A esquerda e a reorganização do capitalismo brasileiro
O capitalismo brasileiro está passando por uma forte reorganização. Essa é a principal conclusão de um grupo de intelectuais de esquerda ouvidos pela revista IHU On-Line edição 322 – intitulada "A reestruturação do capitalismo brasileiro".
Com pequenas nuances, todos os entrevistados concordam em que está em curso um processo de reestruturação do capitalismo brasileiro. A maioria considera que essa reorganização é positiva e que se está no caminho certo. As características principais dessa reestruturação são: a forte presença do Estado na economia, a constituição de “gigantes” corporações de capital nacional, a crescente concentração do capital na mão de poucos grupos e a recuperação de investimentos sociais. Sob a perspectiva política, a expansão do capitalismo brasileiro tem representado a difusa percepção de que as controvérsias políticas passam a girar muito mais em torno de temas da administração e da gestão do que diferenças de fundo, de caráter ideológico.
As entrevistas retomam o debate proposto pela análise da conjuntura especial "A reorganização do capitalismo brasileiro", publicada faz poucas semanas no sítio do IHU, que destaca que por detrás da reorganização do capitalismo brasileiro encontra-se o Estado Investidor, o Estado Financiador e o Estado Social.
A leitura do conjunto das entrevistas sugere ainda os limites da esquerda, ao menos de parte da esquerda. As entrevistas manifestam um profundo silêncio frente à crise civilizacional que vivemos. As referências à problemática da crise climática quando não estão ausentes se contrapõem a ela, ou seja, ou a esquerda nada tem a opinar sobre o tema ou, ainda pior, minimiza o problema e critica aqueles que contestam o atual modelo como defasado em matéria ambiental.
No seu conjunto, as entrevistas ainda revelam uma certa indigência na proposição de um projeto de fôlego para o país. Orientam-se pelo reducionismo economicista, restringem-se ao debate do papel e função do Estado frente à economia e tem como horizonte imediato a conjuntura política em ano eleitoral. As entrevistas mostram o pensamento de uma determinada esquerda pouco atilada frente aos enormes desafios que se apresentam diante da crise estrutural do capitalismo mundial e pouco ousada com os destinos do Brasil.
A sensação é de que a elaboração teórica, os intensos debates e a rica capacidade de proposição que se via anteriormente, particularmente nos anos 1980 e 1990, encontram-se anulados frente a um governo que, emergindo das forças de esquerda, confundiu a todos e obnubilou o pensamento crítico. As entrevistas, em sua grande maioria, manifestam e sugerem que o debate político se esvaziou. Não teríamos de volta, de outra maneira, o tão criticado “pensamento único”?
Prevalece aqui a intuição do sociólogo Werneck Viana quando, tendo presente as eleições desse ano, afirma: “De modo mais geral, essa expectativa de uma disputa eleitoral destituída de agonística se alimenta, sobretudo, da difusa percepção de que os êxitos recentes na expansão do capitalismo brasileiro estariam a significar que a História do País, afinal, encontrou uma solução feliz. As conquistas econômicas e sociais teriam serenado o campo da política, cujas controvérsias girariam em torno de temas da administração e da gestão da coisa pública. Caberia, agora, escolher entre os candidatos o mais preparado para continuar o script consagrado no sentido do seu aprofundamento e, uma vez que o País já se acharia com suas instituições estabilizadas e assentado o seu caminho futuro, lançar-se na aventura da sua imposição no cenário internacional”.
Foram entrevistados pela revista IHU On-Line acerca do processo de reestruturação do capitalismo brasileiro: Francisco de Oliveira, Luiz Werneck Vianna, Carlos Lessa, Marcio Pochmann, Luís Nassif, Ladislau Dowbor, Bernardo Kucinski, e Waldir Quadros.
Um projeto grão-burguês apoiado pelo Estado
Depreende-se do conjunto das entrevistas, com as devidas nuances, otimismo com o modelo em curso, de reestruturação do capitalismo brasileiro. Mesmo as análises mais críticas parecem indicar que não há muitas alternativas diante da nova e avassaladora ordem econômica mundial que exige competitividade se se quer sobreviver. É o que se percebe quando da análise acerca da constituição de fortes grupos nacionais com aporte e subsídios do Estado.
