Mesmo setores progressistas torcem o nariz com a insistência do presidente Lula em defender uma saída negociada com os iranianos. Afinal, não se pode afirmar que o regime dos aiatolás corresponda aos paradigmas democráticos, humanistas e laicos que fazem parte dos valores de esquerda.

Mas a questão da qual não se pode fugir é a que propósitos servem os recentes movimentos de pressão contra o Irã, cuja vilanização já se assemelha àquela que precedeu a invasão do Iraque. Novamente uma nação que se opõe à hegemonia imperialista é acusada de estar desenvolvendo armas de destruição em massa. Outra vez começam a rufar os tambores de guerra.

O principal patrocinador da escalada contra a gestão Ahmadinejad são os Estados Unidos. Claro que os discursos de Obama e Hillary são recheados de alusões à liberdade. Não é novidade: o apoio aos golpes militares na América Latina e a guerra contra o Vietnã, para citar dois exemplos, também foram levados a cabo em nome da defesa do “mundo livre”.

Tampouco há surpresa nas razões efetivas que condicionam a política da Casa Branca. Foram-se os dias da destemperança bélica de Bush, mas sob a fala aveludada e cosmopolita de Barack Obama continuam vivos os mesmos pressupostos geopolíticos. Como diz a sabedoria popular: o lobo troca o pelo, mas não perde o viço.

O primeiro dos grandes motivos estratégicos é a velha disputa pelo controle das fontes de energia, na qual o Oriente Médio continua como principal teatro de operações. A desestabilização do Irã e sua eventual transição para a esfera de influência norte-americana, como se passou com o Iraque, significariam formidável aporte aos recursos petrolíferos sob tutela da grande potência.

Mais do que bloquear o acesso de Teerã à produção de energia nuclear, o que importa para Washington é asfixiar um governo hostil a seus interesses, seguindo a lógica político-militar que preside suas atitudes desde 2001. Os EUA, até então, delegavam sua presença naquele canto do mundo à máquina guerreira de Israel e às alianças com administrações árabes que lhes eram afáveis. Nos últimos dez anos, no entanto, trocaram essa política pela intervenção direta.

Essa nova orientação, contudo, não é o mesmo que abandonar ao léu os velhos amigos. Derrotar o regime islâmico da antiga Pérsia significaria sensível mudança no equilíbrio regional de forças. O Estado sionista deixaria de ter qualquer contendor militar à altura. As frações mais radicalizadas da resistência palestina perderiam seu principal aliado. Os governos árabes pró-americanos teriam maior tranquilidade com o possível arrefecimento das correntes islâmicas internas. Pois aí está a segunda razão para a ofensiva contra Ahmadinejad.

A terceira, mas não menos relevante, tem alcance mundial. Diz respeito à ordem nuclear forjada após o final da União Soviética. Mais do que hegemonia econômica e cultural, o colapso do sistema socialista criou a chance de uma inédita supremacia militar para os EUA, cujo epicentro é o controle sobre o arsenal atômico e seus processos de fabricação.

O cerco contra o Irã é concomitante aos esforços da Casa Branca para rever o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP). Esse documento, datado de 1968, estabelece o monopólio das armas nucleares nas mãos de cinco países: EUA, Rússia, França, China e Grã-Bretanha. Os demais signatários renunciam ao desenvolvimento da energia atômica para fins militares. Entre essas assinaturas não estão as de Paquistão, Índia e Israel.

Os limites atualmente prescritos pelo TNP, porém, são insatisfatórios para os EUA e eventualmente outras nações, pois não coíbem o desenvolvimento completo da tecnologia nuclear ou a comercialização de urânio enriquecido pelos países que estão fora do clube da bomba. Esse desconforto levou à convocação da Cúpula sobre Segurança Nuclear, reunida em Washington dias 12 e 13 de abril.

