Agora, no Quirguistão, a “revolução das Tulipas” de 2005 sofre revés também imprevisto. Está passando por uma mutação, e alguma coisa terrível está acontecendo no seu DNA. Até essa semana, era totalmente impensável que uma dessas ‘revoluções coloridas’ acontecesse contra regime apoiado pelos EUA. Afinal, como seria possível tal coisa, se os EUA inventaram essas ‘revoluções coloridas’ precisamente para promover a troca de regime nos Estados que vivessem fora de sua esfera de influência?

Que nome terá a ‘revolução colorida’ que se vê essa semana no Quirguistão? Ninguém pensou em nome, até agora. Quando os EUA são padrinhos, sempre têm nome pronto. Ano passado, no Irã, a revolução que não houve seria, se tivesse dado certo, a “revolução do Twitter”.

É altamente improvável que o presidente Kurmanbek Bakiyev consiga salvar o próprio emprego. Além de Washington, nenhuma outra grande capital está exigindo que o presidente se reconcilie com os revolucionários quirguistes.

A diplomacia dos EUA na Ásia Central vive dias de completa catástrofe. E até que as coisas estavam indo bem, antes do desastre. Pela primeira vez, parecia que Washington vencera uma no Grande Jogo, pusera freio e rédeas no regime do Quirguistão, embora a conquista tenha implicado ataque mortal, a sangue frio, contra todas as regras da democracia, dos direitos humanos e contra a lei – todos os princípios que os EUA tanto pregam. Em termos bem gerais, Washington comprou toda a família Bakiyev, transação na modalidade “porteira fechada”, sem tomar conhecimento das muitas denúncias de desmando no exercício do(s) cargo(s).

Segundo inúmeras avaliações, a família Bakiyev foi beneficiária direta de gigantescos contratos assinados pelo Pentágono, ostensivamente para venda de suprimentos para a base aérea dos EUA em Manas, próxima da capital do Quirguistão, Bishkek.

É prática que os EUA desenvolveram e aprimoraram no Afeganistão, originalmente para ajudar e trazer de volta ao jogo várias importantes personalidades políticas que haviam caído do então fraturado tabuleiro de xadrez afegão. No Quirguistão, o plano de jogo pareceu relativamente simples, porque os necessitados de padrinho (e contratos) não eram muitos. Algumas estimativas falam de 80 milhões de dólares: seria a quantia que o Pentágono pagou a empresas cujos proprietários são membros da família Bakiyev.

Basta considerar o mapa da Ásia Central, para ver por que os EUA entenderam que 80 milhões de dólares ao ano seria pequeno preço a pagar para estabelecer seu domínio no Quirquistão. O país é das peças mais valiosas do patrimônio imobiliário da geopolítica da região.

O Quirguistão faz fronteira com a Região Autônoma Xinjiang da China. Há algum tempo, uma campanha de boatos e sussurros dizia que na base de Manas, projetada como principal base de suprimento e apoio para as tropas dos EUA no Afeganistão, foram instalados equipamentos eletrônicos de alta sofisticação; teriam sido instalados lá, para que o Pentágono pudesse “espiar” na direção de Xinjiang, onde operam importantes bases de mísseis dos chineses.

Não bastasse, uma considerável comunidade de uigures vive no Quirquistão; e quase 100 mil quirguistes étnicos vivem em Xinjiang. O Quirguistão reúne todos os atributos potenciais para servir como campo-base central onde se poderão cevar e exportar muitas atividades orientadas para desestabilizar a situação em Xinjiang.

Ainda mais, o sul do Quirguistão é próximo do Vale Ferghana, berço histórico do radicalismo islâmico na Região. Os grupos militantes baseados no Afeganistão e no Paquistão transitam quase sempre pelo Quirguistão, a caminho para o vale Ferghana. Em 2005, militantes baseados no sul do Quirguistão tiveram participação ativa e central nos tumultos de Andijan, no Uzbequistão.

Num momento em que a retirada dos EUA do Afeganistão está cada vez mais à vista do mundo, envolvendo, de um ou de outro modo, a reconciliação entre EUA e Talibã, o Quirguistão passa a ser Estado-pivô em qualquer estratégia que os EUA desenhem com vistas ao avanço da OTAN na direção do coração da Ásia Central.

Dito de outro modo: o Quirguistão é peça de inestimável valor em qualquer estratégia dos EUA que vise a usar o Islã político para forçar a troca de regime no Uzbequistão e no Tadjiquistão. Como no caso da Geórgia, no Cáucaso, a importância do Quirguistão não está nos recursos naturais como petróleo ou gás, mas, sim, na extraordinária localização geográfica – de onde é possível tentar modular a política regional.

As próximas semanas e meses serão de desafio para a diplomacia dos EUA.

Embora a chefe do governo de transição Roza Otunbayeva tenha dito na 3ª.-feira que “mantém-se o atual status quo” no que diga respeito às bases militares, é situação que se pode modificar a qualquer momento. No mínimo, o novo governo pode decidir renegociar o aluguel de 60 milhões de dólares ao ano, que os EUA pagam hoje.

Otunbayeva era ministra das Relações Internacionais antes da “revolução das Tulipas” e ocupou vários cargos durante a era soviética. No Quirguistão também há uma base soviética. O primeiro-ministro russo Vladimir Putin foi o primeiro líder mundial a reconhecer o novo governo em Bishkek. É muito evidente, aí, a afinidade entre o novo governo do Quirguistão e Moscou.

