se, contudo, visivelmente precária e constitutivamente instável. Os Estados Unidos se isolaram em sua perspectiva continental e passaram a viver, nos anos 1920, o seu transe comemorativo republicano. A Inglaterra e a França, senhoras da diplomacia mundial, foram incapazes de proporcionar um ambiente internacional estável: basta lembrar que a URSS, a Alemanha e os próprios Estados Unidos não faziam, naquele então, parte da Liga das Nações. As perspectivas econômicas, da mesma forma, não eram animadoras: apenas quando os capitais privados norte-americanos irrigaram o mundo (em particular, a Alemanha) é que se conheceu um breve sopro de crescimento. Nem a Inglaterra e nem a França, ademais, tinham força econômica suficiente para ditar os rumos da economia mundial. Não bastando, sua política econômica – constrangida pelos requisitos fiscais e monetários da volta ao padrão-ouro – em diversos momentos assumiu contornos nitidamente deflacionários. Ao longo de toda a década de 1920, por exemplo, o número de trabalhadores desempregados na Inglaterra sempre foi superior a um milhão!

A Grande Depressão explicitou de maneira dramática a fragilidade da estruturação mundial dos anos 1920. As engrenagens da deflação e das políticas econômicas associadas à defesa do padrão-ouro lançaram milhões de desempregados às ruas por todo o mundo. Nos Estados Unidos e na Alemanha cerca de 1/3 da força de trabalho estava desocupado em 1932. A eleição de Roosevelt e a ascensão dos nazistas ao poder foram apenas as consequências mais visíveis do vendaval econômico que se abateu pelo mundo. Ao protecionismo somaram-se, na década de 1930, as chamadas desvalorizações competitivas. A contração do comércio internacional se fez acompanhar pela formação de quatro grandes blocos monetários: a área do dólar, a área da libra, o bloco do ouro (liderado pela França) e o bloco das trocas bilaterais (comandado pela Alemanha). Nada mais restara da imponente arquitetura dos tempos vitorianos: ao invés da paridade fixa, a manipulação deliberada do câmbio; ao invés da livre movimentação das mercadorias, o fechamento intencional dos mercados nacionais; ao invés da supremacia mundial da libra, os blocos monetários independentes; ao invés do dogma dos orçamentos equilibrados, a recorrência voluntária ou involuntária dos déficits; ao invés do mito da autorregulação dos mercados, a dura realidade das falências em cadeia e do desemprego em massa.

Com a Grande Depressão, diga-se de passagem, o liberalismo econômico sofreu um revés seríssimo: a presença do Estado na regulação das relações econômicas e na própria promoção do crescimento passou a ser entendida como inevitável. A crença religiosa nas supostas virtudes sociais da operação espontânea dos mecanismos da concorrência foi duramente abalada. As forças do mercado haviam lançado o mundo ao desastre. O New Deal, a experiência sueca, a política econômica do nazismo e até mesmo a breve e fracassada tentativa do Front Populaire na França (1936-38) representaram experimentos, sem dúvida distintos, mas que partiram todos de uma mesma premissa: a incapacidade de os mercados desregulados promoverem o bem-estar público. Esta premissa seria central na estruturação virtuosa que viria a se implantar na economia mundial (a terceira, ao longo do século XX) após a Segunda Guerra Mundial.

A Era de Ouro

A nova ordenação mundial do capitalismo teve por base algumas características centrais: em primeiro lugar, a afirmação da incontrastável liderança norte-americana. Quer do ponto de vista econômico, financeiro, tecnológico ou militar e, consequentemente, também do ponto de vista político, a supremacia dos Estados Unidos tornou-se inquestionável. As consequências econômicas da segunda conflagração mundial, a derrota militar (caso de Alemanha e Japão) e a eclosão da Guerra Fria converteram os demais países capitalistas em súditos fiéis da vontade imperial norte-americana. Apenas sob o manto protetor norte-americano é que os referidos países poderiam se reconstruir e colher os benefícios do crescimento.

