Perspectivas revolucionárias no século XXI
Em 1938 Trotsky fundava a Quarta internacional a partir deste pressuposto: assim como tinha acontecido no decurso do primeiro conflito mundial, também no decurso do segundo conflito mundial que já se preparava ter-se-ia verificado a transformação da guerra imperialista em guerra civil revolucionária e daí teria derivado uma onda revolucionária ainda mais gigantesca do que aquela que tinha marcado o nascimento da Rússia soviética.
De facto, uma onda revolucionária abalava o planeta inteiro mas desenvolvia-se segundo modalidades diversas e contrastantes, a partir de guerras de resistência e libertação nacional contra o imperialismo: isto não era válido só para a União Soviética empenhada na Grande guerra patriótica ou para a China, ou para a Checoslováquia, a Jugoslávia, a Albânia; mas também para países capitalistas mais ou menos avançados como, a Grécia, a Itália, a França, a revolução desenvolvia-se como guerra de libertação nacional dirigida pelo partido comunista. Na realidade, contrariamente às previsões de Trotsky, o nascimento da Rússia soviética e o impulso dado por ela ao movimento anticolonialista e, na vertente oposta, o surgir do Terceiro Reich empenhado em retomar e radicalizar a tradição colonial, tornando-a válida na própria Europa oriental, em síntese as próprias novidades surgidas a partir de Outubro de 1917 tornavam impossível a repetição do cenário da primeira guerra mundial.
Em 1952, um ano antes da sua morte, Stalin fazia ele também uma previsão: derrotados em 1945, a Alemanha e o Japão não suportariam para sempre a hegemonia dos Estados Unidos; rebentariam novas e violentas contradições inter-imperialistas, e esta teria sido a oportunidade para um novo e talvez decisivo alargamento do campo socialista. Isto é, verificar-se-ia um cenário semelhante ao da primeira e sobretudo da segunda guerra mundial, a qual, antes de envolver a União Soviética, tinha visto confrontarem-se só países capitalistas. Como é sabido, as coisas foram para uma direcção completamente oposta: a força do campo socialista e o medo da sua amplitude contribuíram para o compactamento do imperialismo, ao passo que foi o próprio campo socialista que, não conseguindo resolver o novo problema das relações entre países socialistas, conheceu contradições ásperas e até violentas no seu interior e por fim foi ao encontro da sua dissolução.
Por fim. Em 1965 Lin Piao fazia de Pequim uma terceira previsão: a dialéctica que tinha promovido a vitória da revolução na China, isto é o cerco da cidade a partir do campo, manifestar-se-ia também a nível planetário. A vitória na Ásia, na África, na América Latina das revoluções anticoloniais dirigidas por partidos comunistas cercaria a metrópole capitalista e imperialista, até que esta acabasse por desabar. Na realidade, em 1928 Mao tinha esclarecido que o que tinha tornado possível a construção do «poder vermelho» nos campos chineses tinham sido «as contradições e a luta entre os Estados imperialistas». A própria vitória da revolução chinesa e de outras revoluções anticoloniais levava os países capitalistas a pôr de parte em certa medida as suas rivalidades e a juntarem-se sob a égide dos Estados Unidos. Na realidade, entre 1989 e 1991 não era o campo socialista que cercava a metrópole capitalista e imperialista, era pelo contrário a metrópole capitalista e imperialista a cercar países como Cuba, o Vietname e a China.
Em conclusão, de todas as vezes que se abandonou ao jogo das analogias, o movimento comunista sofreu amargas decepções ou verdadeiras catástrofes. É necessário, pelo contrário, citando Lenin, proceder a uma «análise concreta da situação concreta». É preciso inspirarmo-nos nesta lição quando nos interrogamos acerca das perspectivas da revolução no século XXI. A situação mudou radicalmente em comparação com o passado. Depois do falhanço do projecto hitleriano de retomar e radicalizar a tradição colonial, considerando a Europa oriental o Far West para colonizar e germanizar; depois de Stalingrado e da derrota inflingida ao nazifascismo, imediatamente a seguir à segunda guerra mundial desenvolvia-se uma revolução anticolonialista de dimensões planetárias.
Não eram só as colónias propriamente ditas que eram sacudidas. Em países como os Estados Unidos e a África do sul os povos de origem colonial revoltavam-se contra o Estado racial e o regime de white supremacy. Ainda antes de encontrar uma expressão consciente nos partidos e nas forças de esquerda, o internacionalismo existia nos factos: ele abrangia os povos coloniais e de origem colonial, os países socialistas que apoiavam a revolução anticolonialista e anti-racista, as massas populares do Ocidente que se tinham libertado do jugo do fascismo e que por vezes, por exemplo na Itália, tinham conseguido introduzir na própria Constituição a recusa da guerra e da política da guerra e da hegemonia.
1. A revolução anticolonial ontem e hoje
Pois bem, a primeira pergunta que temos que nos fazer é esta: que é feito hoje da gigantesca revolução anticolonial estimulada pela revolução de Outubro e acelerada por Stalingrado? Não, essa revolução não desapareceu. Numa realidade como a palestiniana o colonialismo continua a existir na sua forma clássica, como demonstram a ininterrupta expansão das colónias israelitas nos territórios ocupados, a consequente expropriação, deportação e marginalização do povo palestiniano e a difusão de um regime de apartheid. E, contudo, apesar da hiperpotência e do uso barbárico da máquina de guerra israelita, apoiada aliás pelos Estados Unidos e pela própria União Europeia, apesar de tudo isto, o povo palestiniano resiste heroicamente.