Ao afirmar que o capitalismo brasileiro “está passando por uma forte reorganização”, o sociólogo Francisco Oliveira, destaca que o Brasil está incorporando um modelo mundial. Segundo ele, o capitalismo no país “está passando por um processo que Marx chamava de centralização dos capitais, um conceito que quer dizer que o mesmo grupo econômico controla o maior número de capitais. Isso se reflete, na prática, nesse processo de fusões entre empresas. Essa é uma característica dos capitalismos muito desenvolvidos, e o Brasil está entrando nesse modelo”.
O sociólogo do Iuperj, Luiz Werneck Vianna, pensa como Chico de Oliveira. Em sua opinião, o capitalismo brasileiro passa “por uma reestruturação relevante” e, como o autor anterior, também está de acordo que isso se traduz num “processo de concentração e de centralização de capitais no país”. Werneck acrescenta uma novidade para quem “a sociedade brasileira, hoje, não é apenas uma sociedade burguesa, é uma sociedade grão-burguesa, como atesta a expansão das empresas brasileiras no exterior, não só na América Latina como na África”. Segundo ele, “o capitalismo brasileiro transcende as suas fronteiras nacionais. A sua política externa, hoje, está a serviço disso. Ela não apenas atua na defesa do território, da identidade nacional, mas diria que, sobretudo, está presente na expansão econômica do país. Isso se manifesta através de diferentes empreendimentos”.
O processo de reorganização do capitalismo brasileiro tem no Estado o seu principal agente. Os entrevistados são quase unânimes nessa interpretação. Nessa reorganização, o Estado assume um papel preponderante destaca Francisco de Oliveira. “O BNDES, que é um banco estatal, está presente em todas essas fusões e centralizações de capitais. Os fundos de pensão são os principais promotores dos tentáculos desses processos”. A presença do Estado justificar-se-ia, uma vez que “é preciso tornar as empresas competitivas internacionalmente”. Na opinião de Chico de Oliveira, “a economia brasileira cresceu muito do ponto de vista da projeção internacional e as empresas brasileiras são realmente nanicas. Para se meter em briga de cachorro grande não adianta ser luluzinha, tem de ser buldogue”, diz ele.
Sobre essa opção, comenta o sociólogo: “O paradoxo é que, ou o Estado se arma de uma musculatura poderosa ou não se mete, porque a briga em jogo não é para nanicos. O Brasil quer desempenhar um papel importante no cenário internacional: quer apoiar o Irã, Cuba, desestimular agressões. Sem musculatura, isso não se faz. Quer dizer, se grita e fica por isso mesmo. Sem poder de retaliação não dá em nada. Lamentavelmente, para nós socialistas, pelo menos para mim, é uma tendência mundial, e o Brasil está fazendo a lição de casa”.
Werneck Vianna é enfático ao afirmar que a origem desse processo está no Estado: “O Estado é como a central de inteligência de todo esse processo, na medida em que é ele que orienta o movimento de expansão da ordem burguesa e de concentração e verticalização do capital, de racionalização do sistema produtivo e se empenha em otimizar todas as possibilidades de expansão internas e externas”. Segundo ele, a política grão-burguesa – de expansão do capitalismo brasileira para além fronteira –, “está sendo referendada e apoiada por políticas de Estado. Nesse caso, as estatais têm desempenhado um papel muito importante, alavancando essa política de concentração e centralização de capitais e de lançamento do capitalismo brasileiro no mundo”.
O presidente do Instituto de Pesquisas Aplicadas – Ipea, Marcio Pochmman, outro dos entrevistados da revista IHU On-Line, também sublinha que o processo de formação de fortes grupos competitivos internacionalmente tem o dedo do Estado. Segundo ele, “é crescente a presença do Estado em qualquer setor econômico com o objetivo de fazer parte desse seleto grupo de corporações transnacionais, que cada vez mais são mistas diante de um espaço tão crescente de recursos públicos. Essa é a lógica do capitalismo, que, de certa maneira, faz com que desmorone a concepção dos Estados nacionais”.