O ponto decisivo é que a proposta estratégica dos EUA tinha como eixo central o crescimento e o fortalecimento do capitalismo em âmbito mundial. Este seria o antídoto mais eficaz para a “contenção do comunismo”. O interesse norte-americano implicava, assim, o desenvolvimento e a expansão das relações capitalistas na Europa Ocidental e no Japão. Por esta razão os inimigos da guerra prontamente se transformaram em aliados estratégicos do pós-guerra. Passada a sanha inicial das punições em relação aos derrotados, o objetivo primordial da política norte-americana (desenhada pelo Departamento de Estado) foi o de garantir o aprofundamento das relações capitalistas através da própria difusão de seu padrão manufatureiro. Isto redundou na expansão do investimento direto dos EUA na Europa e no Japão e, ao mesmo tempo, no fortalecimento dos grupos econômicos locais.

É importante destacar que, no pós-guerra, havia uma enorme campo para a mimetização do modelo norte-americano na Europa e no Japão. Tratava-se de regiões que não haviam ainda abraçado as modalidades de produção e distribuição em massa, sobretudo na área de bens de consumo durável. As migrações, ademais, nos dois casos haviam alterado o panorama demográfico (em 1948, por exemplo, havia cerca de oito milhões de refugiados na Alemanha do Oeste, e cerca de 6 milhões de repatriados no Japão) – o que, se, de um lado, representava um grave problema social a ser enfrentado, de outro, indicava a existência de um amplo reservatório de mão-de-obra passível de pronta utilização. O Plano Marshall, de sua parte, permitiu à Europa se libertar da aguda escassez de divisas que a sufocava. A Guerra da Coreia, na sequência, produziu estímulos consideráveis sobre as exportações japonesas e alemãs. Os gastos militares e o afluxo dos investimentos diretos dos Estados Unidos no exterior a partir da década de 1950, por fim, permitiram que os dólares norte-americanos provessem uma fonte permanente de liquidez para a economia mundial.

Mas não se tratava apenas da expansão capitalista pura e simples. Esta deveria ser feita de maneira minimamente ordenada, de modo que os ganhos de produção e de produtividade se traduzissem não só no crescimento do emprego, mas também na elevação do poder aquisitivo da população e na extensão da rede de proteção social. A experiência traumática dos anos 1920 e 1930, as agruras da guerra e a presença incômoda do gigante soviético indicavam que havia chegado a hora de o capitalismo mostrar sua face progressista. Para tanto, seria necessário que os cânones liberais fossem definitivamente revistos, que os preceitos keynesianos fossem considerados e que a participação do Estado na regulação da vida econômica dos países fosse consagrada de modo duradouro. O Big Bank e o Big Government se transformaram, assim, em características distintivas da expansão capitalista do pós-guerra.

O pleno emprego foi erigido em meta a ser perseguida. Este objetivo orientou a aplicação da política monetária e da política fiscal: as inflexões descendentes da atividade econômica deveriam ser corrigidas através da redução dos juros e da expansão dos gastos públicos. De vital importância, neste contexto, foi a sustentação da chamada “repressão financeira”: os sistemas nacionais de crédito foram direcionados para o financiamento da acumulação e do consumo, o que implicou a segmentação e a especialização das instituições financeiras (implantadas, no caso dos EUA, com o New Deal); a fixação de tetos para as taxas de captação e empréstimos; o controle sobre os fluxos internacionais de capitais de curto prazo; a supervisão estrita sobre as operações dos mercados de valores; e a imposição de requisitos prudenciais rígidos sobre a operação dos bancos. Em alguns casos, o próprio Estado – através do crédito público – se incumbiu de criar linhas especiais de fomento para os setores considerados prioritários. A volatilidade das paridades monetárias foi atenuada após as correções de 1949, de maneira que os juros e o câmbio se converteram em âncoras estáveis para a formação das expectativas. Foi, assim, um conjunto de circunstâncias (o apoio norte-americano, o espaço para a introdução de novos métodos produtivos, a ampla disponibilidade de força de trabalho, o direcionamento do crédito, o uso consciente das políticas fiscal e monetária, a ausência de turbulências monetárias e o comando sobre a política industrial e de comércio exterior) que operou no sentido da sustentação de níveis elevados de investimento e consumo na Europa Ocidental e no Japão do pós-guerra.

