Operação Araguaia: a Guerrilha vista por dentro
Os autores tomaram o cuidado de quebrar aqui e ali a monotonia com tons que adornam a narrativa. Na página 511, por exemplo, Eumano e Taís relatam o diálogo entre o guerrilheiro Daniel Callado, preso na base militar da cidade de Xambioá, e o soldado Josean José Soares. “O que você faz num lugar desses?”, perguntou o soldado. Daniel respondeu: “Um dia você vai saber”. Com Operação Araguaia, lançado em circuito comercial com grande divulgação, aquela resposta de Daniel passa a ter significado mais abrangente.
Esta forma de descrever os acontecimentos da Guerrilha do Araguaia — muitos já bem conhecidos —, combinada com informações de uma grande quantidade de documentos inéditos, ao mesmo tempo dá um colorido à narrativa e empresta credibilidade às informações. Uma revelação que impressiona é o depoimento de Manoel Jover Telles, integrante do Comitê Central e dirigente do PCdoB no Rio de Janeiro, à repressão no dia 8 de dezembro de 1976 — uma confissão de que ele traiu seus camaradas. Segundo o livro, em tom cordial Jover Telles fez um histórico do Partido e recordou o relato de Ângelo Arroyo sobre a Guerrilha. Depois, fez duras críticas aos comunistas. Num trecho, ele se exalta: “Basta, é demais!”.
Reunião na Lapa
Ao proceder assim, Jover Telles atuou como um dos principais protagonistas da última ação da ditadura militar contra a Guerrilha. Operação Araguaia revela que Pedro Pomar e Haroldo Lima, desconfiados de seu comportamento no Rio de Janeiro, conversaram com ele antes da reunião da direção do Partido para debater a ação do PCdoB no Sul do Pará, que se iniciaria no dia 14 de dezembro de 1976 no bairro da Lapa, em São Paulo. Mas foram convencidos de que o dirigente carioca não havia se mancomunado com a repressão. Um erro fatal. No dia 16 de dezembro, ocorreu o episódio que ficou marcado como a derradeira chacina da ditadura militar. A operação foi montada com muita engenhosidade e executada com brutal perversidade.
Nove integrantes do Comitê Central haviam se reunido nos dias 14 e 15. No segundo dia à noite, João Batista Franco Drummond e Wladimir Pomar — filho de Pedro Pomar — deixaram a casa da Lapa. Pouco depois, ambos foram presos e encaminhados ao DOI-Codi. Nos dias seguintes, outros dirigentes do PCdoB seriam presos nas mesmas circunstâncias. Na madrugada do dia 16, Drummond morreu nas mãos dos torturadores. Na alvorada desse mesmo dia, o local da reunião foi metralhado. Estavam na casa Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e Maria Trindade — esta última uma militante do Partido encarregada das tarefas domésticas. Pomar e Arroyo foram chacinados.
Maria Trindade foi se juntar aos demais presos no DOI-Codi: Elza Monnerat, Wladimir Pomar, Aldo Arantes e Haroldo Lima. Segundo informações levantadas pelo PCdoB na ocasião, somente Jover Telles poderia dar as indicações para a ação repressiva. No depoimento revelado por Operação Araguaia, ele deu nomes e codinomes dos dirigentes comunistas e falou da existência de um “aparelho” do Partido em São Paulo. Num determinado momento da conversa, diz o documento, o dirigente carioca usou a expressão “nosso amigo” ao se dirigir a um dos interrogadores. Jover Telles foi expulso do PCdoB no 6º Congresso, realizado em fevereiro de 1983.
A vida de Carlos Danielli
Outro mérito notável do livro é a revelação, com base em informações dos militares, de datas e circunstâncias em que muitos guerrilheiros foram presos e mortos. A obra revela ainda como a repressão destruiu os depósitos de suprimentos da Guerrilha. Na pagina 547, os autores afirmam que uma série de reportagens publicadas pelo jornal Correio Brasiliense, a partir de 27 de julho de 2003, contestou a versão oficial de que não há documentos sobre a Guerrilha. Era uma farta documentação produzida pelos organismos de informação da ditadura e guardada por um militar “interessado em preservar a história do Brasil”. Os papéis chegaram ao jornal pelas mãos da pesquisadora Taís Morais, co-autora do livro e filha de um oficial do Exército.
