A maioria dos jovens que viveu intensamente aqueles “anos rebeldes” e amou os Beatles e os Rolling Stones lembra muito bem como foram os anos de chumbo no Brasil. Uns saíram ilesos, outros não. Os pais se assustavam com a possibilidade de qualquer aproximação dos filhos com os hippies que iam para as ruas pregar paz e amor. Mas fumar um baseado era uma coisa tolerável pelo Estado terrorista. Contestar o regime, sim, era caminhar à sombra do vale da morte.

Passados 46 anos do golpe, que lição podemos tirar daquele episódio? Antes tudo, é preciso constatar que a disposição das peças no tabuleiro do Brasil de hoje tem como referência o fio condutor da nossa história e sua acentuada inflexão em 1964. O ponto de partida é o modo como aconteceu a colonização do Brasil. Para resolver o problema da falta de mão-de-obra, os colonizadores foram buscar força de trabalho capturada na África. Depois promoveram a rota de imigração que desembocou nas fazendas de café como trabalho barato.

A chegada dos novos colonos poderia ter sido uma grande esquina na história brasileira. O esforço do governo em manter a ordem estabelecida, no entanto, atendeu à lógica da colonização, garantindo a sobrevivência da estrutura oligárquica erguida pelos latifundiários — os escravos foram substituídos por vassalos. Essa tradição foi determinante na formação das relações interclasses no Brasil.

Desde as capitanias hereditárias até a década de 50, o Brasil viveu no campo. E mesmo quem já vivia em cidades dependia grandemente da atividade agrícola. Foi tempo suficiente para que o sistema oligárquico ganhasse raízes fundas em nossa estrutura social. Ainda hoje o país abriga enormes feudos — e aqui o sentido não é literal, ou seja, não se limita ao campo —, controlados por coronéis e jagunços. Poucos países no mundo ostentam uma distinção social tão marcada como a nossa.

A elite brasileira espera de seus subordinados uma reverência que, não raro, causa explosões de revoltas. E, quando elas ocorrem, a estrutura oligárquica as sufoca em sangue — como ocorreu no regime de 1964. O que aconteceu ali foi o encontro dessa acentuada inflexão do nosso fio condutor histórico com os acirramentos da geopolítica mundial.

Uma análise mais profunda mostra que a oligarquia brasileira nunca teve um projeto honesto de desenvolver o país tendo como norte o interesse nacional. Ela desgosta de um projeto desenvolvimentista e distribuitivo porque isso significaria alargar o clube de proprietários e, em sua concepção, isso não iria multiplicar a riqueza mas dividir a já existente.

Por nunca ter apresentado, por desinteresse, um projeto de nação ao país, a elite brasileira não deixou outra alternativa às forças que estão na margem oposta do processo histórico senão os combates acirrados. Tivemos, entre tantos outros exemplos, Zumbi dos Palmares, João Cândido, os tenentes e a Guerrilha do Araguaia. Os governos, tradicionalmente vinculados ao poder econômico, nunca funcionaram como elemento de equilíbrio nessa dicotomia.

Em escassos períodos de nossa história, tivemos governos que levaram a cabo esforços conjuntos em torno de um projeto para o país, com metas para um desenvolvimento integrado. Salvo Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart, sempre tivemos presidentes de governos que geriram o país de forma a criar contendores com valores, idéias e metas radicalmente opostas. Governaram de modo a fazer com que o século XIX nunca terminasse por aqui.

O modo de produção baseado na escravidão foi oficialmente abolido, o sistema político passou de monarquia a República e o país trocou o campo pela cidade. A estrutura social básica, no entanto, é a mesma desde a colônia. Em outros países, a burguesia emergiu como um personagem novo na arena política, gerado a partir de seu poderoso e inovador modo de produção: o capitalismo. No Brasil, o surgimento dessa nova classe social se deu nos marcos da conservação do antigo modelo de produção dos senhores de terra.