Noutras partes do mundo a luta entre colonialismo e anticolonialismo manifesta-se de modo diferente. No continente americano o século XX começava com uma declaração significativa de Theodore Roosevelt: à «sociedade civilizada» no seu todo – ele afirmava – pertencia um «poder de polícia internacional», e esse poder os Estados Unidos iriam exercê-lo na América Latina. A partir desta retoma e radicalização da doutrina Monroe, não se contam as intervenções militares levadas a cabo pela república norte americana em prejuízo dos seus vizinhos, considerados estranhos ao mundo civil e comparados a bárbaros necessitados de tutela imperial. Contudo, a doutrina Monroe caiu radicalmente em crise a partir de uma revolução da qual nestes dias se celebrou o quinquagésimo aniversário. Durante o meio século decorrido entretanto, recorreu-se a todo e qualquer meio para isolar, difamar, sufocar, liquidar a revolução cubana, mas hoje a sua força e o seu significado internacional são confirmados pelas mudanças em curso em países como a Venezuela, a Bolívia, o Equador, o Brasil, a Nicarágua, o Paraguai. Com modalidades sempre muito diferentes, a revolução anticolonialista e anti-imperialista está em marcha na América Latina.
No decorrer do século XX a revolução anticolonialista rebentou também na Ásia e na África. E hoje? Para fazer o ponto da situação, é preciso partir de uma observação de Frantz Fanon, o grande teórico da revolução argelina. Quando se sentem forçadas a capitular – escreve Fanon em 1961 – as potências coloniais parecem dizer aos revolucionários: «Já que querem a independência, aqui a têm e morram»; desta forma «a apoteose da independência transforma-se na maldição da independência». É a este novo desafio, de carácter já não militar, que é preciso saber responder: «são precisos capitais, técnicos, engenheiros, mecânicos, etc.». Do outro canto, já em 1949 ainda antes da conquista do poder, Mao tinha insistido na importância da edificação económica: Washington deseja que a China se «reduza a viver da farinha americana», acabando assim por «tornar-se numa colónia americana». E portanto, sem a vitória na luta pela produção, agrícola e industrial, a vitória militar estava destinada a revelar-se frágil e inconclusiva. Por outras palavras, Mao e Fanon tinham previsto de qualquer modo por um lado o entrave de muitos países africanos que não conseguiram passar da fase militar à fase económica da revolução, por outro a reviravolta verificada em revoluções anticoloniais como a chinesa e a vietnamita.
2. O nascimento do Terceiro Mundo
Este é um ponto crucial sobre o qual temos que nos debruçar. Perguntemo-nos de que modo se formou o terceiro mundo, o espaço tradicionalmente oprimido e saqueado pelo Ocidente colonialista e imperialista. Com uma longa história às costas, que a tinha visto durante séculos e milénios em posição eminente no desenvolvimento da civilização humana, ainda em 1820 a China exibia um PIB que constituía 32,4% do Produto interno bruto mundial; em 1949 no momento da sua fundação, a República Popular da China tinha-se tornado o país mais pobre, ou entre os mais pobres do globo. Não muito diferente é a história da Índia que, também em 1820, contribuía com 15,7% do PIB mundial, antes de cair também ela numa assustadora miséria. Isto é, não podemos compreender o processo de formação do Terceiro Mundo abstraindo-nos da política de saque e de desindustrialização conduzida pelas potências colonialistas e imperialistas.
Mas ao processo de formação do terceiro mundo contribui também uma outra circunstância. Para compreendê-la temos de referir uma revolução que no final do século XVIII surgiu num país que hoje se chama Haiti mas que na altura tinha o nome de Santo Domingo.
É uma revolução dos escravos negros que partia ao mesmo tempo as correntes do domínio colonial e da instituição da escravidão: nascia assim no continente americano o primeiro país liberto do flagelo da escravidão. A dirigir este processo de emancipação estava um jacobino negro, Toussaint Louverture, uma grande personalidade histórica geralmente ignorada nos nossos livros de história mas que numa sociedade democrática deveria figurar obrigatoriamente até nos livros de educação cívica. Pois bem, depois da vitória militar Toussaint Louverture colocava o problema da edificação económica: com essa finalidade queria recorrer também aos técnicos e aos especialistas brancos provenientes das filas do inimigo derrotado; por este motivo foi acusado ou suspeito de querer restaurar o domínio branco e de trair assim a revolução. Surgia daí uma tragédia que ainda hoje nos deve fazer reflectir. Santo Domingo era uma ilha muito rica, graças ao açúcar produzido em plantações de grandes dimensões e de notável eficiência e largamente exportado.
Claro, a riqueza produzida pelos escravos era metida ao bolso pelos seus patrões. Era possível para os antigos escravos fazer funcionar a seu proveito a economia desenvolvida por eles herdada graças à revolução? Desgraçadamente, a seguir à derrota da linha de Toussaint Louverture, em Santo Domingo/Haiti subsistia uma retrógrada agricultura de subsistência. A ilha conhecia assim a miséria generalizada e é ainda agora um dos países mais pobres do globo. Concluindo, a formar o Terceiro Mundo estão também os países que não conseguem passar da fase militar à económica da revolução, os países nos quais por uma razão ou por outra a revolução anticolonial conhece a derrota e o falhanço.
3. O imperialismo e a condenação à inanição dos povos rebeldes
Não se compreenderia nada da luta entre colonialismo e anticolonialismo, entre imperialismo e anti-imperialismo, se não se tivesse em consideração que esta é travada também no plano económico. Logo depois da revolução conduzida por Toussaint Louverture, Thomas Jefferson declarava querer reduzir à «inanição» o país que tinha tido o descaramento de abolir a escravatura. Esta mesma situação aconteceu no século XX. Já logo a seguir a Outubro de 1917, Herbert Hoover, naquela altura alto expoente da administração Wilson e mais tarde presidente dos Usa, propagava de forma explícita a ameaça da «fome absoluta» e da «morte por inanição» não só contra a Rússia soviética mas também contra todos os povos inclinados a deixar-se contagiar pela revolução bolchevique. É uma política que continua ainda hoje: como é sabido o imperialismo procura asfixiar economicamente Cuba reduzindo-a possivelmente à condição de Gaza, onde os opressores podem exercitar o seu poder de vida e de morte, mais do que com os bombardeamentos terroristas, com o controlo dos recursos vitais. No que diz respeito à República Popular da China, no princípio da década de 60 um colaborador da administração Kennedy, Walt W. Rostow, gabava-se do facto de os Estados Unidos terem conseguido adiar por «dezenas de anos» o desenvolvimento económico do grande país asiático! E contra este ainda hoje Washington conduz uma política de embargo tecnológico, política esta que até à última foi posta em acção em prejuízo da União Soviética.
