O texto abre contando de uma carta pessoal datada de 3 de março de 1986 que "quatro dos principais cientistas de armamentos da China ― todos veteranos dos programas espacial e de mísseis" (os nomes não são mencionados) enviaram ao então líder político do chinês, Deng Xiaoping. Nela, os signatários informavam que décadas de ênfase na militarização haviam comprometido a pesquisa civil nacional, e que ou a China aderiria ao que chamavam de "nova revolução tecnológica" ou ficaria para trás. A carta propunha um programa de elite dedicado a tecnologias que cobrissem um amplo espectro de áreas, da biotecnologia à pesquisa espacial, conta Osnos. Segundo ele, Deng Xiaoping teria anotado na carta: "Agir imediatamente". Nasceu ali o Programa 863, cujo nome se refere ao ano e ao mês em que foi concebido. "Nos anos seguintes, o governo colocou bilhões de dólares em laboratórios, universidades e empresas, em projetos que iam de clonagem a robôs subaquáticos", conta a matéria.

Força para tecnologias de energia

Em 2001, prossegue Osnos, as autoridades chinesas decidiram expandir um programa em especial, o de tecnologia de energia. Segundo o texto, a decisão foi tomada por dois motivos principais. Primeiro, porque a China, antes o maior exportador de petróleo do Leste da Ásia, naquela altura já incorporava à sua frota mais de 2 mil veículos por dia e passara a importar milhões de barris de petróleo. Segundo, porque quase 80% da eletricidade consumida no país vinha da queima de carvão ― o que, por um lado, tornava irrespirável o ar em boa parte do país; e, por outro, contribuía para acelerar as mudanças climáticas. A preocupação com o aquecimento global é explicada pelo correspondente: a China seria a nação com maior número de vítimas no mundo no caso da elevação do nível dos oceanos.

"Em 2006", continua o jornalista, "os líderes chineses redobraram seu compromisso com novas tecnologias de energia; aumentaram o patrocínio para a pesquisa e estabeleceram metas mais altas que as dos Estados Unidos para a instalação de turbinas de energia eólica, painéis solares, usinas hidrelétricas e outras fontes de energia renováveis". Desde então, a capacidade de geração de energia eólica da China duplica a cada ano. "O país praticamente não tinha um setor de energia solar em 2003; cinco anos depois, fabricava mais células solares que qualquer outro país, conquistando clientes das empresas estrangeiras que inventaram a tecnologia", escreve Osnos.

O artigo observa que em 2006 a China ultrapassou os EUA como maior emissor mundial de gases do efeito estufa. Se, nos próximos trinta anos, as emissões continuarem a aumentar no ritmo dos 30 anos passados, o país jogará mais carbono na atmosfera que os Estados Unidos ao longo de toda a sua história. Portanto, diz Osnos, "a questão deixou de ser se a China está equipada para exercer um papel no combate às mudanças climáticas, e sim como esse papel vai afetar outros países". O secretário assistente de Energia para Políticas e Assuntos Internacionais dos EUA, David Sandalow, reconheceu para o jornalista: "O investimento da China em energia limpa é extraordinário. A menos que os EUA invistam, não seremos competitivos no setor de tecnologia limpa nos próximos anos e décadas."