A consolidação do Estado de Bem-Estar Social (programas universais de saúde, educação e previdência; salário-mínimo; seguro-desemprego e regulamentação da jornada de trabalho, entre outros), por último, definiu um novo marco estrutural para as relações entre o capital e o trabalho, sobretudo na Europa Ocidental. A sorte dos indivíduos deixou de ser decidida, apenas, pelos azares do mercado. O Estado tornou-se responsável pela vida dos cidadãos, “do berço à sepultura” (from the cradle to the grave). Em um ambiente de taxas excepcionais de crescimento do produto (6,0% em média, ao ano, para a Alemanha, entre 1950 e 1973; 5,2% para a França; 5,6% para a Itália; e 9,2% para o Japão), não há dúvida de que a chamada “construção política” do pós-guerra foi plenamente exitosa.

O capitalismo desregulado

Tal construção, entretanto, não resistiu a seu próprio êxito. A Europa Ocidental e, sobretudo, o Japão, por mais de duas décadas conheceram taxas extraordinárias de crescimento. Os grandes capitais europeus e japoneses não só alcançaram o patamar do padrão norte-americano (catching up) como se converteram em concorrentes poderosos dos Estados Unidos em escala global. Após um longo período de expansão e internacionalização, era previsível que as oportunidades de investimento se estreitassem. O arrefecimento do ritmo de acumulação daí decorrente resultou na redução geral do ritmo de crescimento das economias capitalistas avançadas. Esta inflexão se fez acompanhar de distúrbios na ordem monetária internacional, que culminaram com o fim da conversibilidade em ouro da moeda norte-americana (1971), a desvalorização do dólar e o primeiro choque do petróleo (1973). A contração da taxa de crescimento, de sua parte, afetou as receitas fiscais e o emprego. Neste contexto de baixo crescimento, as grandes empresas – no intuito de proteger sua rentabilidade – se viram compelidas a rever a estrutura de custos (salários e matérias-primas) e a elevar o mark up, o que resultou na combinação perversa entre inflação e estagnação. A contração das receitas tributárias, por último, fez aparecer como “excessivos” os gastos associados à preservação do Estado de Bem-Estar Social.

O colapso do chamado “consenso keynesiano”, entretanto, foi acima de tudo político. Por cerca de um quarto de século as forças econômicas haviam sido encapsuladas pela política. As turbulências dos anos 1970 facilitaram a desmontagem do grande acordo do pós-guerra. A Guerra Fria de há muito já havia cristalizado e consolidado as zonas de influência relevantes dos Estados Unidos e da URSS por todo o mundo. Os conflitos porventura existentes eram rigorosa e intencionalmente circunscritos (Vietnã, por exemplo). Nos países capitalistas avançados, o “perigo vermelho” já não era senão uma remota e ultrapassada lembrança de final dos 1940 e início dos 1950. Não havia, em verdade, qualquer real ameaça à revisão das normas e referências que haviam orientado a expansão capitalista do pós-guerra. Em um quadro de baixo crescimento e elevada inflação, não foi difícil atribuir à intromissão “indevida e excessiva” do Estado a responsabilidade pelos percalços que o mundo capitalista atravessava. As dificuldades dos anos 1970 foram o combustível que alimentou a explosão liberal dos anos 1980. A eleição de Reagan em 1980 coroou essa transformação radical das convenções até então existentes. A queda do Muro de Berlim em 1989 e a dissolução da URSS em 1991, por fim, converteram o paradigma liberal em um credo eufórico. Os apóstolos da “nova ordem” asseguravam que o capitalismo revigorado – livre das amarras da política – poderia infundir uma onda definitiva de progresso e bem-estar para a humanidade. Os resultados, contudo, foram medíocres.