Por isso a solidariedade internacionalista deve dirigir-se também aos países que conseguiram passar da fase militar à fase mais propriamente económica da revolução anticolonialista e anti-imperialista. Os líderes latino americanos estão a par da importância desta passagem de fase. Para dar só um exemplo, há algum tempo o vice-presidente da Bolívia lançou uma palavra de ordem muito significativa: «Industrialização ou morte!». Trata-se aos olhos de Alvaro Garcia Linera de concretizar «o desmoronamento progressivo da dependência económica colonial». Nesta perspectiva torna-se importante a crescente troca comercial e tecnológica com um país como a China: isto torna menos grave a ameaça de asfixia económica alardeada pelo imperialismo, tornando assim mais ágil a luta contra a doutrina Monroe também no plano económico.
Portanto já se verifica uma substancial convergência entre os países e os povos protagonistas da revolução anticolonialista e anti-imperialista. É uma frente internacionalista que tende a crescer.
Depois da vitória conseguida na guerra-fria, servindo-se também da cumplicidade da União europeia, os Estados Unidos transformaram em semicolónias países como a Albânia e territórios como o Kossovo. É a confirmação da tese por mim enunciada, segundo a qual, a formar o terceiro mundo e o espaço colonial ou semicolonial do qual o capitalismo necessita, estão por um lado a iniciativa directa do imperialismo e por outro o falhanço ou a derrota de determinadas revoluções, seja por causas internas seja mais uma vez por uma intervenção do imperialismo. Não se deve esquecer que a própria Rússia, depois da restauração do capitalismo, estava a tornar-se ou corria o risco de se tornar numa semicolónia. No entanto também este país mostra uma resistência ao louco projecto de Washington de impor o seu domínio a nível mundial.
Infelizmente, a esta frente anticolonialista e anti-imperialista que se podia constituir falta ainda uma componente essencial: não conta ainda com a plena solidariedade dos movimentos de oposição que contudo se manifestam no âmbito dos países capitalistas avançados. Como é que se explica isto? Não se trata de um problema novo. Na Segunda Internacional não faltavam certamente na Europa vozes que justificavam o expansionismo colonial em nome da exportação da civilização. Hoje a ideologia dominante prefere falar de direitos humanos e de luta contra o autoritarismo, o totalitarismo, o fundamentalismo, mas a essência colonialista ou neocolonialista deste comportamento não muda.
4. O imperialismo como principal inimigo dos direitos humanos
Para nos apercebermos disto, não é preciso invocar Marx ou Lenine. Quero aqui partir do discurso proferido a 6 de Janeiro de 1941 por Franklin Delano Roosevelt. Ao convidar a nunca perder de vista a «supremacia dos direitos humanos», junto com as tradicionais liberdades da tradição liberal (liberdade de palavra e de expressão bem como religiosa) o presidente estadunidense teoriza também a «libertação da necessidade» (freedom from want) e a «libertação do medo» (freedom from fear). Concentremo-nos inicialmente nestas últimas duas. Pois bem, não só uma parte consistente da população dos Estados Unidos é privada até de assistência sanitária, como as administrações que foram sucedendo nos últimos tempos em Washington se empenharam numa espécie de cruzada planetária para anular o Estado social também naqueles países em que em maior ou menor medida está ainda presente. No momento em que teoriza a «libertação do medo», F. D. Roosevelt tem como alvo a Alemanha nazi, que ameaçava invadir os países fronteiriços e vizinhos.
Hoje os Estados Unidos estão em primeiro lugar a fazer pesar em cada canto do mundo o medo e a angústia dos bombardeamentos, das destruições em larga escala e até da aniquilação nuclear. Com a finalidade de começar a concretizar a «libertação do medo», em polémica indirecta contra o Terceiro Reich, F. D. Roosevelt invocava a «redução do armamento». Hoje, os Estados Unidos sozinhos gastam em armamento tanto quanto o resto do mundo inteiro. Isto é, ao menos no que diz respeito a estes fundamentais «direitos humanos» que são a «libertação da necessidade» e a «libertação do medo» o inimigo principal é o próprio país que se ergue como juiz inquestionável da causa dos direitos humanos.
Se nos concentrarmos também nos direitos clássicos da tradição liberal o resultado não é muito diferente. Quem, na primavera de 1999, assassinou, bombardeando-os do alto, os jornalistas televisivos jugoslavos culpados de não terem a opinião dos vértices e dos ideólogos da NATO e de teimar em condenar a agressão ao país? E quantos são os jornalistas «acidentalmente» mortos pelo fogo das forças de ocupação no Iraque ou na Palestina? Gozam dos «direitos universais de palavra e de associação» os habitantes de Gaza que, depois de ter votado no Hamas no decurso de eleições livres, se viram condenados primeiro à asfixia económica e ao bloqueio e sucessivamente a bombardeamentos selvagens e à invasão? E gozaram de todos estes direitos os detidos de Abu Ghraib e Guantânamo? O que é feito da rule of law, do governo da lei para as pessoas mortas pelas «execuções extrajudiciais» (com amplos «danos colaterais») soberanamente decidida pelo governo de Washington na região paquistã fronteiriça com o Afeganistão, ou pelo governo de Telavive (apoiado pelo de Washington) na Palestina? Por fim: os árabes e os islâmicos que nos Usa ousam contribuir para uma subscrição a favor da população de Gaza e de Hamas correm o risco de ser perseguidos e condenados enquanto «terroristas». Para citar Marx, «a profunda hipocrisia, a intrínseca barbárie da civilização burguesa estão à nossa frente, logo que viramos os olhos das grandes metrópoles, onde tomam formas respeitáveis, para as colónias» ou para os povos de origem colonial colocados nessa mesma metrópole. Neste caso, a «hipocrisia» e a «barbárie» burguesas «andam por aí a descoberto». Como nos confirmou a sorte reservada a Gaza.