Liderança em equipamentos para energia eólica

Exemplo disso é a Empresa de Ciência e Tecnologia Goldwind, que opera uma fábrica e um laboratório em um cluster de companhias high-tech em Yizhuang, subúrbio de Pequim. Osnos visitou o local. No texto, conta a trajetória do engenheiro Wu Gang, chairman da empresa. Em 1987, recém-formado, o executivo assumiu a administração de um projeto de produção de energia elétrica em sua província natal, Xinjiang, no oeste da China, região na qual os ventos são poderosos. Ali, trabalhou com engenheiros da Dinamarca, país que lidera a pesquisa de energia eólica, e aprendeu muito sobre turbinas. Em 1997, recebeu do Ministério da Ciência a encomenda de construir uma turbina de 600 kW ― "pequena para padrões internacionais, mas algo inédito na China", de acordo com Osnos. Wu Gang usou a verba do governo como garantia para levantar empréstimos, prossegue o jornalista, e ao invés de começar do zero comprou uma licença para usar um projeto da Jacobs Energie, alemã. As primeiras tentativas foram "um terrível fracasso", lembrou o engenheiro. Os problemas foram resolvidos, e graças ao Programa 863 e a outros incentivos do governo a Goldwind passou a produzir grande variedade de turbinas grandes e sofisticadas. As vendas da empresa dobraram de ano para ano entre 2000 e 2008, conta o texto.

Parte do avanço da China nessa área pode ser atribuída ao protecionismo, afirma Osnos, segundo quem até recentemente os projetos de energia eólica chineses estavam obrigados a usar turbinas com componentes fabricados no país. Essa exigência entrou em vigor em 2003, conta ele; ao ser abolida, este ano, as turbinas made in China dominavam o mercado local. Na verdade, afirma o texto, a proteção funcionou bem demais: segundo o jornalista, estima-se que o crescimento desse setor tenha sido tão rápido que entre 20% e 30% dos projetos de energia eólica chineses não geram eletricidade porque não há como transmiti-la. O país está instalando as linhas de transmissão mais eficientes do mundo, escreve Osnos, e na próxima década planeja instalar equipamentos para energia eólica capazes de gerar cinco vezes mais eletricidade que a hidrelétrica chinesa das Três Gargantas, a maior do mundo, cuja capacidade de geração, quando ficar pronta, será de 22.500 MW.

Gás de carvão

Há o problema do carvão, de que China e EUA são "consumidores vorazes", nas palavras de Osnos ― a China, nota ele, queima mais carvão que os Estados Unidos, a Europa e o Japão juntos. "As decisões que a China e os EUA tomarem nos próximos cinco anos no setor de carvão vão determinar o futuro deste século", disse a ele Julio Friedmann, especialista em energia do Laboratório Nacional Lawrence Livermore, nos EUA.

Em 2001, conta a matéria, o Programa 863 lançou um projeto de "carvão limpo". O propósito, explicou ao autor um dos membros do comitê que o administra, Yao Qiang, professor de energia térmica na Universidade Tsinghua, de Pequim, é incentivar a inovação por meio de ideias tão arriscadas e caras que nenhuma empresa privada tentaria colocar em prática sozinha. Graças ao projeto, conta Osnos, o Instituto de Pesquisa em Energia Térmica, da cidade de Xi'an, no centro do país, pode desenvolver uma tecnologia experimental de "gaseificação” de carvão. A tecnologia "usa pressão e calor intensos para transformar pó de carvão em um gás que pode ser queimado com menos resíduos", explica o texto. Segundo o artigo, esse equipamento facilita muito a extração de gases de efeito estufa, permitindo que eles sejam armazenados e reutilizados, ao invés de serem lançados na atmosfera.

De acordo com o jornalista, gaseificadores existem há décadas, mas são caríssimos ― custam de US$ 500 milhões a US$ 2 bilhões. Os chineses vão custar entre 1/3 e metade disso. Segundo disse a Osnos o empresário norte-americano da área de energia Albert Lin, do conselho da empresa Future Fuels, que desenvolve usinas elétricas, os gaseificadores chineses "são sem dúvida os melhores" que ele já viu. A empresa, por isso, comprou a licença para produzir o equipamento – "marcando um dos primeiros casos de tecnologia chinesa de carvão que entra nos Estados Unidos", observa o autor.