O jornalista e economista Luiz Nassif também destaca na entrevista à IHU On-Line, o papel regulador do Estado na reorganização do capitalismo brasileiro, porém, fala na necessidade de uma contrapartida. Segundo ele, “o Estado e o BNDES, na condição de que estão escolhendo setores para serem os vitoriosos, têm a obrigação de atuar também através do planejamento das empresas e exigir que elas cumpram determinados compromissos. Essa é uma medida imposta em qualquer país civilizado. Isso não é interferência indevida; é papel regulador do Estado. Infelizmente, isso não está sendo feito”, afirma.
Ladislau Dowbor, por sua vez, falando sobre a reorganização do capitalismo brasileiro também destaca a importância do papel do Estado, citando particularmente o caso do PAC, investimentos segundo ele, “que são necessárias para o desenvolvimento de todos os setores da economia. Quando se realizam esses investimentos, promove-se o mercado interno, aumentam os salários, consumo, dinamizando a produção de bens de investimento. Assim, protege-se o Brasil da crise. Podemos dizer que melhora a situação econômica porque se geram economias externas para as empresas ao dotá-las de melhores infraestruturas. Também se cria uma situação conjuntural mais favorável porque aumenta a demanda agregada dos bens, salários e equipamentos necessários que acompanham os investimentos”.
O jornalista Bernardo Kucinski, é outro que está entre aqueles que veem no Estado a alavanca determinante na reestruturação do capitalismo brasileiro. Segundo ele, “o BNDES tenta formular políticas de fomento e sustentação de cadeias produtivas em setoriais, ameaçadas pela globalização”. Para ele, “ou isso é feito ou a empresa sucumbe no mercado global das megafusões. Nesse sentido, não cabe discutir quem ganha ou quem perde, e sim a forma como isso é feito e porque é feito em alguns casos (agronegócios, por exemplo) e não em outros (indústria farmacêutica, supermercados)”.
O economista Carlos Lessa, mais um dos entrevistados pela revista IHU On-Line, concorda com seus colegas: “Objetivamente, está passando por uma reorganização”, diz ele sobre o capitalismo nacional. Lessa, porém, não concorda que esteja apenas no Estado a ponta de lança desse processo. Ao contrário, diz ele, “nos últimos anos, debilitou-se profundamente a parte estatal. Não apenas uma quantidade muito expressiva de empresas estatais, federais e estaduais foram privatizadas, como, além disso, aquelas que continuaram sob o controle do Estado foram despojadas de muitas das suas dimensões. O que houve, sim, de relevante, foi uma atrofia significativa do Estado e uma redução também do setor privado nacional. Importantes segmentos privados nacionais passaram ao controle estrangeiro. Um fato torna isso visível: há 25 anos, toda a rede de comercialização por supermercado era nacional. A soberania objetiva nacional foi muito atrofiada, e o Estado brasileiro perdeu muitas das suas funções e instrumentos porque o neoliberalismo multiplicou essas agências reguladoras, que na verdade colocam fora da decisão política pública importantes segmentos da atividade econômica”, comenta o ex-presidente do BNDES.
Lessa, porém, destaca o papel do BNDES – braço do Estado – no apoio a esses grupos nacionais e comenta que o “que o BNDES fez para salvar enormes empresas nacionais e fazê-las gigantescas não é errado, porque, tecnicamente, um país precisa ter esses gigantes”. O economista alerta para o risco do país se transformar em uma Singapura: “O Brasil caminha para ser uma Singapura colossal: Hong Kong da América do Sul. Vão dizer que Hong Kong tem um padrão de vida alto. Sim, tem. Mas também tem as maiores favelas da Ásia. Hong Kong é terrível. Uma grande porcentagem da população vive em barcos ancorados permanentemente na baía. É uma miséria terrível, mas tem Hong Kong e os banqueiros de Hong Kong”.