Isto não significa negar que existem problemas acerca do respeito dos direitos humanos nos países e povos empenhados na revolução anticolonialista e anti-imperialista e nos próprios países que se identificam com o socialismo. Todavia, basta ler autores como Madison ou Hamilton, para saber que o governo da lei, a rule of law não pode florescer onde está presente uma ameaça à segurança nacional. Escandalizar-se pela ausência de democracia nos países submetidos a um cerco mais ou menos premente no plano diplomático, económico e militar é expressão de loucura ou de cinismo político. Por outras palavras, não existe verdadeira democracia sem democracia nas relações internacionais, e o principal inimigo da democracia nas relações internacionais é constituído por um país que, pela boca de Clinton ou de Bush sr. e jr. e de tantos outros presidentes, pretende ser a nação eleita por Deus com a missão de guiar e de dominar o mundo pela eternidade.
Também o actual «imperialismo dos direitos humanos», como justamente foi definido, não é algo totalmente novo. No momento em que, depois de uma heróica revolução, nos princípios do século XX, Cuba conquista a independência da Espanha, Washington obriga o país formalmente independente a introduzir na sua constituição a chamada emenda Platt, em que se reconhece aos Estados Unidos o direito de intervir militarmente na ilha, de cada vez que nela considerassem ameaçado o pleno gozo da propriedade e da liberdade. É como se hoje os aspirantes a donos do mundo pretendessem fazer valer a emenda Platt a nível planetário! É o «imperialismo dos direitos humanos» a enfraquecer a esquerda nos países capitalistas avançados.
5.Um novo bloco histórico a nível internacional
Agem também outros factores. Na Europa e nos Estados Unidos vivem núcleos importantes de imigrantes provenientes do Médio Oriente e do mundo árabe e islâmico. Estes, que muitas vezes deixaram a sua família para trás, sofrem com uma intensidade particular a tragédia que continua a pesar mais do que nunca no povo palestiniano. Eles estão na linha da frente a manifestar-se contra o colonialismo e imperialismo, contra Israel e os Estados Unidos, e é também por isto, mais do que pela lógica interna do capitalismo, que estes imigrantes são explorados de forma peculiar, marginalizados e frequentemente – de qualquer forma nos anos da administração Bush – presos arbitrariamente para serem torturados nas prisões secretas da CIA. Empenha-se suficientemente a esquerda ocidental para procurar estabelecer um laço forte e permanente com estas comunidades? Querer negligenciá-las seria como se, nos Estados Unidos de supremacia branca o partido comunista tivesse conduzido a sua agitação abstraindo-se dos negros.
Não foi assim. Mesmo tendo sido gravemente enfraquecidos antes pelo terror maccartista e depois pela crise do campo socialista, durante muito tempo os comunistas americanos souberam lutar, arriscando a liberdade e também a vida, contra as discriminações, as humilhações, a opressão, os linchamentos provocados pelo regime da white supremacy.
Os niggers dos quais falavam com desprezo os racistas estadunidenses são hoje representados no Ocidente pelos imigrantes árabes e islâmicos; e estes não se limitam a reivindicar a «libertação da necessidade»; não querem por serem pobres apelar a uma compaixão paternalísta. Em primeiro lugar eles reivindicam – para usar uma linguagem filosófica – o reconhecimento; eles exigem ser reconhecidos na sua dignidade humana, na sua cultura, nas suas reivindicações nacionais, começando pela reivindicação nacional do povo palestiniano, o povo mártir por excelência dos nossos dias!
Só abolindo completamente a influência do «imperialismo dos direitos humanos» e da islamofobia (que nos nossos dias tomou o lugar do tradicional flagelo racista), é só agindo desta forma que o movimento de oposição presente nos países capitalistas avançados poderá dar um contributo real à luta contra a reacção.
Encontramo-nos hoje numa situação, que por um lado tem perspectivas positivas e encorajadoras: 1. na luta anti-imperialista reaparecem povos e civilizações que tinham sido aniquiladas pelo colonialismo: pensemos no papel crescente dos índios na América Latina; 2. o prodigioso desenvolvimento de um país como a China quebra o monopólio tecnológico pertencente ao imperialismo. Aquela que os historiadores chamam a «grande diversificação», pela qual num dado momento se abriu um abismo entre países capitalistas avançados e Terceiro Mundo, esta «great divergence» tende a reduzir-se; 3. a tomada de consciência da crise do capitalismo volta a dar balanço à perspectiva do socialismo para além do Terceiro Mundo, também nos países capitalistas avançados.
Por outro lado vemos o país modelo do capitalismo submerso numa profunda crise económica e cada vez mais desacreditado a nível internacional; mas ao mesmo tempo ele continua a agarrar-se à pretensão de ser o povo escolhido por Deus e a aumentar freneticamente o seu monstruoso aparato de guerra e a espalhar a sua rede de bases militares em cada canto do mundo. Isto tudo não promete nada de bom. É a presença simultânea de perspectivas prometedoras e de ameaças terríveis a tornar urgente a construção a nível internacional de um novo bloco histórico, para utilizar a linguagem de Gramsci. Não é uma tarefa fácil porque se trata de soldar entre si forças colocadas em contextos histórico-culturais e situações políticas e geopolíticas muito diferentes. E este novo bloco histórico, o único que pode dar um novo balanço ao internacionalismo, só poderá ser constituído se os partidos comunistas, também os dos países capitalistas avançados, por um lado recuperarem o orgulho da sua própria história, por outro reforçarem a sua capacidade de análise concreta da situação concreta.
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Referências bibliográficas
– Frantz Fanon, Les damnés de la terre (1961), tr. it., de Carlo Cignetti, I dannati della terra, pref. de Jean-Paul Sartre, Einaudi, Torino, II ed., 1967, pp. 55-58.