Mais dinheiro para P&D

Nos últimos vinte anos, escreve Osnos, os gastos da China com pesquisa e desenvolvimento cresceram 20% ao ano, chegando em 2008 a US$ 70 bilhões. O aumento do investimento em pesquisa sobre energia no âmbito do Programa 863 foi ainda maior: 50 vezes entre 1991 e 2005, o ano mais recente para o qual há dados. Nos EUA as coisas não evoluíram assim. Em abril de 1977, o então presidente Jimmy Carter (1977-1981), na esteira do segundo embargo de petróleo, quase quadruplicou os investimentos públicos em pesquisa em energia, e em meados da década de 1980 os EUA eram o líder mundial indiscutível em tecnologia limpa, fabricando mais da metade das células solares e instalando 90% da energia eólica do planeta.

O sucessor de Carter, Ronald Reagan (1981-1989), no entanto, que tinha entre suas promessas de campanha abolir o Departamento de Energia, reduziu os investimentos em pesquisa, conta Osnos. "Estávamos trabalhando num rol de tecnologias muito inovadoras e interessantes", contou Julio Friedmann, do laboratório Lawrence Livermore. "Basicamente, quando os preços do petróleo caíram em 1986, nós enrolamos o tapete e dissemos: 'isto não vale mais a pena'", completou. Segundo dados da Associação Norte-Americana para o Progresso da Ciência citados no artigo, em 2006 o governo dos EUA estava investindo nessa área US$ 1,4 bilhão, menos de 1/6 do que aplicou em 1979.

Atenção!, pediu a National Academies

O alarme soou com estridência em 2005, conta o texto, com o relatório Rising Above the Gathering Storm (Ficando Acima da Tempestade que se Arma). O documento, sobre a competitividade dos Estados Unidos, foi produzido pela National Academies ― "o principal órgão consultivo de ciência do país", de acordo com Osnos. Entre os autores, estavam o atual secretário de Energia e Prêmio Nobel de Física Steven Chu (à época diretor do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley), e o então diretor da CIA, Robert Gates, hoje secretário de Defesa. Instou o governo a investir em pesquisa, especialmente na área de energia, e propôs a criação de uma nova agência, voltada para apoiar a busca de tecnologias "transformadoras". Teria o nome de Advanced Research Projects Agency (Agência de Projetos de Pesquisa Avançada), ou Arpa-E. O órgão foi aprovado pelo Congresso em 2007, mas o presidente George W. Bush considerou-a uma "expansão do governo", nunca requisitou verbas para ela e a ideia não vingou, relata o artigo.

Outra iniciativa que não foi adiante foi o projeto FutureGen. Tratava-se da construção, no Estado de Illinois, da primeira geradora de energia movida a carvão com emissões próximas de zero do mundo. Segundo Osnos, o governo Bush teria inflado seu custo em US$ 500 milhões para justificar a decisão de não apoiar o projeto. "Depois que a FutureGen foi a pique", escreveu ele, "a China inovou com uma invenção própria: a GreenGen. Se ela abrir em 2011, como planejado, o país vai ter a primeira planta de alta tecnologia movida a carvão com baixas emissões". O artigo conta que o preço do carvão, que na China é controlado pelo governo, começou a subir, o que, para ele, pode indicar uma disposição das autoridades chinesas de forçar as geradoras a instalar equipamentos mais limpos e eficientes.

O "Custo China"

Osnos aponta que muitas tecnologias excessivamente caras no Ocidente se tornam acessíveis quando a China se envolve com elas ― os aparelhos de DVD e as TVs de tela plana, por exemplo, eram artigos de luxo até o país passar a fabricá-los. No momento, as tecnologias de energia mais promissoras ― das células solares finas a sistemas complexos de armazenagem de carbono em poços de petróleo exauridos ― são onerosas, "mas a combinação de fabricação chinesa com inovação norte-americana é poderosa", escreve.