Contradições e consequências do modelo
Muitos dos entrevistados destacam contradições e consequências nesse processo de concentração do capital e formação de grandes grupos. Uma das consequências da opção de fortalecer o capital nacional, diz Francisco de Oliveira, é que “esse processo beneficia diretamente essas empresas. Aumenta o poder delas na competição interna e, possivelmente, externa (…) e isso significa, no sistema capitalista, uma queda do poder real da força de trabalho, isto é, a classe trabalhadora passa a se enfrentar com coalizões de interesses do capital, que são amplíssimas e têm a capacidade de retalhar em qualquer setor”.
Em sua opinião, enfraquecem-se também nesse processo os movimentos sociais: “Havia movimentos sociais para atuar em processos específicos de trabalho. Esses movimentos rapidamente se enfraquecem porque passam a enfrentar-se com um adversário cujas proporções estão fora do alcance das organizações dos trabalhadores. O movimento social em geral perde com essa centralização de capitais. O ganho político é nulo, e o social é negativo”.
O movimento de reestruturação do capitalismo apresenta uma novidade que reside no fato de que ela subsume até forças sociais, alerta Luiz Werneck Vianna. Segundo ele, “esse movimento não se limita às elites econômicas da indústria, do agronegócio e está envolvendo também, no mínimo, a vida sindical. Basta olhar para a composição desse governo, onde todas as classes e frações de classes se encontram representadas. O agronegócio é um personagem-chave desse Estado brasileiro de hoje, assim como o mundo das finanças, dos serviços, da indústria. Os sindicatos também estão presentes, principalmente as centrais sindicais. Para que não fique só nisso, movimentos sociais que dizem respeito às questões raciais e de gênero também se encontram instalados no interior desse Estado. Na verdade, isso reedita, em um plano mais largo, mais fundo, em outras circunstâncias, o que foi o Estado Novo da época Vargas”.
O presidente do Ipea, Marcio Pochmman, está entre os que também alertam para o processo de concentração e centralização do capital. Segundo ele, “o que estamos observando nessas duas últimas décadas de predomínio da globalização, sobretudo financeira, e de desregulamentação do próprio Estado, é a constituição de grandes corporações transnacionais. Falava-se, antes da crise de 2008, da emergência de pelo menos 500 grandes corporações transnacionais, que dominariam todos os setores da atividade econômica. Nesse circuito de hipermonopolização do capital, os países que não tiverem grandes grupos econômicos e não forem capazes de fazer parte desses 500 grupos, de certa maneira, estarão de fora, alijados da competição de tal forma que passariam a ter um papel passivo e subordinado ao circuito de decisões desses 500 grupos. Então, a opção brasileira é se aproximar da concentração desses gigantes para, de certa maneira, fazer parte desse circuito de poucas, mas grandes empresas”.
O economista destaca na entrevista à IHU-On-Line que “a crise de 2008 mostrou que as grandes corporações privadas são tão grandes que podem quebrar, uma vez que o seu fracasso, enquanto setor econômico, colocaria por terra, inclusive, o próprio sistema econômico. Portanto, constata Pochmann, “nós estamos numa fase em que não são mais os países que têm empresas, mas empresas que têm países diante da dimensão das corporações com um faturamento, em grande parte das vezes, superior ao PIB dos países nacionais. Então, não há outra alternativa, no meu modo de ver, que não seja a construção desses grupos”.
O jornalista e economista Luiz Nassif se pergunta sobre os grupos econômicos que não tem musculatura para competir com os grandes: “Onde é que entra, nesse jogo, a pequena e média empresa, a cadeia produtiva de cada setor? Não se mudou essa lógica, ainda, porque a pequena e média empresa não fazem parte do jogo político. Toda a formação desses institutos só consegue entender aquele Brasil que existia na década de 60, que era um país sub-industrializado. Naquele contexto, a grande empresa era importante porque representava modernização, tecnologia. Hoje, o país é complexo. Existem diversas cadeias produtivas em todos os lugares. Então, os nossos economistas ainda não entenderam essa visão integrada. Ainda persiste aquela visão anacrônica de que focar na grande empresa financeira ou industrial é suficiente para o crescimento do país”.