– Alvaro Garcia Linera numa entrevista a Pablo Stefanoni, in «il manifesto» de 22 de Julho de 2006, p. 3.
– Mao Tsetung, Perché può esistere in Cina il potere rosso? (5 de Outubro de 1928), in Opere scelte, Edições em línguas estrangeiras, Pequim, 1969-75, vol. 1, p. 61.
– Mao Tsetung, Il fallimento della concezione idealistica della storia (16 de Setembro de 1949), in Opere scelte, Edições em línguas estrangeiras, Pequim, 1969-75, vol. 4, p. 467.
– Karl Marx-Friedrich Engels, Werke, Dietz, Berlin 1955-89, vol. 9, p. 225 (Die künftigen Ergebnisse der britischen Herrschaft in Indien).
– Para Jefferson, Hoover e Rostow cfr. Domenico Losurdo. Stalin. Storia e critica di una leggenda nera, Carocci, Roma, 2008, pp. 196 e 288.
– Franklin Delano Roosevelt, Four Freedoms Speech (6 de Janeiro de 1941), in Richard Hofstadter-Beatrice Hofstadter, Great Issues in American History, Vintage Books, New York, 1982, pp. 386-91.
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O movimento comunista no século XX
Como resumir o balanço histórico do movimento comunista no século que passou? Hoje em dia, o discurso acerca da sua “falência” é tão pouco discutido que não chega a suscitar objecções, nem mesmo na esquerda. A ideologia e a historiografia actualmente dominantes parecem querer compendiar o balanço de um século dramático numa historieta edificante, que pode resumir-se deste modo: no princípio do século XX, uma rapariga fascinante e virtuosa, a menina Democracia, foi agredida, primeiro por um bruto, o senhor Comunismo, a seguir por outro, o senhor Nazi-Fascismo; aproveitando as contradições entre eles e através de peripécias complexas, a jovem consegue por fim libertar-se da terrível ameaça; tornando-se entretanto mais madura mas sem nada perder do seu fascínio, a menina Democracia consegue coroar o seu sonho de amor pelo casamento com o senhor Capitalismo; rodeado pelo respeito e a admiração gerais, o feliz e inseparável casal gosta de levar a vida principalmente entre Washington e Nova Iorque, entre a Casa Branca e Wall Street. Assim sendo, não há mais lugar a dúvidas: é evidente e inglória a falência do comunismo.
Os comunistas e a luta contra a discriminação racial.
Acontece porém que esta historieta edificante nada tem a ver com a história real. A democracia contemporânea baseia-se no princípio segundo o qual cada indivíduo deve ser considerado titular de direitos inalienáveis, independentemente da raça, do nível de rendimentos e do género, e pressupõe portanto a superação das três grandes discriminações (racial, censitária e sexual) que subsistiam ainda nas vésperas de Outubro de 1917.
Atentemos na primeira grande discriminação. Apresenta-se numa dupla forma. Por um lado, a nível planetário, vemos a “servidão de centenas de milhões de trabalhadores da Ásia, das colónias em geral e dos pequenos países” por obra de “poucas nações eleitas”, as quais – prossegue Lenin – se atribuem “o privilégio exclusivo de formação do Estado”, negando-o aos bárbaros das colónias ou semi-colónias [1].
Por outro lado, a discriminação racial faz-se sentir também no interior dos Estados Unidos, negando aos negros os direitos políticos e submetendo-os a um regime terrorista de white supremacy, de supremacia branca. Os negros considerados rebeldes ou delinquentes eram postos a cozer em fogo lento, no quadro de um espectáculo de massa que durava muitas horas, com a participação até de mulheres e crianças e se concluía com o momento feliz da distribuição ou venda de lembranças aos espectadores: dentes e ossos da cabeça e de outras partes do corpo da vítima.
Estas práticas continuavam a subsistir ainda nos anos da presidência de Franklin Dellano Roosevelt. O terror atingia não só os negros condenados ao linchamento mas ainda as suas família, cuja casa era por vezes entregue às chamas. As crónicas da imprensa da época testemunham o valor escasso ou nulo que tinha a vida dos afro-americanos. Veja-se por exemplo um jornal onde se refere que tinha sido linchado o “negro errado”. Tencionavam assassinar um outro, mas acabara torturado e enforcado ou queimado vivo um pobre homem apressadamente confundido com o “culpado”.
É altura de colocar uma primeira pergunta: quais foram as forças políticas que lutaram contra o regime da white supremacy ? Em 1924, um jovem indochinês (Nguyen Sinh Cung), chegado à república norte-americana em busca de trabalho, assistia horrorizado a um linchamento. Passemos sobre os detalhes que já conhecemos ou podemos imaginar e vejamos a conclusão: “Por terra, envolta em fumo e cheiro de gordura, uma cabeça negra, mutilada, torrada, deformada, com um esgar de horror, parece perguntar ao sol que se põe: “É esta a civilização?” O jovem indochinês denunciava a infâmia do regime de supremacia branca e do Ku Klux Klan na «Correspondance Internationale» (a versão francesa do órgão da Internacional Comunista). Dez anos mais tarde regressava à pátria e assumia o nome pelo qual mais tarde se tornará conhecido em todo o mundo, o nome Ho Chi Minh.
Não se trata de uma personalidade isolada. Empenhados como se achavam em combater o racismo branco, os comunistas eram qualificados pela ideologia dominante como “estrangeiros” e “amantes dos negros” (nigger lovers). E naqueles anos – para citar um historiador norte-americano – ser comunistas e desafiar o regime da white supremacy significava “defrontar a eventualidade do cárcere, da sova violenta, do sequestro e até da morte.” É por isto que os afro-americanos mais combativos olhavam com admiração e reconhecimento para o movimento comunista e a União Soviética: olhavam Stalin como o “novo Lincoln”, aquele que os ajudaria a pôr fim, desta vez de modo concreto e definitivo, à escravidão dos negros, à opressão, à degradação, à humilhação, à violência e aos linchamentos que continuavam a sofrer.
