O coração da Guerrilha do Araguaia
“Companheiros, dirijo este Partido — como principal dirigente, digamos assim — desde 1962. Claro que não era somente eu, pois se tratava de uma direção coletiva de companheiros abnegados, de quem não posso falar sem lembrar com saudades e com respeito pela sua combatividade — companheiros como Maurício Grabois, Pedro Pomar, Lincoln Oest, Carlos Danielli, Ângelo Arroyo, Luis Guilhardini e outros tantos que estiveram presentes na direção deste Partido e que pagaram alto preço pela coragem de desafiar um regime de traição e brutalidade em nosso país, para defender os interesses do nosso povo. Esses companheiros foram todos assassinados pela repressão e morreram com honra no seu posto de luta."
Pronunciamento de João Amazonas no 10º Congresso do Partido Comunista do Brasil (PCdoB)
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Nestes dias em que as descobertas sobre a Guerrilha do Araguaia avançam, é oportuno lembrar um aspecto raramente mencionado a respeito daquele grande feito do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) — a atuação dos dirigentes comunistas que nunca pisaram no teatro da batalha militar, mas sem os quais aquele movimento de resistência não teria sido possível. Michéias Gomes de Almeida, o Zezinho do Araguaia, diz que para os guerrilheiros Carlos Nicolau Danielli, o então secretário de organização do Comitê Central, era o coração do PCdoB. "Quando soubemos que ele havia tombado, acabou — porque, para mim, quando o coração pára, a coisa fica difícil", diz ele. Trabalhavam com Carlos Danielli, em São Paulo e no Rio de Janeiro, pela Comissão Executiva do Partido, Pedro Pomar, Lincoln Cordeiro Oest e Luiz Guilhardini.
Carlos Danielli, o dirigente de maior responsabilidade sobre as tarefas de infra-estrutura do movimento de resistência, ficou quase quatro dias nas mãos dos assassinos que agiam na estrutura repressiva montada pela ditadura militar. Preso no início da noite do dia 28 de dezembro de 1972, ele foi lentamente assassinado. Nada revelou aos seus algozes. Já no início do "interrogatório", ele disse: "É disso que vocês querem saber (a Guerrilha do Araguaia)? Pois é comigo mesmo. Só que eu não vou dizer." Em diversas ocasiões, durante as torturas, Carlos Danielli afirmou: "Só faço o meu o meu testamento político." No intervalo de uma sessão de sevícias, jogado num cubículo infecto, ele escreveu na parede com o seu próprio sangue: "Este sangue será vingado."
Carlos Danielli foi preso quando restabelecia o contato com a Guerrilha, depois do primeiro ataque da repressão no Sul do Pará iniciado no dia 12 de abril de 1972. A Comissão Executiva do PCdoB havia sido dividida em duas partes. Uma — composta por João Amazonas, Maurício Grabois, Elza Monnerat e Ângelo Arroyo — ficou encarregada de dirigir a Guerrilha no Araguaia. Outra — composta pelos quatro dirigentes já mencionados — ficou em São Paulo e no Rio de Janeiro. (Dynéas Aguiar, também integrante da Comissão Executiva, foi enviado ao exterior em missão política no dia 5 de novembro de 1969.) João Amazonas havia viajado para São Paulo pouco antes da chegada da repressão no Sul do Pará, onde participou das atividades alusivas aos 50 anos de existência do Partido, e na volta não pôde entrar na região da Guerrilha devido ao ataque dos militares. O mesmo ocorreu com Elza Monnerat, que acompanhou João Amazonas por motivo de saúde.
Carta enviada por Maurício Grabois
O contato só foi restabelecido com a chegada em São Paulo da guerrilheira Criméia Alice Almeida em setembro de 1972. Em seguida ela viajou até a cidade de Piripiri (PI), onde recebeu documentos de um enviado de Maurício Grabois, e retornou a São Paulo no dia 28 de dezembro. No mesmo dia, à noite, Carlos Danielli havia marcado um encontro com Lincoln Oest, no qual seria discutida uma carta enviada por Maurício Grabois. Ao chegar ao local marcado, foi surpreendido pela repressão — que montou uma cilada para capturá-lo. Lincoln Oest havia sido assassinado no DOI-Codi do Rio de Janeiro no dia 20 de dezembro de 1972. Foi o primeiro a cair na armadilha da máquina repressiva da ditadura, montada a partir da prisão de um dirigente estadual do PCdoB ocorrida no Estado do Espírito Santo. O contato do preso com a direção era com Lincoln Oest e, sob brutais torturas, o dirigente capixaba entregou o "ponto" no Rio de Janeiro.
Em 1968, Lincoln Oest havia sido detido pelo Dops de São Paulo — acusado de envolvimento em "atentados terroristas". Após dezoito dias de torturas, foi liberado por falta de provas. Experiente dirigente do Partido — participou do levante revolucionário de 1935 e foi deputado estadual pelo Rio de Janeiro em 1946 —, ele vivia na mais profunda clandestinidade desde o golpe militar de 1964. A repressão divulgou três versões para o seu assassinato. O relatório do Ministério da Aeronáutica diz: "Preso em 20 de dezembro de 1972, no Rio de Janeiro, foi atingido mortalmente após tentar fugir da equipe de agentes de segurança." O do Ministério da Marinha diz: "Foi morto em intenso tiroteio com agentes de segurança após escapar ao cerco à Rua Itapemirim." E, segundo a Guia nº 07 do Dops do Rio de Janeiro, que o encaminhou como desconhecido ao Instituto Médico Legal, Lincoln Oest foi "encontrado num terreno baldio da Rua Garcia Redondo nº 111, após tiroteio com agentes das forças de segurança."