Alguns dos entrevistados comentam que a reestruturação do capitalismo brasileiro está engolindo a política, ou seja, as diferenças ideológicas estão se esvaziando e cresce a concordância de que o caminho é esse mesmo – “a História do País, afinal, encontrou uma solução feliz”, sentencia Werneck Vianna.
O sociólogo Francisco de Oliveira, comenta que a concentração e centralização de poder econômico acaba se refletindo na política. Segundo ele, a “mudança de rota num sentido forte e mudanças do fundamento da política econômica de moeda, crédito, câmbio, isso não vai haver. Talvez a dona Dilma, como é mulher, coloque um lacinho de fita na cabeça do PIB; e o Serra, como é mais carrancudo e mais feio, coloca uma gravata borboleta, que é o símbolo de mau gosto. Mas, mais do que isso, não vai haver nada”.
Sobre as consequências dessa reorganização do capitalismo brasileiro, Werneck Vianna, concordando com Chico de Oliveira, comenta que “a política é a grande derrotada nesse processo”. Em sua opinião, esse modelo, “ao mesmo tempo em que tutela os movimentos sociais, mantém a sociedade desorganizada, com políticas de clientela de massa. Por onde a política vai passar? Ela tem passado por esse “parlamento” das grandes corporações, que tem sua sede no interior do próprio governo. Então, o ministro da agricultura pode perfeitamente conviver com o ministro do meio ambiente e o do desenvolvimento agrário. Cada um deles é portador de interesses determinados, mas esses conflitos são retidos no interior do governo, e apenas residualmente se manifestam no plano da sociedade. O que está unificando o país hoje é um projeto expansionista burguês com vocação grão-burguesa”, diz.
Rumo a um capitalismo decente?
As entrevistas permitem a interpretação de que há certa rendição ao fato de que não resta outro caminho senão o do neo-keynesianismo, política aliás, saudada como progressista quando se tem presente os anos recentes do neoliberalismo. Sendo assim, essa esquerda, dá como ponto de partida que não há mais alternativas ao capitalismo, quando muito se tem a pretensão de torná-lo mais decente, como atesta Ladislau Dowbor: “Uma reorganização do capitalismo e mais, a meu ver, uma evolução de um capitalismo selvagem para um capitalismo mais decente”.
Dowbor se mostra animado com as perspectivas. Segundo o economista e professor na PUC-SP, “nós temos, em termos crescentes, redistribuição de renda sob várias formas: aumento da massa salarial, do salário mínimo, das aposentadorias. Além disso, existem programas como o Bolsa Família, Programa Universidade para Todos – ProUni, Luz para todos, Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf, ou seja, um conjunto de incentivos que estão redistribuindo a renda e tornando o capitalismo menos injusto. Esse é um avanço bastante significativo, mas não se deve exagerar no que isso significa. Há avanços muito significativos também na área ambiental. Digamos que o país começou a proteger seus recursos, e isso é particularmente sensível com a situação da Amazônia: o desmatamento caiu de 28 mil Km² para 7 mil Km². Continua sendo um desastre, a Mata Atlântica continua sendo prejudicada. Mas, no conjunto, há avanços”.
O jornalista Bernardo Kucinski, um dos entrevistados pela revista do IHU, é outro que vê com otimismo a reorganização do capitalismo brasileiro. Em sua opinião, se percebe “a mudança visível foi de uma economia de estagnação e desemprego para uma economia de crescimento e criação de emprego formal em grande escala, embora sem melhora expressiva na recuperação da renda do trabalhador. Melhoras significativas na redução da miséria na habitação e demarcação de reservas indígenas e ambientais. Melhoras importantes na reestruturação do Estado, desmantelado no governo FHC, especialmente na Polícia Federal e agências ambientais, mas não decisivas e, nem ao que parece, irreversíveis”.
O programa anti-capitalista, em voga em outros tempos na esquerda, perde força. A força agora reside no aparelho estatal e não mais nas forças sociais da sociedade, no movimento social. Com diz Rudá Ricci, “o desejo de alterar a lógica estatal a partir da mobilização social foi revertido: foi a lógica estatal que subjugou o anti-institucionalismo e as práticas de democracia direta".
