Ousadia necessária
Nestas circunstâncias, nada mais apropriado para países periféricos considerarem a possibilidade real e efetiva de assumirem algum grau de protagonismo até então impossibilitado pela divisão hierárquica do poder mundial. O Brasil, em especial, mostrou condições de aproveitar oportunidades geradas durantes momentos de crise e reestruturação capitalista mundial.
Na Grande Depressão capitalista entre 1873 – 1896, por exemplo, observa-se a realização de um conjunto de reformas reivindicadas por diversas décadas. Destacam-se, por exemplo, a reforma eleitoral de 1881 que aboliu o princípio da democracia censitária (voto masculino para maiores de 21 anos e alfabetizados), a reforma trabalhista de 1888 que aboliu o trabalho escravo, a reforma política de 1889 que implementou a República e a reforma jurídica estabelecida pela Constituição de 1891. Dado conservadorismo da oligarquia rural, os esforços reformistas foram contidos frente o ciclo de prosperidade da economia primário-exportadora, sobretudo do café. O anacronismo da República Velha acomodado pelo liberalismo fez postergar por mais tempo a longa transição do agrarismo para a sociedade urbano-industrial.
Com a Grande Depressão iniciada em 1929, o Brasil, novamente experimentou uma onda de reformas inéditas até então. Pelas mãos da ampla maioria política liderada por Getúlio Vargas, o país avançou significativamente em direção do desenvolvimento industrial, acompanhado de importantes conquistas em termos de políticas de bem estar social, especialmente para a parcela da sociedade urbana.
O Brasil volta a ter condições de protagonizar um novo salto civilizacional em plena vigência do regime democrático sem paralelo em toda a sua história nacional. Para isso, contudo, o país não pode se perder em aspectos marginais, especialmente quando se trata de convergir para a consolidação de uma nova maioria política que seja capaz de escrever a trajetória brasileira em novas bases econômicas, sociais e ambientais. Dois aspectos dessa perspectiva são tratados: a relação do Brasil como o mundo e a reconfiguração econômico-política interna. Antes disso, todavia, considera-se o movimento maior de reestruturação no centro do capitalismo mundial.
1. Crise e nova fase da acumulação capitalista
A crise mundial nesta primeira década do século 21 poderá ser identificada no futuro próximo por ter promovido as bases de uma nova fase de desenvolvimento capitalista. Isso porque a crise atual se apresenta como a primeira a se manifestar no contexto do capital globalizado, uma vez que as depressões anteriores (1873 e 1929) se deram num mundo ainda constituído por colônias ou pela presença de experiências nacionais de economias centralmente planejadas.
A nova fase do desenvolvimento do capital tende a depender diretamente da retomada do capitalismo reorganizado, após quase três longas décadas de hegemonia neoliberal. Os quatro pilares do pensamento único (equilíbrio de poder nos Estados Unidos, sistema financeiro internacional fundado nos derivativos, Estado mínimo e mercados desregulados) tornaram-se cada vez mais desacreditados. A reorganização capitalista mundial pós-crise deve apoiar-se numa nova estrutura de funcionamento. O tripé da expansão do capital consiste na alteração da partilha do mundo em função do policentrismo, na era da associação direta do ultramonopolista privado com o Estado supranacional e na revolução da base técnico-científica da produção e consumo sustentável ambientalmente, conforme sinteticamente apresentado a seguir.
– Nova partilha do mundo
Com os sinais de fracasso do equilíbrio do mundo hegemonizado pelos Estados Unidos, após a queda do muro de Berlim, tornam-se cada vez mais evidente o movimento de deslocamento relativo do centro dinâmico. Diferentemente da experiência anterior de transição de hegemonia da Inglaterra para os Estados Unidos, gradualmente consagrada a partir da crise de 1929, nota-se a possibilidade da atual ser conferida ao mundo pós-crise com características policentrista.
Nos dias de hoje, os controversos sinais de decadência dos Estados Unidos parecem ser mais relativos do que absolutos, tendo em vista a desproporção econômica, tecnológica e militar ainda existente em relação ao resto do mundo. Apesar disso, observa-se que no contexto de emergência da crise no centro do capitalismo mundial ganham maiores dimensões os espaço mundiais para a construção de uma nova polaridade no sul da América Latina, para além dos Estados Unidos, União Européia e Ásia.
No âmbito sul-americano, as iniciativas de coordenação supra-regional remontam ainda à instituição do Mercosul, mas que tem anho maior impulso a partir da recente articulação supranacional em torno da Unasul. Isso tudo, entretanto, não pode representar apenas iniciativas de vontades políticas, pois passa a depender cada vez mais de decisões governamentais mais efetivas, por intermédio de políticas publicas que procurem referendar o protagonismo de um novo centro regional de desenvolvimento.
