Darwin e a regressão americana
Progridem lá, regridem aqui. Cada semana um Estado americano dá mais uma paulada na educação, na ciência ou no verde. A última foi no Kentucky, que aprovou uma lei para “encorajar professores a debater as vantagens e desvantagens de teorias científicas como o evolucionismo, as origens da vida, o aquecimento global e a clonagem de células”.
Na realidade, a intenção é incluir as versões religiosas e conservadoras nos livros didáticos e forçar professores a ensinar a teoria do “desenho inteligente” (criacionismo) e questionar a clonagem de células-tronco e as supostas mazelas do aquecimento global.
O cenário atual já não é dos melhores. Entre conservadores, só 23% acham que o homem é responsável pelas mudanças climáticas. Na população em geral o número é um pouco melhor, 36%, mas fica muito abaixo dos outros países ricos.
Educação é um problema desta deformação e, de ano para ano, os americanos ficam mais para trás. No nível secundário estavam em primeiro lugar, hoje estão em 18º entre os países desenvolvidos. Um estudante de 15 anos no Canadá está quase dois anos na frente de um estudante americano da mesma idade.
A campanha anti-Darwin tinha sofrido uma derrota na Geórgia em 2005, quando um juiz decidiu que os livros didáticos não podiam atacar o evolucionismo porque contrariava a lei de separação entre estado e igreja.
Sempre há quem descubra um furo na lei e a solução, neste caso, foi não atacar só o evolucionismo de Darwin. Se empacotassem juntos o aquecimento global, o argumento da separação de igreja e estado perderia força. Deu certo .
Desde então, Kentucky, Oklahoma, Dakota do Sul e o poderoso Texas aprovaram leis que questionam o evolucionismo e outras teorias científicas no ensino secundário. Estas leis podem alterar livros didáticos e os currículos em todo país.
A campanha mais feroz obscurantista é contra Darwin, cujo bicentenário em 2009 passou meio às escondidas nos Estados Unidos, bem como os 150 anos da publicação de Origem das Espécies.
A BBC e o UK Film Council produziram um filme excepcional, Creation, The Real Story of Charles Darwin, que estreou no festival de Toronto ( Oh, meu Canadá!) – foi imediatamente comprado e distribuído quase no mundo inteiro, mas, nos Estados Unidos levou um tempão para surgir uma distribuidora: a Newmarket, a mesmo que distribuiu A Paixão de Cristo.
Creation ficou duas semanas em cartaz em Nova York só em dois minicinemas, recebeu ótimas críticas e sumiu de circulação, mas com certeza não vai entrar em extinção.
O filme é baseado no livro Annie’s Box, de Randal Keynes, tetraneto de Darwin e mostra o drama pessoal do cientista que teve dez filhos mas não se conformou com a morte da mais velha, Annie, aos dez anos, provavelmente de tuberculose.
A graça e a inteligência dela enriqueciam a vida do cientista numa casa vitoriana íntima, educada, feliz até aparecer a doença e a morte de Annie. A partir daí o filme lida com as angústias, as depressões de Darwin e as brigas com a mulher profundamente religiosa sobre a publicação da teoria que, segundo seu amigo e colega cientista, Thomas Huxley, “matou Deus”.
O filme, como a Origem das Espécies, não é uma crítica à religião nem questiona a existência de Deus, embora Darwin, pai ferido, não aceitasse a morte da filha como parte de qualquer plano divino. A igreja podia oferecer uma explicação, até uma causa, mas não uma razão.
Só 39% dos americanos acreditam na teoria da evolução e o número varia de 14% entre os que não terminaram o curso secundário a 74% entre os que tem PhD. Neste mundo de fanatismo muçulmano cresce aqui o fanatismo fundamentalista, mas ha exceções preciosas como a mais conhecida escritora católica americana, Mary Gordon.
Durante uma entrevista esta semana para o programa Milênio, perguntei a Mary como Darwin entrava na equação católica dela.
“Darwin esta certíssimo, um gênio que descobriu como e porque um inseto leva milhões de anos para desenvolver uma asinha. Esta igreja do Vaticano com homens vestidos de saias pretas é a farsa. Não precisamos que nos digam como devemos pensar”, disse ela.
A Mary Gordon é brilhante, mas este vasto e poderoso mundo religioso americano precisa de uma praga bíblica de vagalumes da espécie mary – ou canadense – para tirar o país da escuridão.