Outro aspecto passível de interpretação a partir de algumas entrevistas é o fato de que se confunde inclusão social com o acesso ao mercado de consumo e não necessariamente com a resolução dos graves e seculares problemas nacional. Sendo assim, o aumento do consumo, não menos importante, é destacado com um grande ganho, mesmo que permaneçam os problemas estruturais na área da saúde, educação, saneamento, etc.
Crise climática. Déficit no debate
O tema, entretanto, que manifesta maior déficit entre os entrevistados é acerca da pouca ou inexistente criticidade ao modelo em curso e seus impactos ambientais. Aqui, a sensação que se tem é que os entrevistados não consideram o tema relevante. A leitura de que o mundo está confrontado com uma crise estrutural e não somente conjuntural e de que as crises econômica, ecológica, alimentar, energética são manifestações de uma crise maior, uma crise de modelo de desenvolvimento de tipo civilizacional – particularmente da sociedade capitalista – se organizar passa ao largo das análises.
Reiteradamente as análises de conjuntura aqui publicadas têm chamado a atenção para aquilo que se considera um tema da maior grandeza mundial: a crise climática. Temos destacado, a partir de inúmeras análises que o planeta Terra dá sinais cada vez mais reiterados e evidentes de esgotamento. Os sistemas físicos e biológicos alteram-se rapidamente como nunca antes aconteceu na história da civilização humana. Alertamos para o fato de que é o tipo de desenvolvimento econômico implantado, especialmente, ao longo dos últimos dois séculos, baseado no paradigma do crescimento econômico ilimitado, na ideia de progresso infinito e na concepção de que os recursos naturais seriam inesgotáveis e de que a nossa intervenção sobre a natureza se daria de maneira neutra, que se encontra a razão do impasse que vivemos.
Quando olhamos o Brasil e o seu processo de reestruturação do capitalismo percebe-se uma distância enorme com essa preocupação. Em tese, existe na retórica, mas está ausente na prática. O governo brasileiro está absolutamente convencido de que o seu papel é induzir o crescimento da economia, função que exerce através do binômio “Estado financiador” e “Estado investidor”, conforme indiretamente atestam os entrevistados. A reestruturação do capitalismo brasileiro não leva em conta a crise maior: a crise climática.
Quando esse tema é confrontado com as entrevistas, depreende-se que os entrevistados permanecem presos à lógica do capitalismo industrial – a obsessão pelo crescimento econômico. É incontestável que o PAC é refém de um modelo de desenvolvimento preso ao século XX porque se coloca de costas para a problemática ambiental e reafirma a lógica produtivista da sociedade industrial. Exatamente no momento em que se fala em descarbonizar a economia [basta pensar no esforço de Copenhague], o país reafirma um modelo tributário ainda da Revolução Industrial. Que alguns entrevistados não concordem com essa interpretação é natural, porém, afirmar que “esses ambientalistas que combatem hidroelétricas deveriam ser levados pelo governo a visitar Itaipu, uma das maravilhas da engenharia brasileira”, como afirma Kucinski é desqualificar a crítica dos que se contrapõem ao modelo e elevar uma obra de enormes impactos ambientais – submersão das Sete Quedas – e sociais a “maravilha” do mundo. Só mesmo numa visão economicista isto é possível!
Bernardo Kucinski está entre aqueles que não veem sentido nos protestos e críticas ao governo Lula de anti-ambiental. Falando sobre o PAC, considera que “não vai na contramão da crise ecológica”, e afirma: “uma das maiores contradições desse tipo de ambientalismo é a condenação da energia limpa e barata gerada pelas hidroelétricas quando – objetivamente – a alternativa é a termelétrica, esta sim, das mais caras e poluentes. As hidroelétricas, além disso, regulam a vazão das águas, reduzindo a frequência e as severidades das enchentes e das secas, garantem o abastecimento de água, criam reservas turísticas, de lazer, de pesca e de navegação. Esses ambientalistas que combatem hidroelétricas deveriam ser levados pelo governo a visitar Itaipu, uma das maravilhas da engenharia brasileira. Eu amo as hidroelétricas bem construídas”, afirma ele. Ou seja, reduzir o debate à escolha entre apenas duas fontes energéticas.