A elevação das taxas de juros pelo Fed, em outubro de 1979, no intuito de derrubar a espiral ascendente dos preços e reafirmar a centralidade do dólar no mundo, precipitou uma forte recessão que, em escala mundial, culminou com a crise da dívida externa dos países da periferia. Ela assegurou, ao mesmo tempo, a prevalência dos interesses financeiros na estrutura de poder norte-americana e, através da forte valorização do dólar, estimulou a deslocalização da grande empresa americana e promoveu a elevação das importações e do déficit em transações correntes, que saltou de 0,2% para 3,4% do PIB entre 1982-87. Estavam postas aí as sementes da forma pela qual a economia americana iria se articular com o exterior: transnacionalização produtiva para as áreas com abundância de mão-de-obra, posição devedora em transações correntes e financiamento do déficit externo através das aplicações dos países superavitários e dos recursos do resto do mundo para o exuberante mercado financeiro local.

Não é necessário, aqui, um exame detalhado das características da ordem neoliberal, a última estruturação do capitalismo no século XX. Alguns pontos, contudo, merecem destaque, até porque são importantes para avaliar os possíveis desdobramentos da atual crise. A desregulamentação e a importância crescente da chamada “finança direta” implicaram mudanças significativas na estrutura financeira do capitalismo. A liberalização e o desmonte do aparato regulador engendraram uma competição maior entre as instituições financeiras e uma assimetria maior no acesso ao crédito. As inovações financeiras se multiplicaram, e a expansão do endividamento público norte-americano (que saltou de 28,9% do PIB em 1981 para 47,3% em 2007) proporcionou uma ampla oferta de títulos de referência segura (safe haven) – patamar nocional mínimo de rentabilidade para as demais aplicações.

A mobilidade do capital se libertou dos grilhões regulatórios do regime anterior e a inflação de ativos – impulsionada pela crescente alavancagem – alcançou proporções inusitadas. A riqueza financeira cresceu exponencialmente, seu componente especulativo (com ações, bonds, moedas, imóveis, commodities etc.) assumiu uma dimensão absolutamente marcante, aumentando a volatilidade, a opacidade, os riscos e a instabilidade sistêmica. Os ciclos de inflação e deflação dos preços dos ativos tornaram-se recorrentes e os episódios de turbulência financeira se revelaram uma constante a partir de meados dos anos 1980, exigindo a intervenção sistemática dos bancos centrais, do Tesouro americano ou dos organismos multilaterais (1). Os países que aderiram incondicionalmente aos preceitos da “nova ordem”, sem estabelecer políticas consistentes de estímulo às exportações e de controle sobre as contas de capitais, assistiram ao aumento inevitável de sua vulnerabilidade externa.

A partir dos anos 1980, como se viu, os EUA passaram a apresentar déficits sistemáticos em suas transações correntes: de início, em uma trajetória ascendente (entre 1982-87) e, em seguida, em uma tendência decrescente (entre 1988-91). A partir de 1992 o país definitivamente se converteu em importador líquido de capitais: em 2007 o déficit em transações correntes se situou em níveis próximos de 7% do PIB. Esta foi uma transformação estrutural, que não guardou qualquer relação mais direta com os ciclos de valorização ou desvalorização da moeda americana (2). A grande empresa americana se projetou para o exterior exportando empregos e estímulos para outras regiões; parte não desprezível das relações comerciais externas do país passou a se referir às relações entre matrizes e filiais; o déficit comercial do país tornou-se eminentemente manufatureiro e o consumo das famílias – potencializado pelo crédito – pôde se valer da ampla oferta dos produtos baratos importados do exterior.

É essencial destacar que os constrangimentos fiscais e cambiais se apresentam, nos Estados Unidos, de maneira totalmente distinta: por deter a moeda universal, o país pode conviver com déficits e dívidas em expansão, desde que – é claro – haja credibilidade em relação à capacidade de o Tesouro norte-americano honrar seus compromissos. Tal credibilidade, em verdade, nunca faltou. Na medida em que os países superavitários e o resto do mundo continuaram dispostos a aplicar seus recursos nos títulos da dívida norte-americana, não houve percalços com o financiamento do déficit externo do país.