Demos agora um salto de cerca de duas décadas. Em Dezembro de 1952, o Secretário da Justiça dos EUA escrevia ao Supremo Tribunal, empenhado em discutir a questão da integração nas escolas públicas: “A discriminação racial leva água ao moinho da propaganda comunista e levanta dúvidas, inclusivamente entre as nações amigas, acerca da intensidade da nossa devoção à fé democrática.” Washigton corria o risco – observa o historiador americano que relata estas declarações – de se alienar as “raças de cor”, não só no Oriente e no Terceiro Mundo mas no próprio coração dos Estados Unidos: também aqui a propaganda comunista obtinha um considerável sucesso na sua tentativa de ganhar os negros para a “causa revolucionária”, fazendo soçobrar neles a “fé nas instituições americanas”.
Impõe-se uma conclusão. O desafio objectivamente representado pelo movimento comunista internacional contribuiu de modo decisivo para fazer cair nos EUA o regime da supremacia branca. O capítulo da história iniciado com a revolução de Outubro promoveu a luta contra a discriminação racial, não apenas promovendo à escala mundial a emancipação dos povos coloniais, mas dando impulso à causa da igualdade racial no próprio coração do Ocidente.
O Estado racial do Sul dos Estados Unidos e o Terceiro Reich.
O regime que suscitava o horror de Ho Chi Minh e dos comunistas gozava porém na Europa do favor de importantes forças políticas. Em 1937, Alfred Rosenberg, o principal teórico do Terceiro Reich, celebrava os Estados Unidos como um “esplêndido país do futuro”: ao limitar a cidadania política exclusivamente aos brancos e sancionar a todos os níveis e por todos os meios a supremacia branca, os EUA tinham o mérito de formular a feliz “nova ideia de um Estado racial”, ideia que se tratava agora de pôr em prática “com força juvenil”, mediante a expulsão e a deportação de “negros e amarelos” [2]. Basta uma vista de olhos à legislação adoptada por Hitler logo após a tomada do poder, para nos darmos conta das analogias com a situação vigente nos EUA e em particular no Sul: da cidadania política, reservada aos arianos, são excluídos os judeus, os ciganos e os poucos mulatos que viviam na Alemanha (no final da I Guerra mundial soldados de cor ao serviço do Exército francês haviam participado na ocupação do país). E, tal como nos Estados Unidos, também no Terceiro Reich a miscegenenation, ou seja, a contaminação do sangue derivada das relações sexuais e matrimonais entre membros da raça superior e membros das raças inferiores, é proibida pela norma legal. “A questão negra” – continua a escrever Rosenberg – encontra-se nos Estados Unidos no vértice de todas as questões decisivas”; e, uma vez anulado para os negros o princípio absurdo da igualdade, não se vê por que não se hão de tirar “as consequências necessárias também para os judeus e os amarelos.” [3]
É evidente o peso exercido pelo modelo americano na construção do Estado racial na Alemanha. Interroguemo-nos sobre qual a palavra-chave susceptível de exprimir de modo claro e concentrado a carga de desumanização e de violência genocida ínsita na ideologia nazi. Neste caso não são necessárias pesquisas particularmente tormentosas: é Untermensch, sub-homem, o termo-chave, que antecipadamente priva de toda a dignidade humana todos quantos se destinam a ser escravizados ao serviço da raça dos senhores ou aniquilados como agentes patogénicos, culpados de fomentarem a revolta contra a raça dos senhores e contra a civilização como tal. Pois bem, o termo Untermensch, que desempenhou um papel tão central e tão nefasto na teoria e na prática do Terceiro Reich, não é mais do que a tradução do americano Under Man ! O próprio Rosenberg o reconhece, ao exprimir a sua admiração pelo autor norte-americano Lothrop Stoddard: cabe-lhe o mérito de ter sido o primeiro a cunhar o termo em questão, que figura como subtítulo (The Menace of the Under Man) de um livro publicado em Nova Iorque em 1922 e da sua versão alemã (Die Drohung des Untermenschen), surgida três anos mais tarde. No que concerne ao seu significado, Stoddard esclarece que indica a massa de “selvagens e bárbaros”, “essencialmente incapazes de civilização e seus inimigos incorrigíveis”, com os quais há que proceder a um radical ajuste de contas, se se quer evitar o risco de colapso da civilização [4].
Elogiado, ainda antes de o ter sido por Alfred Rosenberg, já por dois Presidentes dos EUA (Harding e Hoover), Stoddard foi seguidamente recebido com todas as honras em Berlim, onde se encontra com os mais altos hierarcas do regime nazi, incluindo Adolf Hitler [5], então lançado na sua campanha de dizimação e escravização dos “indígenas”, ou seja, dos Untermenschen da Europa de leste, e empenhado nos preparativos para a aniquilação dos Untermenschen judeus, considerados como os loucos inspiradores da revolução bolchevista e da revolta dos escravos e dos povos das colónias.
Não faz sentido querer colocar o comunismo no mesmo plano do nazismo, quer dizer, da força que com mais consequência e brutalidade se opôs à superação da discriminação racial e portanto ao advento da democracia. Se por um lado o Terceiro Reich se apresenta como a tentativa, levada a cabo em condições de guerra total, de realizar um regime de white supremacy à escala planetária e sob hegemonia alemã, por outro lado o movimento comunista forneceu uma contribuição decisiva para a superação da discriminação racial e do colonialismo, cuja herança o nazismo procura assumir e radicalizar.
O movimento comunista, a superação das três grandes discriminações e o advento do Estado social.
Deixemos agora para trás as colónias e a sorte das “raças inferiores”, para concentrar a análise sobre a metrópole capitalista, e mesmo exclusivamente sobre a sua população “civilizada”. Também a este nível, na véspera da revolução de Outubro continuavam a ser operantes significativas cláusulas de exclusão da cidadania e da democracia.