Ladislau Dowbor está entre os que minimizam a problemática ambiental. Segundo ele, “os nossos grandes problemas ecológicos são basicamente as queimadas e o péssimo uso que fizemos de recursos de transporte”. Segundo ele, “nós temos uma matriz energética basicamente limpa, e temos uma perspectiva de bicombustíveis que não pressionam cereais, porque é baseado em cana-de-açúcar, que exige, em termos de território, espaços bastante limitados. Temos muitos espaços a ocupar, somos a maior reserva de terra parada no planeta. No conjunto, o país está evoluindo muito bem”. Dowbor vai mais longe ao afirmar que “lutar com muita força contra as hidrelétricas não é de bom senso”.
Poder-se-ia, nesse sentido, afirmar que em nome de um progressismo de esquerda, alguns autores tornam-se conservadores porque refutam o debate sobre a emergência da crise climática. Destacamos aqui as análises de José Eli da Veiga, Washington Novaes, Ricardo Abramovay, intelectuais que talvez nem se arvorem como sendo de esquerda, mas que estão sintonizados com a nova agenda mundial, e nesse sentido contribuem para o debate dos novos desafios que surgem nesse início de século.
O Brasil está atrasado
O economista José Eli da Veiga em uma recente entrevista ao IHU comenta que o Brasil está perdendo o bonde da história, exatamente por uma visão obtusa de desenvolvimento. Comentando a Conferência de Copenhague, ele afirma: “A importância que eu dou para Copenhague não é tão grande. A transição ao baixo carbono está em curso faz tempo e independe de Copenhagen. Os países que mais rapidamente perceberam que em vez de um problema, uma restrição, isso é uma grande oportunidade para uma nova etapa do capitalismo, já estão há muito tempo investindo em ciência, tecnologia e inovação. Assim, eles possuindo essas tecnologias que poderão ser a solução, terão as oportunidades de negócio. Isso está ocorrendo e vai continuar ocorrendo, seja qual for o resultado de Copenhague. E os países emergentes, como o Brasil, que ficaram nessa linha obtusa de resistência, não investindo em ciência e tecnologia com prioridade, não terão essas tecnologias e continuarão tendo que discutir essa questão de como vão comprar tecnologia dos outros através da tal transferência de tecnologia”.
Segundo Eli da Veiga, “na verdade, o que está ocorrendo é uma tremenda corrida pelas tecnologias, que poderão levar à superação da era fóssil. E outra vez serão os mesmos países que fizeram a revolução industrial que vão levar a melhor nessa. E os países emergentes agiram de uma forma totalmente errada até agora, perdendo a oportunidade de mudar esse jogo”.
O economista afirma que na questão do clima especificamente, infelizmente, o Brasil está atrasado e faz uma dura crítica às elites brasileiras: “As elites brasileiras, em geral, estão absolutamente cegas. Elas estão fazendo a mesma coisa que fizeram no século XIX com a questão fundiária, e no século XX com a educação. Não há foco no Brasil em relação à ciência, à tecnologia e à inovação. E isso é um atraso. O Brasil não será um país desenvolvido neste século se continuar nessa perspectiva”.
O economista faz um alerta: “Não dá mais para fazer essa separação [da economia com o meio ambiente]. Diz ele: “As pessoas que continuam a separar economia e meio ambiente não entenderam nada. Há duas questões no mundo hoje em termos de décadas e em termos de século XXI e, ou o Brasil se insere nisso ou está perdido. Essas duas questões são: o aquecimento global e a ressurreição da China. O Brasil tem que ser competitivo, mas, ao mesmo tempo, com sustentabilidade ambiental”.