Sua preparação foi marcada por dois eventos vendidos como “históricos” pela mídia. Um deles foi o novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas (Start, em inglês), firmado no dia 8 de abril entre Rússia e EUA, pelo qual cada uma das potências reduziria para 1.550, até o ano de 2017, suas ogivas nucleares operacionais. O acordo, no entanto, não estabelece cortes ou limites para milhares de bombas armazenadas, atendendo exigência da indústria militar norte-americana e seu lobby parlamentar. Não apenas é tímida a redução do arsenal nuclear, como permanece intacto seu processo de renovação e substituição.

O outro acontecimento, no dia 6 de abril, foi a divulgação, pelo governo norte-americano, de sua nova política de defesa nuclear. Apesar do alarde de que os EUA não reagiriam com ataques atômicos a agressões com armas convencionais, químicas ou biológicas, ou contra países que não possuem arsenal nuclear, ficou estampado no pronunciamento que seriam abertas exceções contra nações que não fossem signatárias do TNP ou que supostamente o estivessem violando.

Ambos movimentos foram calculados para criar um clima positivo na reunião de cúpula, embalando-a com promessas e gestos pacifistas. De quebra, a Casa Branca conseguiu a boa vontade da Rússia na questão iraniana, em troca do compromisso de manter desnuclearizados os países de seu entorno. O mesmo aceno é feito à China quanto à sua zona de influência, além de outras compensações econômicas.

São passos que têm como um de seus principais propósitos a conquista de adesões ao protocolo de revisão do TNP, que amplia os poderes da Aiea (Agência Internacional de Energia Atômica). A agência passaria a controlar o comércio mundial de urânio enriquecido, mesmo para fins pacíficos, além de ter o direito de visitas intrusivas, sem negociação prévia, a países suspeitos. O monopólio atômico, na prática, seria estendido também ao uso não militar da energia nuclear, que estaria submetido a um sistema internacional de licenças e controles.

E o que tem o Brasil a ver com tudo isso?

O presidente Lula declarou que o país não será signatário desse protocolo, por considerar uma violação à soberania nacional e um obstáculo ao desenvolvimento do país. Também reafirmou sua convicção contra o caráter discriminatório do TNP, que em nome da paz preserva o desequilíbrio militar entre as nações.

Com viagem prevista para Teerã em maio, o mandatário brasileiro voltou a se pronunciar contra novas sanções aos iranianos. Essa postura não é ditada apenas pela agenda comercial, importante na estratégia de diversificação de mercados. Tem a ver, fundamentalmente, com uma razão de Estado.

A adoção de punições adicionais ao Irã, em uma escalada que a agressão militar como horizonte, significaria reforço à jurisprudência que considera a autodeterminação dos Estados nacionais um direito subordinado a hipotéticos e indivisíveis interesses mundiais, geralmente auto-representados pela principal potência militar. Por dentro ou por fora das instituições internacionais, a depender de suas possibilidades e conveniências.

Afinal, o Irã não está envolvido em nenhum conflito armado com seus vizinhos ou buscando sobrepujar, pela força, direitos de outros povos. Ao contrário de Israel, país nuclear clandestino, cuja política belicista e de opressão contra os palestinos desrespeita seguidos acordos e resoluções internacionais.

Não é preciso, de fato, muito tutano para calcular o alcance dessa concepção favorável à intervenção preventiva. A quais ameaças estaria submetido o Brasil, digamos, no caso de eventual escassez de água no hemisfério norte tornar esse bem um objeto de desejo e necessidade dos tais “interesses mundiais”? Ou que destino estaria reservado à América Latina se, por exemplo, viesse a constituir um bloco militar autônomo?

A posição do presidente Lula sobre o Irã pode até ser minoritária, mas expressa a resistência dos que defendem, contra a institucionalidade de um império, uma ordem mundial baseada na união soberana e igualitária de nações livres.

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*Breno Altman é jornalista e diretor editorial do Opera Mundi