O empresário Kevin Czinger acreditou nisso. Para ele, o segredo é usar o que chamou de "modelo Apple": "ser o dono da marca, do design e da propriedade intelectual", explicou a Osnos, e procurar quem possa executar a tecnologia modo confiável e barato. Czinger está no ramo dos carros elétricos. Era o CEO da Miles Electrical Vehicles, de Santa Mônica, na Califórnia quando, no ano passado, associou a empresa à fabricante de baterias Lishen para criar a Coda Automotive. Apple, Samsung e Motorola são clientes da Lishen. Com baterias da empresa, componentes dos Estados Unidos e da Alemanha, e chassis do Japão, a Coda prevê fabricar o primeiro carro 100% elétrico produzido em massa a ser vendido nos EUA em menos de um ano. Custo estimado do Coda ― um carro de aspecto tão comum "a ponto de ser banal", escreve o jornalista ―, levados em conta os incentivos que o governo dos EUA oferece aos compradores de veículos elétricos: US$ 32 mil (cerca de R$ 55 mil).

Liberdade de expressão e inovação

Em 2004, relata o texto, cientistas chineses radicados nos Estados Unidos acusaram o Programa 863 de favorecer pessoas e financiar projetos e laboratórios sem valor. Quando as críticas foram publicadas por um suplemento em mandarim da revista Nature, o governo chinês o recolheu. Menos de dois anos depois, prossegue o artigo, descobriu-se que o conhecido pesquisador Chen Jin, da Universidade Jiaotong, de Xangai, que havia recebido US$ 10 milhões para produzir um microchip chinês, tinha falsificado dados. "Confirmou-se o que muitos cientistas chineses falavam entre si: o sistema científico da China era repleto de plágios, dados falsificados e conflitos de interesse", escreve Osnos.

Depois desse escândalo, o Programa 863 passou a divulgar suas propostas na internet, a incentivar maior participação e, "para reduzir os conflitos de interesse", a escolher ao acaso os avaliadores dos projetos. Mas, para Osnos, as mudanças não resolveram o problema principal: "o sistema que permitiu à China dominar a produção de turbinas eólicas e baterias não necessariamente a equipa para inventar tecnologia de energia que ninguém imaginou antes", escreve ele. "Escala não é substituto de invenção radical, e a burocracia chinesa cronicamente desencoraja riscos", continua, para em seguida citar um trecho de um editorial da Nature de 2008 sobre a China que diz: "Uma questão mais profunda é se a existência de uma cultura científica vibrante é possível sem um amplo comprometimento da sociedade com a liberdade de expressão."

Mudanças com o governo Obama

Osnos destaca que o governo Obama vem "corrigindo o legado de seu predecessor". O pacote de estímulos de fevereiro deste ano destinou mais US$ 38 bilhões para o Departamento de Energia investir em projetos de energia renovável, inclusive US$ 400 milhões para ressuscitar a Arpa-E e US$ 1 bilhão para reviver a FutureGen (mas, no caso desta, a decisão final ainda não está tomada), conta. Na abertura da Arpa-E, em abril, o presidente prometeu que os investimentos dos EUA em P&D retornariam aos níveis da época da corrida espacial, lembra o autor.

De qualquer forma, o texto observa que nenhum país vai dominar, individualmente, a economia da energia limpa. A Goldwind, a Coda e o Instituto de Pesquisa em Energia Térmicas são híbridos de concepção ocidental e execução chinesa, e não existe país que combine invenção e fabricação a baixo custo de tecnologia limpa, nota Osnos. Para ele, "está cada vez mais claro que os vencedores na economia das novas energias vão explorar as vantagens das duas coisas".

O artigo diz que esse parece ser o ponto de vista do presidente Obama, e cita como exemplo os acordos de parceria que ele assinou com seu colega chinês, Hu Jintao, na área de energia e know-how, durante a visita que fez a Pequim em novembro. Um resultado ainda mais importante da viagem do presidente norte-americano à China, segundo Osnos, teria sido o anúncio que os dois países fizeram alguns dias depois de metas específicas de controle de emissões. E, embora elas "estejam longe de serem ousadas", têm, de acordo com o jornalista, uma "função crucial": "impedem que um lado use o outro como desculpa para justificar a inação".

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Fonte: Boletim Inovação/Unicamp