Washington Novaes também contribui com esse debate ao alertar que o Brasil se encontra numa encruzilhada histórica que pode ser decisiva para o futuro de nação soberana e um ganho comparativo mundial. Segundo ele, “um país que tem a biodiversidade que o Brasil tem, os recursos hídricos, a insolação o ano todo, enfim, com a riqueza que o país tem, deveria ter uma estratégia que colocasse esse fator escasso no mundo numa posição privilegiada como base de políticas. Mas essa estratégia não existe”.
Que tipo de crescimento econômico queremos?
A grande questão posta hoje é que tipo de crescimento econômico queremos? Por muito tempo, inclusive na esquerda, acreditou-se que o crescimento econômico seria a varinha de condão para a resolução de todos os problemas. Particularmente da pobreza. A equação é conhecida. O crescimento econômico produziria um círculo virtuoso: produção-emprego-consumo. Porém, o axioma de que apenas o crescimento econômico torna possível a justiça precisa ser complexificado. Será que o grande projeto brasileiro é transformar todos os cidadãos em consumidores?
É preciso complexificar o debate. Por isso temos insistido no princípio da “ecologia da ação” de Edgar Morin como um princípio orientador para um projeto de sociedade. Segundo Morin, “desde o momento em que um indivíduo empreende uma ação, qualquer que seja ela, esta começa a escapar de suas intenções. Ela entra num universo de interações e finalmente o meio ambiente apossa-se dela num sentido que pode tornar-se contrário ao da intenção inicial. Com frequência a ação retorna em bumerangue sobre nossa cabeça”. O que Morin quer dizer é que toda ação implica em efeitos nem sempre controláveis e que mesmo uma ação realizada com o melhor dos propósitos, pode fugir ao controle e voltar-se contra o objetivo inicial.
O princípio da “ecologia da ação” destaca que doravante toda e qualquer ação deve estar subordinada ao imperativo da crise ecológica, ou seja, faz-se necessário que tenhamos presente o fato de que tudo aquilo que realizamos tem consequências, e sob esta perspectiva urge presumirmos os possíveis efeitos colaterais de nossa ação. A “ecologia da ação” vale ainda mais para as decisões institucionais, particularmente aquelas do mundo dos negócios e do Estado que possuem repercussão maior sobre o conjunto da população e do meio ambiente.
A “ecologia da ação” questiona o atual paradigma civilizacional produtivista-consumista e remete para a necessidade de uma outra economia, outro estilo de vida, outra civilização, outras relações sociais e com o meio ambiente. Faz-se necessário um paradigma que rompa com a racionalidade técnico-instrumental instaurada pela modernidade. Aqui, tanto a direita como determinada esquerda não estão à altura da tarefa exigida. Tanto o liberalismo como certa leitura dogmática do marxismo repousam sobre a noção de um progresso infinito, e repetem exaustivamente o mantra do crescimento. Até mesmo parcela significativa do movimento social é tributária de um jeito de pensar e agir preso às categorias da sociedade industrial, e daí a dificuldade de assimilação em sua agenda de temas que estão para além dessa sociedade.
Propostas simplificadas e descontextualizadas que reproduzem o receituário keynesiano e marxista – matrizes teóricas de outro momento histórico – não nos ajudam a sair da crise, porque são mais parte do problema do que da sua solução, uma vez que bebem na mesma fonte: o desenvolvimento/crescimento econômico como saída para a crise.
Agora, urge a consciência de que a crise ecológica é, antes de tudo, expressão de determinado modo produtivo da sociedade industrial, em vias de esgotamento. Por isso, insistir teimosa e cegamente no produtivismo econômico é ameaçar toda a vida da e na Terra, incluídos os seres humanos, colocando em grave risco a vida das gerações futuras. É impossível evitar uma catástrofe climática sem romper radicalmente com os métodos e a lógica econômica que reinam há 150 anos.
Talvez seja inclusive muito tarde para isso como atesta James Lovelock, para quem “os humanos são muito estúpidos para evitar que as mudanças climáticas impactem radicalmente sobre as nossas vidas ao longo das próximas décadas”.
________________________________________________________
Fonte: site do Instituto Humanitas Unisisnos