Essa possibilidade real de partilha do mundo em novas centralidades regionais implica, ademais de coordenação de governos em torno de Estados supranacionais, compreensão positiva por parte dos Estados Unidos. Do contrário, cabe resgatar o fato de a fase de decadência inglesa desde a Primeira Grande Guerra Mundial ter sido demarcada por grandes disputas econômica e, sobretudo, militar entre as duas principais potencias emergentes da época: Estados Unidos e Alemanha.
– Inédita relação do Estado com a ultramonopolização privada
O modelo de globalização neoliberal produziu, entre outras coisas, uma inédita era do poder monopolista privado. Até antes da crise mundial, não eram mais do que 500 corporações transnacionais com faturamento anual equivalente a quase a metade do Produto Interno Bruto mundial.
No contexto pós-crise, poderá ser um contingente ainda menor de corporações transnacionais a governar qualquer atividade econômica, o que resultaria na ultramonopolização privada sem paralelo histórico. Essa realidade possível faz com que os países deixem de ter empresas para que empresas passem a ter países.
A ruína da crença neoliberal explicitada pela crise atual tornou profundamente desacreditada tanto a vitalidade dos mercados desregulados como a suficiência do sistema financeiro internacional assentado dos derivativos. Por isso, espera-se que algo de novo deva surgir das práticas de socialismo dos ricos praticadas por enormes ajudas governamentais às corporações transnacionais (bancos e empresas não financeiras).
A maior interpenetração governamental nos altos negócios do ultramonopolista privado global deve dar lugar ao fortalecimento de Estados supranacionais capaz de melhorar as condições gerais de produção dos mercados (regulação da competição intercapitalista e apoio ao financiamento das grandes empresas). A viabilização do capital ultramonopolista global dependerá crescentemente o fortalecimento do Estado para além do espaço nacional.
Diante da maior instabilidade do capitalismo submetido a poucas e gigantescas corporações transnacionais, muito grandes para quebrarem pela lógica própria do mercado, amplia-se o papel do Estado em relação à acumulação de capital no mundo. A coordenação entre os Estados supranacionais poderá permitir a minimização das crises frente à regulação da competição intercapitalista. Todavia, o estreitamento da relação cada vez mais orgânica do Estado com o processo de acumulação privada do capital global pode reverter-se no aprofundamento da competição entre os Estados nacionais.
– Revolução na base técnico-científica e produção ambientalmente sustentável
O terceiro elemento do novo tripé do possível capitalismo reorganizado encontra-se associada à mais rápida internalização da revolução técnico-científica no processo de produção e consumo. Pelo conhecimento produzido até o momento acerca da insustentável degradação ambiental gerada pelas atuais práticas de produção e consumo, sabe-se que a saída da crise global não deveria se dar por meio da reprodução do passado.
Nesse sentido, o padrão de produção e consumo precisa ser urgentemente reestruturado. Para isso, não apenas a matriz energética mundial está sendo alterada como as alternativas de sustentabilidade ambiental tornam-se cada vez mais viáveis do ponto de vista econômico (lucrativas). Assim, as penalizações governamentais às atividades de produção e consumo degradantes ambientalmente devem crescer e serem politicamente aceitas, permitindo que um conjunto de inovações técnico-científicas possa fazer emergir um novo modelo de produção e consumo menos estimuladoras das mudanças climáticas.
Da mesma forma, o avanço da sociedade pós-industrial, cada vez mais apoiada no trabalho imaterial tende a viabilizar uma profunda reorganização dos espaços urbanos, frutos das exigências do exercício do trabalho em locais apropriados (fazenda para a agricultura e pecuária, fabrica e indústria para a manufatura, entre outros). Pelo trabalho imaterial, a atividade laboral pode ser exercida em qualquer local, não mais em locais previamente determinados e apropriados para isso, bem como em qualquer horário.
Com isso, a reorganização social em comunidades territoriais torna-se possível, o que pode evitar o comprometimento temporal cotidiano com os deslocamentos da casa para o trabalho e vice-versa, entre outras tarefas comuns. Nesses termos, o fundo público precisará ser fortalecido em cima da tributação de atividades de produção e consumo ambientalmente degradantes como nas novas formas de riqueza vinculadas à expropriação do trabalho imaterial.
Somente com a maior ampliação do fundo público apresenta-se possível postergar o ingresso no mercado de trabalho a partir dos 25 anos, com educação para a vida toda e jornada laboral de até 12 horas por semana. Tudo isso, contudo, pressupõe maioria política necessária para tornar o que possível em realidade. Do contrário, o excedente de força de trabalho cresce, com atividades cada vez mais precárias e empobrecedoras em meio à acumulação de nova riqueza global.
O nosso país encontrará no futuro próximo a possibilidade concreta de dar o exemplo ao mundo, desde que, não haja grande ruptura de ordem política, de como se constrói uma nova maneira de reorganizar a sociedade com mais justiça e oportunidades de uma melhor qualidade de vida e distribuição da riqueza entre os membros da sociedade.
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Márcio Pochmann é professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
Fonte: Blog do Zé Dirceu