Os déficits comerciais norte-americanos e a relocalização do investimento produtivo em escala global – como seria de se prever – irradiaram estímulos generalizados, sobretudo na Ásia. Desde uma perspectiva estrutural, o fato mais importante a ser aí destacado é a criação do chamado “complexo sino-americano”. A China emergiu das transformações das últimas décadas como o grande exportador mundial de manufaturados e como um dos principais financiadores do déficit norte-americano.

Desde o ponto de vista da evolução do produto e da criação de empregos, os resultados da “era neoliberal” foram pífios, sobretudo se comparados com a performance da Golden Age. A partir da década de 1980 o crescimento se tornou reduzido, espasmódico e não sincronizado no interior do “núcleo” EUA/Japão/Alemanha. Em três oportunidades (1980-82; 1990-91 e 2000-2001) a economia norte-americana permaneceu virtualmente paralisada. Os casos do Japão e da Alemanha são ainda mais eloquentes: entre 1992-2003, apenas em dois anos a taxa de crescimento do PIB japonês foi superior a 2%. Na Alemanha, entre 1993-2005, somente em três anos a referida cifra foi ultrapassada. Como consequência, as economias capitalistas passaram a conviver com níveis de desemprego sensivelmente superiores. As assimetrias e desigualdades se aprofundaram por todo o mundo capitalista e a fragilização dos mecanismos de proteção social novamente expôs os indivíduos às vicissitudes do mercado.

Uma nova estruturação do capitalismo?

É no contexto da atual crise que deve ser formulada a questão referente à emergência de uma nova estruturação do capitalismo em âmbito mundial.

O primeiro aspecto a ser considerado diz respeito à posição dos EUA na ordem mundial. É, evidentemente, enganoso supor que a presente crise seja um sintoma eloquente do colapso do poder americano. Tal colapso, em verdade, não existe. O que existe é a gestação e o desenvolvimento de uma ordem multipolar, que antecede e não se confunde com o vendaval que açoitou o núcleo capitalista avançado a partir de setembro de 2008. Do ponto de vista estritamente econômico, o poder relativo dos EUA é visivelmente mais reduzido hoje do que o foi, por exemplo, na saída da Segunda Guerra Mundial. É evidente que se trata de uma comparação suspeita, posto o caráter absolutamente excepcional daquele momento histórico. Mas não se deve esquecer que, hoje, o PIB da União Europeia já é superior ao dos EUA. A força econômica do Japão tampouco pode ser desconsiderada. A China já é a segunda economia mundial e a reversão de suas perspectivas de crescimento parece bastante improvável. Da mesma forma, as possibilidades estruturais de expansão de algumas economias emergentes (o Brasil incluído) indicam que, tendencialmente, será cada vez mais reduzido o peso relativo dos EUA na criação das riquezas em escala mundial.

De outra parte, ainda no plano produtivo-econômico, não é possível subestimar a liderança norte-americana na geração da tecnologia de ponta, particularmente naquela associada à indústria militar, em estreita conexão com as demandas e o planejamento do Estado. O complexo industrial-militar não só confere aos EUA a primazia absoluta no desenvolvimento das armas, como é uma fonte permanente de descobertas passíveis de utilização civil e comercial. O mesmo pode ser dito das tecnologias de informação e do arsenal de inovações gestadas nos laboratórios das Universidades e das corporações norte-americanas. O fato de o país ter irremediavelmente abandonado a vanguarda na produção de automóveis, televisores, e em mais uma série de manufaturas, não significa que tenha perdido a posição estratégica (e, em alguns casos, até mesmo a liderança) na fronteira das inovações tecnológicas relevantes (3). Mais ainda, pela presença internacional de suas grandes empresas, por seu elevado coeficiente de importações, pela vastidão de seu mercado interno e por sua força financeira, os EUA são ainda capazes – e nada prevê que o deixarão de ser – de influenciar de modo relevante o ritmo da produção e dos preços da economia mundial.