O que se viu no Brasil foi um aburguesamento das antigas classes enraizadas na colônia. A corte — famílias tradicionais, proprietárias e próximas ao poder — adotou superficialmente o padrão burguês de comportamento de modo a perpetuar o seu domínio político e econômico. A partir desse raciocínio, não fica difícil entender as dificuldades que um projeto nacional honesto enfrenta para se instalar no país. Por isso, a luz no fim do túnel político de uma idéia de unidade nacional no Brasil sempre foi fraca.

Getúlio Vargas e seu projeto de união nacional foram derrubados em 1945. Voltaram em 1950 e o presidente saiu morto do Palácio do Catete — então a sede do governo federal. Juscelino Kubitschek quase não toma posse. João Goulart assumiu precariamente e sofreu o golpe que instalou os setores mais reacionários no comando do país. Latifundiários, mídia, líderes políticos direitistas com pendores para o fascismo e clérigos alinhados com as idéias da idade média foram os principais artífices internos do golpe.

No centro da conjura estava a Escola Superior de Guerra, criada no berço da Guerra Fria, em 1949 — quando os interesses militares norte-americanos entraram com força no país. Na virada da década de 40 para a de 50, a ameaça de guerra era uma constante no cenário mundial. Para contrapor-se à agressiva política externa dos Estados Unidos, formou-se um amplo movimento democrático, tendo à frente a União Soviética. Esse quadro evoluiu, no Brasil, para a trama golpista abertamente apoiada pelo imperialismo norte-americano quando o governo brasileiro adotou uma política externa independente no início dos anos 60.

A máquina golpista foi montada por setores reacionários do Exército. Por trás de tudo, movendo o aparato, estava a embaixada dos Estados Unidos e o conhecido general Vernon A. Walters — designado para o posto de adido militar de Washington com o objetivo deliberado de derrubar o governo do presidente João Goulart. A longa duração do reinado dos golpistas — um dos mais longos das ditaduras implantadas no contexto da Guerra Fria — se explica também pelo apoio oligárquico interno.

Claro que muitos outros países, incluindo os Estados Unidos, lançaram mão da escravatura como modo de produção após a superação desse sistema em suas formas originais na antiguidade. Só que nenhum deles manteve a escravidão até as barbas do século XX. Nenhum deles também foi dirigido pelos interesses de suas oligarquias rurais até depois da Segunda Guerra Mundial. É certo que o combate histórico ao poder ditatorial — em especial à ditadura militar — temperou as forças democráticas e progressistas.

No entanto, pouca coisa mudou na essência do modo como a elite e o povo se vêem e se relacionam. É fácil compreender essa imutabilidade se percebermos que há apenas vinte e poucos anos rompemos com a mais aguda inflexão desse pendor autoritário da oligarquia brasileira no período republicano. Esta também se amoldou às mudanças. Ao ideal oligárquico histórico se juntou a nova direita, instrumentalizada pelo capital financeiro.

O ex-presidente neoliberal Fernando Henrique Cardoso (FHC) expôs, em 1995, o seu ponto de vista a respeito da ditadura militar durante a cerimônia de assinatura da lei que reconhece a morte de desaparecidos políticos nos anos de chumbo. “Culpado foi o Estado, por permitir a morte na tortura em suas dependências. Culpados foram as tendências fundamentalistas que, ao invés de reconhecer diferenças e procurar convergências, insistiram no maniqueísmo”, discursou ele.

FHC só não explicou como poderia se fazer tudo isso à frente de tropas, fuzis e canhões. “Conclamo a nação a virar esta página da história e olhar o futuro com a convicção de que episódios semelhantes nunca mais se repetirão”, disse o então presidente direitista. Como se sabe, as bandeiras que mobilizaram a resistência democrática à ditadura militar estão aguardando solução.

Portanto, essa não é uma página que pode ser virada aos sabor dos interesses da oligarquia. Quanto a não repetir esses “episódios”, isso não depende de governos como foram os de FHC. Depende da luta militante para que as liberdades democráticas conquistadas avancem no sentido de mudanças profundas na estrutura social brasileira.