Anúncio oficioso do Jornal Nacional
Lincoln Oest nada confessou, mas o mesmo não ocorreu com o motorista que o acompanhava. Debaixo de torturas, ele foi enviado a São Paulo e serviu de isca para a captura de Carlos Danielli. A prisão ocorreu por volta das 19 horas na Rua Loefgreen, na Zona Sul da cidade. As torturas foram comandadas pessoalmente pelo major Calos Alberto Brilhante Ustra, o chefe do DOI-Codi paulista que atuava sob o codinome de "Tibiriçá", e delas participaram as quatro equipes de assassinos que agiam naquela sinistra organização. Os torturadores estavam incumbidos de arrancar de Carlos Danielli informações sobre a Guerrilha do Araguaia. Como disse um comunicado do PCdoB na ocasião, por ser o dirigente do Partido responsável pela ligação das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro com a Guerrilha seu nome de há muito constava da lista preparada pelos órgãos de repressão como um dos revolucionários que deveriam ser exterminados. Ao ter conhecimento desse propósito, Carlos Danielli disse: "Minha decisão está tomada. Serei fiel até o fim à revolução e ao Partido." Ele "cumpriu seu dever de revolucionário. Honrou sua condição de comunista", finalizou o comunicado.
Seu corpo foi enterrado no Cemitério Municipal dom Bosco, localizado no bairro de Perus, em São Paulo, onde eram sepultados indigentes, vítimas de bandos formados por policiais civis — os "esquadrões da morte" — que agiam com autorização do Estado para torturar e matar, e presos políticos assassinados pela repressão. A morte de Carlos Danielli teve repercussão internacional e foi anunciada oficiosamente pelo Jornal Nacional, da Rede Globo de televisão. Era um dirigente comunista exemplar. Seu pai foi um ativo dirigente sindical no Rio de Janeiro e deputado estadual pelo Partido, eleito com a maior votação da bancada comunista em 1946. No final da década de 40, foi um dos principais dirigentes da União da Juventude Comunista (UJC). No começo da década de 50, fez um curso de mais de um ano na ex-URSS e aos 25 anos, no 4º Congresso do Partido, foi eleito para o Comitê Central. Nos intensos debates ocorridos na segunda metade da década de 50, Carlos Danielli foi um dos mais destacados defensores dos princípios comunistas.
Os assassinatos de Guilhardini e Pomar
Destituído da direção no curso dos acontecimentos decorrentes do 5º Congresso, foi "cumprir tarefa" no Estado do Espírito Santo — onde, como jornalista, dirigiu o jornal do Partido local, a Folha Capixaba. No início dos anos 60, chefiou uma delegação de comunistas que visitou Cuba e participou de uma brigada de estrangeiros que acompanhou de armas em punho a tentativa frustrada dos mercenários a serviço dos Estados Unidos de invadir a ilha revolucionário pela praia Gijón. Foi um ativo participante do processo de reorganização do Partido em 1962 e, desde o golpe militar de 1964, dirigiu o jornal A Classe Operária até a sua morte. Sua atuação nesse período foi determinante para o PCdoB. Além de manter regularmente o jornal do Partido, ele dirigia todos os passos da ligação com a Guerrilha do Araguaia — desde a documentação, que era providenciada por Lincoln Oest, ex-proprietário de um cartório, até o embarque dos militantes para o Pará — e conduziu os processos de adesão ao PCdoB de uma parte da direção do PCB da Guanabara e de incorporação da Ação Popular (AP).
Cinco dias depois da morte de Carlos Danielli, Luiz Guilhardini foi preso no Rio de Janeiro. Treze homens armados invadiram sua residência e ali mesmo começaram os espancamentos. Sua mulher e o filho de oito anos foram postos num quarto separado e também torturados. Levados encapuzados para o DOI-Codi em viaturas diferentes, lá a criança presenciou o pai sendo torturado enquanto também era seviciada. Junto com a mãe, o filho de Luiz Guilhardini foi transferido para um quartel do Exército, onde permaneceu três dias exposto ao sol e ficou desidratado — e foi levado para o antigo Serviço de Assistência ao Menor (SAM). Nove dias depois, a mulher e o filho receberam a informação de que Luiz Guilhardini estava morto. Em março de 1973, os jornais anunciaram a morte de outro dirigente do PCdoB — o jovem Lincoln Bicalho Roque. Pedro Pomar morreu em outra operação da repressão, a chacina da Lapa, no dia 16 de dezembro de 1976. Com ele morreram Ângelo Arroyo e João Batista Drummond. São fatos que merecem ser lembrados para que estes dirigentes do PCdoB também sejam reverenciados como heróis da Guerrilha do Araguaia.