A obra registra ainda a contribuição decisiva da direção do PCdoB que estava em São Paulo e no Rio de Janeiro. Como revelou o livro Testamento de Luta – A vida de Carlos Danielli, lançado em 2002 pela editora Anita Garibaldi, Taís e Eumano explicam com detalhes o papel essencial para a Guerrilha dos dirigentes que permaneceram nas cidades. “Os estudos para a implantação de uma guerrilha rural contaram, desde o início, com a participação de Danielli”, escrevem os autores de Operação Araguaia na página 235. Na página 381, eles reproduzem o desafio de Danielli aos seus algozes: “Eu sei como chegar à guerrilha. Sei também onde estão o Maurício Grabois e o João Amazonas, mas não vou dizer. Podem continuar.”
Documentos do PCdoB
Há no livro uma série de imprecisões e de pequenos defeitos que, se não compromete a obra, a debilita. O uso do tom panfletário da chamada “grande imprensa” predomina quando os fatos exigem análises aprofundadas. Os adjetivos “esquerdistas” e “subversivos” para se referir aos guerrilheiros, por exemplo, são um recurso desnecessário. Esses pecadilhos recorrentes deixam entrever um certo preconceito típico de um modelo de jornalismo que dispensa o rigor na apuração dos fatos em nome de uma falsa imparcialidade. Um exemplo claro disso aparece já na introdução quando os autores dizem que “o radicalismo das duas partes incentivou a luta fraticida que se daria”.
Outro exemplo de imprecisão é a versão de que a luta no Araguaia era por uma “revolução comunista”. Isso se deve ao fato de a obra usar pouco os documentos que o PCdoB produziu ao longo das últimas quatro décadas. Muitas formulações chegam a ser ingênuas. É o caso, por exemplo, dos motivos que teriam levado ao “racha” do Partido entre o final da década de 50 e início da década de 60. “Kruchev comandou uma mudança de rumo na política soviética. Abandonou a doutrina da luta armada e passou a defender a transição pacífica como estratégia para se chegar ao socialismo. A corrente de João Amazonas alinhou-se aos stalinistas, manteve a violência revolucionária (…)”, escreveram.
Uma boa notícia
O peso desproporcional aos documentos dos dois lados é talvez o maior defeito do livro. A narrativa também está repleta de simplismos. Outro exemplo que chama a atenção é a insistência dos autores em lembrar que os comunicados da Guerrilha à população omitiam a participação do PCdoB na organização do movimento armado. O livro apresenta ainda falhas como a descontinuidade de ações. É o caso do restabelecimento do contato da Guerrilha com Carlos Danielli em São Paulo, depois do primeiro ataque da reação, e das circunstâncias em que João Amazonas e Elza Monnerat não puderam retornar ao palco dos combates em abril de 1972. Em outra passagem, o livro diz que muitos guerrilheiros desejavam abandonar a área mas, com exceção dos casos amplamente conhecidos, não demonstra nenhum fato para comprovar tal informação. Pelo contrário.
Em resumo, pode-se dizer que a publicação de Operação Araguaia é uma boa notícia — a obra amplifica as vozes que denunciam as atrocidades cometidas pela ditadura militar. A Guerrilha do Araguaia, somada a outras ações democráticas, foi fundamental para a derrubada do regime dos generais golpistas. As forças militares mobilizadas para o combate final foram gigantescas. A reação avaliou a dimensão do movimento guerrilheiro e chegou à conclusão de que ele era resultado de um planejamento estratégico do PCdoB. Houve, no final das contas, um choque entre duas concepções para o país — uma mobilizou um ideal democrático e outra uma gigantesca máquina de guerra fascista. A história mostrou que o ideal democrático estava com a razão. A publicação de Operação Araguaia comprova isso.
Artigo originalmente publicado no Portal Vermelho no dia 4/5/2005