Nada garante tampouco que o novo governo em Bishkek terá interesse em manter a colaboração militar com Washington, sobretudo no que tenha a ver com os planos para instalar um centro de contraterrorismo na cidade de Batken, no sul do país, próximo ao vale Ferghana. Esses planos preveem a fixação de conselheiros militares dos EUA em território do Quirguistão, não longe da fronteira chinesa.

Evidentemente, os EUA pressionaram demais, excessivamente. Por outro lado, despiram completamente a fantasia de campeão da causa da democracia, ao apoiarem Bakiyev – governo já denunciado por corrupção, continuísmo e práticas autoritárias, além dos muitos desmandos no campo das finanças. (Soará cínico, de fato, inverossímil, Washington pretender que, outra vez, estaria defendendo valores democráticos na Ásia Central.)

A diplomacia dos EUA desestabilizou gravemente o Quirguistão. Perdida a posição de país relativamente estável na região em 2005, quando eclodiu a “revolução das Tulipas”, o país vê-se hoje jogado para baixo da mesa de qualquer estabilidade política, menos estável, até, que o Tadjiquistão. E todo um grande arco, que se estende do Paquistão e Afeganistão ao Tadjiquistão e Quirguistão, tornou-se altamente – e muito perigosamente – volátil.

Com certeza ainda estamos muito longe do fim dos tumultos que, essa semana, já deixaram 40 mortos e 400 feridos no Quirguistão. A velha divisão norte-sul no Quirguistão reapareceu, e é significativo que Bakiyev tenha fugido da capital Bishkek, para sua base de poder no sul, em Osh. No sul, predomina a etnia uzbeque.

Farão urgente e grave falta em Bishkek cabeças políticas competentes para gerir os difíceis tempos que se avizinham, se a divisão étnica que cinde o Quirguistão não for imediatamente selada e se se perder a unidade nacional. A população divide-se em cerca de 65% quirguistes (muçulmanos sunitas), e cerca de 14% uzbeques étnicos. Paralelamente, os guerrilheiros islâmicos estão esperando nos arredores, prontos para tirar vantagem dessa eventual escorregada catastrófica.

A situação socioeconômica no Quirguistão já é terrivelmente sombria. Todos os ingredientes para uma disputa interna violenta estão já em circulação. O Quirguistão escorrega perigosamente na direção de se converter no primeiro “Estado fracassado”, do espaço pós-soviético.

O maior perigo é que a instabilidade escorra pelo vale Ferghana e afete o Uzbequistão. Há ali um vulcão escondido na questão jamais resolvida da nacionalidade, que ferve superficialmente logo abaixo da superfície, entre uma considerável massa populacional de etnia uzbeque no sul [do Quirguistão], em atrito com a comunidade étnica nativa do Quirguistão.

Ainda não se sabe com clareza se houve algum tipo de auxílio externo em apoio à oposição local. Mas não deixa de soar muito irônico que a mudança de regime em Bishkek tenha acontecido no mesmo dia em que os presidente dos EUA e da Rússia encontravam-se no Castelo Praga. Na 3ª.-feira, assinaram o primeiro grande pacto de controle de armas entre EUA e Rússia na era pós-Guerra Fria; espera-se que esse pacto opere como botão ‘desliga-religa’ das relações entre os dois países.

Verdade é que o primeiro teste crucial dessa operação ‘desliga-religa’ poderá acontecer imediatamente, com Obama tendo de pedir a ajuda de Medvedev para que os EUA não sejam expulsos da base de Manas, não, pelo menos, antes de que a política de Obama para o “Af-Pak” ultrapasse o ponto de virada, previsto para julho de 2011, quando se esperam os primeiros movimentos de retirada de soldados do Afeganistão. Se Obama conseguir que Medvedev o ajude, as ‘revoluções coloridas’ como as que já houve passarão a ser item de um patrimônio partilhado entre EUA e Rússia: um lado semeia o golpe, o outro lado recolhe os frutos – e vice-versa.

Mas a pílula será mais amarga de engolir, para Washington. Os russos já manifestaram interesse especial pelas repúblicas ex-soviéticas; e os EUA já declararam que não reconhecerão qualquer pressuposto privilégio de Moscou. Mas, se se pôs em situação de ter de pedir ajuda a Moscou para não perder poder e influência no Quirguistão… Washington terá de desdizer o que disse. Claro que Moscou exigirá garantias, em troca: todas, claro, com vistas a conter o avanço impetuoso da OTAN no Cáucaso e na Ásia Central.

Como mostrou o bem recente e primeiro tour regional pela Ásia Central, do representante especial dos EUA para o Afeganistão Richard Holbrooke, Washington estava às vésperas de acelerar o processo de expandir o objetivo estratégico do Af-Pak até a região de fronteira Rússia-China.

Holbrooke, muito mal-intencionadamente, falou de uma ameaça da al-Qaeda contra a Ásia Central, sugerindo que a OTAN teria trabalho a fazer na região, como suposta única organização de segurança competente para assumir a perigosíssima tarefa de caçar Osama bin Laden pelas estepes e desertos mortais de Kizil Kum e Kara Kum.

O tour de Holbrooke – que aconteceu imediatamente depois de o comandante do Comando Central dos EUA David Petraeus ter passados dois dias em intensas consultas em Bishkek –, é claro, foi observado por todas as capitais regionais. E, como agora se vê claramente, toda a futura estratégia dos EUA para a Ásia Central ficou completamente sem chão. Outra vez.

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Tradução: Caia Fittipaldi

Asia Times Online– http://www.atimes.com/atimes/Central_Asia/LD10Ag01.html

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