Em Inglaterra – observa Lenin – o direito eleitoral “é ainda bastante limitado para excluir o estrato inferior propriamente proletário” [6]; além do mais, podemos acrescentar, alguns privilegiados continuavam a gozar do “voto plural”, que só será completamente suprimido em 1948. Particularmente tortuoso foi, no país clássico da tradição liberal, o processo que conduziu à realização do princípio “uma cabeça, um voto”, e tal processo não pode ser pensado sem o desafio constituído pela revolução na Rússia e o desenvolvimento do movimento comunista.
Mesmo nos países onde o sufrágio masculino se tornara universal ou quase universal, ele era neutralizado pela presença de uma Câmara Alta que era apanágio da nobreza e das classes privilegiadas. No Senado italiano sentavam-se, na qualidade de membros de direito, os príncipes da Casa Sabóia: todos os outros eram nomeados vitaliciamente pelo rei, sob proposta do Presidente do Conselho. Considerações análogas valem para as outras Câmaras Altas europeias que, à excepção da francesa, não eram electivas mas sim caracterizadas por uma combinação de hereditariedade e nomeação régia. Mesmo nos Estados Unidos continuavam a subsistir resíduos de discriminação censitária, a qual porém se manifestava sobretudo, como vimos, sob a forma de discriminação racial, que atinge nos negros, simultaneamente, os estratos mais pobres da população.
Se tomarmos o Ocidente no seu conjunto, a cláusula de exclusão mais macroscópica era a que feria as mulheres. Em Inglaterra, as senhoras Pankhurst (mãe e filha), que dirigem o movimento das sufragistas, viam-se forçadas a visitar periodicamente as prisões do país. Na Rússia, a “exclusão das mulheres” dos direitos políticos, denunciada por Lenin e pelo partido bolchevique, foi anulada logo depois da revolução de Fevereiro, saudada como “revolução proletária” (dado o peso exercido pelos sovietes e as massas populares) por Antonio Gramsci, o qual sublinhava calorosamente o facto de que a revolução “destruiu o autoritarismo e substituiu-o pelo sufrágio universal, alargando-o também às mulheres.”
Este mesmo caminho foi depois o tomado pela república de Weimar (nascida da revolução que eclodiu na Alemanha a um ano de distância da revolução de Outubro), e só em seguida pelos EUA [7].
Em síntese. A superação das três grandes discriminações foi tornada possível por um duplo movimento: com as numerosas e grandes revoluções a partir de baixo, que se desenvolveram quer nas metrópoles capitalistas quer nas colónias e muitas vezes inspiradas pela revolução de Outubro e pelo movimento comunista, combinaram-se revoluções pela cúpula, promovidas com o fim de impedir novas revoluções a partir de baixo e de defrontar o desafio do movimento comunista.
Fazem parte da democracia, como hoje é geralmente entendida, também os direitos económicos e sociais (direitos ao trabalho, à saúde, à instrução, etc.) E é justamente o grande patriarca do neo-liberalismo, Hayek, quem denuncia o facto de a sua teorização e a sua presença no Ocidente remeterem para a influência, considerada por ele funesta, da “revolução marxista russa”. Por conseguinte, o Estado social que se realizou no Ocidente, quer dizer, a tentativa de pôr limites ao pleno desdobramento do poder económico-social da riqueza, não pode ser pensado sem o impulso e o desafio provenientes da revolução de Outubro.
Restauração e revolução nos nossos dias.
É inegável, por outro lado, a derrota estratégica sofrida pelo “campo socialista” entre 1989 e 1991 e está perante os olhos de todos a restauração do capitalismo na Europa de leste! Teremos de fazer valer para o movimento comunista no seu conjunto a observação que Marx faz em relação ao jacobinismo? “Todo o terrorismo francês [jacobino] não foi senão um modo plebeu de desembaraçar-se dos inimigos da burguesia, o absolutismo, o feudalismo e o carácter filisteu”; “o proletariado e as fracções burguesas não pertencentes à burguesia”, ao mesmo tempo que se opuseram à burguesia, como por exemplo na França de 1793 a 1794, lutaram apenas pela realização dos interesses da burguesia, ainda que não à maneira da burguesia.” (MEW, VI, 107). Isto é, segundo a interpretação de Marx, apesar do seu radicalismo, os jacobinos teriam acabado apenas por aplanar o caminho à sociedade burguesa. Ter-se-ia também passado algo semelhante com o comunismo do século XX ? Teria o comunismo liquidado as três grandes discriminações somente para aplanar o caminho a uma democracia burguesa mais completa?
Esta tese não convence. Desde logo deve notar-se que ao colapso do socialismo na Europa de leste corresponde no Ocidente o desmantelamento do Estado social e mesmo a exclusão dos direitos económicos e sociais do catálogo dos direitos. É a operação explicitamente posta em prática por Hayek, o qual não por acaso conseguiu a seu tempo o prémio Nobel da economia e se tornou um ponto de referência essencial da ideologia hoje dominante.
Não se trata apenas do Estado social. Nos Estados Unidos – sublinha entre outros um autorizado historiador liberal [no sentido americano da palavra, NdT] como Schlesinger Jr. –, o peso do dinheiro nas competições eleitorais é tão forte que os organismos representativos correm o risco de se tornar monopólio das classes proprietárias (como nos anos de ouro da restrição censitária do sufrágio). Há tempos, podia ler-se no «International Herald Tribune» uma análise que dá que pensar:
«Os Estados Unidos tornaram-se uma plutocracia […] Quem tenha dinheiro pode exercer um peso para influenciar o governo. Deixado de fora fica o restante povo, e agora parecem existir escassas esperanças de poder alterar o modo como o país é governado.» (Pfaff, 2000).