A desvalorização do dólar tampouco parece um problema incontornável: como já se observou, os ciclos de valorização e desvalorização do dólar, desde o início da década de 1980, em nada comprometeram a primazia universal da moeda norte-americana. As perdas eventualmente decorrentes da aplicação nos títulos da dívida dos EUA, em um contexto de desvalorização do dólar, não devem ser confundidas com qualquer suposta desconfiança em relação à capacidade de o Tesouro norte-americano honrar seus compromissos. Apenas se tal suspeita existisse o dólar teria sua supremacia ameaçada e os EUA enfrentariam percalços no financiamento de seu déficit em transações correntes. É provável, entretanto, que se aprofunde a tendência à denominação dos contratos mundiais em moedas distintas do dólar, o que apenas remotamente configuraria a perda do benefício de emissão da moeda universal (seignorage) por parte dos EUA. Esta tendência é antes uma das expressões da multipolaridade acima referida do que a manifestação de um imaginado deslocamento do dólar do centro do sistema monetário internacional.

A força do dólar (apesar de sua desvalorização) remete, é claro, à própria força política dos EUA. A superioridade militar norte-americana é inquestionável; a capacidade de esse país influir nas decisões dos organismos multilaterais é notória; seu poderio econômico – mesmo diante da menor participação no PIB mundial – é determinante e ainda está longe de ter se exaurido. A definição da geopolítica mundial passa, portanto, necessária e prioritariamente, pela consideração dos interesses norte-americanos. Mas também aqui há uma clara diferença em relação ao imediato pós-guerra: naquele então EUA e URSS, as superpotências vitoriosas, dividiram o mundo em duas áreas de influência, onde exerceram – cada qual à sua maneira – o respectivo poder imperial. A dissolução da URSS em 1991 não representou, contudo, a emergência de uma ordem mundial unipolar comandada discricionariamente pelos EUA. A formação da União Europeia, o desenvolvimento impressionante da China e a própria importância estratégica da Rússia (detentora de poderoso arsenal nuclear e fonte de abundantes recursos energéticos) passaram a indicar, uma vez mais, a gestação de uma ordem multipolar.

As tendências acima referidas não guardam qualquer relação direta com as atribulações presentes da economia mundial. A atual crise explicitou, entretanto, um fato marcante: a perda de prestígio de Wall Street. A incapacidade de os mercados financeiros desregulamentados imporem uma ordenação estruturada e estável das finanças mundiais já vinha sendo demonstrada em uma sucessão de episódios críticos (anteriormente assinalados), desde meados dos anos 1980. A presente crise levou esta percepção ao paroxismo. Quantias astronômicas de recursos públicos já foram injetadas no sistema financeiro mundial, de modo a impedir sua bancarrota. O sistema financeiro, saliente-se, não é tão-somente um dos tantos setores de atividade de uma economia (notadamente, a capitalista). Ele representa, por qualquer ângulo que se considere, o seu setor nevrálgico. O seu controle e a sua dinâmica são cruciais na definição das possibilidades do investimento, da produção e do emprego. Não sem razão a China – a economia em maior expansão no mundo – exerce o comando central inalienável sobre o sistema bancário e sobre as decisões de crédito. No caso dos países capitalistas, já se observou, uma das características centrais da Golden Age foi exatamente a regulamentação do sistema financeiro, com a clara articulação entre os sistemas domésticos de crédito e as necessidades da acumulação.

A restauração do controle sobre o sistema financeiro é o ponto central de qualquer tentativa de reestruturação da ordem capitalista. O desastre de 2008 criou condições políticas favoráveis à retomada, nos países capitalistas, dos critérios que inspiraram a chamada repressão financeira do pós-guerra. Cabe às finanças prover os recursos destinados ao financiamento do investimento e do consumo. Esta verdade elementar ficou obscurecida pela construção da pirâmide invertida das securities e derivativos. É óbvio que a desregulamentação e a falta de supervisão dos mercados financeiros privados (sobretudo nos EUA) foram as responsáveis maiores pela eclosão da crise atual. Os mercados financeiros não são “eficientes”, no sentido da literatura laudatória produzida no passado recente. Se é verdade que a “financeirização da riqueza” é uma tendência imanente do capitalismo, não menos verdadeira é a conclusão de que a ela deve se contrapor a regulação pública.