Mas é sobretudo a nível internacional que a tendência para a restauração se torna particularmente evidente, ao repropor-se em novas formas a grande discriminação que tradicionalmente atingiu os povos coloniais e semi-coloniais. É explícita a reabilitação do colonialismo no ideólogo mais ou menos oficial da “sociedade aberta” e do Ocidente. Popper exprime-se deste modo a propósito das ex-colónias: “Libertámos estes Estados de forma demasiado apressada e demasiado simplista; é como abandonar a si próprio um asilo de crianças”. E o historiador inglês Paul Johnson, de grande sucesso mediático, fala de um “revival” do colonialismo, numa intervenção com tanto mais autoridade quanto foi publicada no «New York Times», com destaque e com um título que soa como o enunciado de um programa: “Finalmente regressa o colonialismo, era tempo”. Não existem alternativas ao “revival altruísta do colonialismo” em “muitíssimos países do Terceiro Mundo”: “é uma questão moral; o mundo civilizado tem a missão de ir governar estes lugares desesperados.” Não se trata apenas de intervir em países incapazes de se governarem sozinhos, mas também naqueles que, ao governar-se, revelam uma tendência “extremista” [8].
Até mesmo a categoria de imperialismo conhece uma nova juventude ou reapresenta-se com uma nova cosmética.
Naturalmente, o processo de recolonização do Terceiro Mundo, e das zonas periféricas em relação ao Ocidente, avança com palavras de ordem universalistas, que proclamam a absoluta transcendência das normas éticas relativamente aos limites estatais e nacionais. Mas isto, longe de constituir uma novidade, é uma constante da tradição colonial. Por outro lado, é evidente que, arrogando-se o direito de declarar superada a soberania de outros Estados, as grandes potências atribuem-se uma soberania dilatada, a exercer muito para além do próprio território nacional. Reproduz-se de uma forma pouco modificada a dicotomia que ritmou a expansão colonial, no decurso da qual os protagonistas constantemente recusaram reconhecer como Estados soberanos os países que subjugavam ou transformavam em protectorado.
Quer dizer, ao enfraquecimento do movimento comunista corresponde o desfazer-se das conquistas democráticas realizadas no século XX, a partir da revolução de Outubro. Dito por outras palavras, a eliminação das grandes discriminações que durante séculos caracterizaram o mundo liberal-burguês nunca será definitivamente consolidada sem profundas transformações, a nível nacional e internacional, das relações económicas e sociais capitalistas. Disso mesmo se dão conta, por exemplo, os países e os povos que na América latina lutam para sacudir das costas o peso do domínio do saque imperialista. A partir desta exigência elementar de conquista ou reconquista da independência e da dignidade nacional, eles percebem a necessidade de avançar na direcção do “socialismo do século XXI”. E ao fazê-lo redescobrem a grande herança do comunismo do século XX: olham com admiração, com simpatia e com respeito Cuba, a China, o Vietnam.
O processo verificado entre 1989 e 1991 não significou a liquidação dos países que se reclamam do socialismo. A partir de Outubro de 1917 desenvolveu-se uma dialéctica complexa e contraditória. O sistema capitalista, reforçado pela absorpção de elementos derivados da bagagem ideal e política do movimento comunista e da própria realidade do socialismo real, soube depois exercitar por sua vez uma atracção irresistível sobre a população dos países caracterizados por um socialismo que, desde o início, traz impressos na face os sinais da guerra desencadeada e imposta pelo Ocidente, e que depois se torna cada vez mais ossificado e esclerótico até se tornar a caricatura de si próprio. Quer dizer, os regimes nascidos na onda da revolução bolchevique não souberam confrontar-se concretamente com o Ocidente que eles próprios tinham contribuído para modificar em profundidade. Em última análise venceu o sistema político-social que melhor soube responder ao desafio lançado ou objectivamente constituído pelo sistema oposto e concorrente. E foi assim que, também neste caso, a inicial vitória parcial conseguida pelo movimento operário e comunista, com a capacidade demonstrada de desenvolver a sua eficácia histórica concreta também no campo adversário, se transformou numa derrota de alcance estratégico.
Porém, a própria gravidade de tal derrota, repondo em discussão as conquistas democráticas conseguidas no século XX, dá novo fôlego, sobretudo no Terceiro Mundo, ao projecto de transformação socialista. Este, no entanto, perdeu a clareza e a evidência que parecia ter no século XX. Convém reflectir sobre uma celebérrima tese de Lenin: “sem teoria revolucionária não há revolução”. O partido bolchevique possuía sem dúvida uma teoria para a conquista do poder; mas se por revolução se entende, para lá do derrube da velha ordem, a construção da nova, os bolcheviques e o movimento comunista encontravam-se substancialmente privados de uma teoria revolucionária.
Não pode certamente considerar-se como teoria da sociedade post-capitalista a construir a expectativa escatológica de uma sociedade perfeitamente conciliada e sem contradições e conflitos de algum tipo. A resistência e a vitalidade dos países de inspiração socialista que conseguiram superar a crise de 1989/1991 derivam da capacidade demonstrada de levar avante concretamente, no meio de limitações, erros e experiências mais ou menos felizes, o necessário processo de aprendizagem, depurando o projecto socialista das suas componentes abstractamente utópicas e redescobrindo o mercado socialista, o governo da lei em versão socialista, a persistência das diferenças e identidades nacionais, etc. Abre-se uma fase nova e rica de incógnitas: o processo de aprendizagem não está e não pode ter um sucesso garantido, não é imune nem ao surgimento de contradições e conflitos nem ao perigo da derrota. É um processo que se acha bem longe de ter chegado ao seu termo.
Notas:
[1] Lenin, 1955 c, p. 403 e Lenin, 1955 a, p. 417.
[2] Rosenberg 1937, p. 673.
[3] Rosenberg 1937, pp. 668-9.
[4] Cfr. Losurdo 2002, cap. 27, § 7.
[5] Sobre o eugenismo nos EUA e na Alemanha, cfr. Kühl 1994, p. 61; o juízo lisongeiro do presidente Harding é referido na abertura do livro de Stoddard 1925.
[6] Lenin, 1955 b, p. 282.
[7] Sobre isto, cfr. Losurdo, 1998, cap. II, 3.
[8] Johnson, 1993, pp. 22 e 43-44.
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* Domenico Losurdo, filósofo e historiador, é Professor da Universidade de Urbino, Itália
Tradução de J.A. Nunes
Fonte: O Diário.info