Esta é a condição primeira para uma nova estruturação do capitalismo em escala mundial. Não por acaso as contribuições de Keynes, Beveridge e Misky, voltaram a despertar a atenção de lideranças intelectuais e políticas por todo o mundo. A grande questão é sempre a mesma: é possível “domesticar” o capitalismo? É possível direcioná-lo, racional e conscientemente, para a difusão generalizada dos frutos do progresso e para a promoção do bem comum? É possível reinventar a Golden Age?

As respostas somente poderão surgir no plano da política. Desde uma perspectiva mais ampla, é bastante difundida – em todo o mundo capitalista, inclusive nos EUA – a convicção de que o suposto da autorregulação dos mercados é um mito infundado e que a liberalização financeira não produziu senão o aprofundamento da instabilidade característica do capitalismo. Na mesma linha, a panaceia do Estado Mínimo é, hoje, uma página virada. Na prática, a presença do Estado – através do direcionamento do crédito, das encomendas públicas, da promoção das exportações ou da coordenação dos processos de centralização – é absolutamente central na orientação estratégica das economias nacionais. Esta é uma constatação que já difundiu por um amplo espectro das forças políticas em âmbito mundial, e que orienta, ademais, o exercício da política econômica em inúmeras nações.

Não se deve subestimar, contudo, a força e a capacidade de resistência dos interesses estabelecidos. Sua aposta é que, passada a atual tormenta, o “curso normal” das coisas poderá ser restabelecido. Por mais clara que seja a tendência à multipolaridade na ordem mundial, e por maior que seja o consenso em relação à falácia do credo liberal, nos EUA é que se travará a batalha decisiva pela nova regulamentação do sistema financeiro. A referida perda de prestígio de Wall Street somente se traduzirá em perda de poder efetivo quando a correlação política em âmbito internacional e nacional lhe for francamente desfavorável. Não parece ser este, ainda, o caso. A sociedade americana é reconhecidamente complexa e esquizofrênica. Basta observar as reações histéricas às propostas sensatas de Obama para a reforma do sistema de saúde norte-americano. Caso a lógica das finanças desregradas mais uma vez prevaleça, será difícil imaginar, em um horizonte próximo, uma nova estruturação do capitalismo em termos mundiais. A reinvenção da Golden Age permanecerá como um sonho nostálgico. Até o estouro da próxima bolha…

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Frederico Mazzucchelli é professor do Instituto de Economia da Unicamp

Notas

(1) Destaquem-se , entre tantos episódios, a crise das Saving & Loans em 1984, a crise da Bolsa de Nova Iorque em 1987, a crise dos imóveis e da Bolsa do Japão em 1990, a crise do sistema monetário europeu em 1992-93, a crise dos bonds e do México em 1994, a crise do Banco Behrings, a crise da Ásia em 1997, a crise do LTCM em outubro de 1998, a crise da Rússia em 1998, a crise do Brasil em 1998-99, a crise dotcom em 2000 e a crise da Argentina em 2001-2002.

(2) Grosso modo, o dólar permaneceu valorizado entre 1980-84; desvalorizado entre 1985-94; valorizado entre 1995-2001, e desvalorizado entre 2002-2008.

(3) Não se repete, aqui, o caso da Inglaterra, que já no alvorecer do século XX deixara de ser a workshop of the world. A Inglaterra permaneceu abraçada à indústria tradicional (têxteis, carvão, máquina a vapor, equipamentos mecânicos, construção naval) e às suas formas ultrapassadas de organização, e não colheu a tempo os frutos da II Revolução Industrial. Não é este, hoje, o caso dos EUA.

Publicado originalmente na revista Princípios