1- Épicos e epopeia

A Revolução de 1917 instala no ano seguinte a república federativa socialista soviética. Em 1957 a URSS lança o Sputnik, o primeiro satélite artificial da Terra. Em 1961 Gagarin, a bordo do Vostok 1, efetua o primeiro voo espacial.

A nova capital brasileira também começou a ser construída em 1957, foi realizada em três anos e inaugurada em 1960. Em 1987 foi inscrita na Lista do Patrimônio Mundial por resolução da Unesco.

Brasília é a primeira cidade moderna tombada como patrimônio cultural da humanidade, completando meio século em 21 de abril deste ano.

Lúcio Costa, o urbanista, assim se referiu em relação ao período de realização da nova capital:
Brasília surgiu num momento em que a utopia era mais verdadeira que a realidade (CAMPOFIORITO, 1990).

O pensamento de Lúcio reflete sobre a escala de realizações humanas na proporção dos fatos civilizatórios, como foi referido em relação à construção do socialismo no começo do século XX.

Ou, com outra percepção espaço-temporal e por analogia, a realização da futura capital para uma nova nação constituída dos povos mais antigos.

Para tanto, ex nihilo, na tradição das cidades ideais – principia ethica –, como rezam as ritualísticas das tradições iniciáticas, as proporções desses fatos decorriam de formações históricas, ou míticas, ou míticas e históricas. Como verdadeiras epopeias em relação à efêmera condição humana. A vida é um sopro, disse vetusto, Oscar Niemeyer, o arquiteto.

Atrás da complementaridade entre ele e Lúcio Costa avança o conjunto arquitetural desvelado pelo contexto dos anos pioneiros de Brasília, de 1957 a 1960. Incomparável, face à história da arquitetura, em todos os tempos.

Não poderia se caracterizar como uma série de ações heroicas, ou épicas, proporcional aos feitos literários na escala das epopeias?

Como realizações as epopeias são intangíveis, face ao confronto com a realidade. Tanto as referências ao senso comum quanto as visões críticas são tributárias de dificuldades em abarcar o significado épico.
O caráter utopista das epopeias resulta de proporções das narrativas no espaço e no tempo que ocorrem, não permitindo-lhes alcançar em suas extensões e significados, menos ainda em suas intensões face à escala da história, nem por suas transcendências épicas, nem pelo fato onírico em si, nas proporções e na escala da humanidade e da Terra.

A questão não é o estabelecimento de analogias entre fatos grandiosos, aparentemente díspares, ou ao contrário. Mas, cogitar sobre a condição existencial – épica – do sujeito da cultura brasileira, através de rara concretização, que poderia ser uma epopeia literária. Ou arquitetural, in casu.

Brasília se não fosse tombada como patrimônio cultural da humanidade, sua história de dois séculos precedendo a realização, talvez já merecesse registro.

O “registro” é um instituto, como o do “tombamento”, todavia, destinado à preservação dos bens imateriais, ou intangíveis. Tratando-se de Brasília, seria o registro das histórias, da realização, da apropriação e irradiação social da nova capital civilizatória do Brasil. Mas, sobretudo, da mítica formadora da expectativa ulterior.

As gerações futuras conheceriam, assim, as narrativas épicas sobre o percurso político definidor da localização futura, da história antecedendo a concepção urbanística e arquitetônica; e a obra em curso, uma epopeia em construção!

Nesse caso, a partir dessa imaterialidade sintética – confrontada à realidade – é que parece se desocultar aquém da história, desvelando o próprio mito da brasilidade identitária e/ou de sua epopeia anunciada.

Epopeia iniciada pelos autóctones escravizados, apenados europeus em trabalhos forçados e africanos contrabandeados, fugidos pelas matarias em precoce alteridade no sertão.

Lembrando a respeito das estratégias e epopeias nacionais: 2010 não é, exclusivamente, o de 50 anos de Brasília!

Dois mil e dez é também o de oito anos de duas gestões que fizeram do Brasil o primeiro país a eleger à presidência da República um operário metalúrgico, reforçando a suposta vocação do povo brasileiro às utopias.

2- À primeira vista

Chegar adolescente a Brasília, em 1961, significava aprender na prática o sentido do termo “estranhamento”.

A começar pela admiração, entrando na cidade aos 13 anos, pelo Eixo Rodoviário Sul.
Sete pistas, a central reservada ao presidente da República, aos bombeiros e ambulâncias.
À época se dizia com orgulho: cruza a cidade em dez minutos.

Menos utilizado, em função do par de “eixinhos” L e W, de cada lado; a leste e a oeste, paralelos, no mesmo sentido sul-norte. À época, a população do Distrito Federal não passava dos 150 mil indivíduos.

As árvores dos largos canteiros longitudinais eram frágeis e empoeiradas pelo vermelho da terra levantada pelos “lacerdinhas”, os redemoinhos. Por vezes, três ao mesmo tempo participavam da paisagem.

Na maioria, era arvorezinha recém-plantada. Contrastava com o aspecto de outras retorcidas, pequenas e intrigantes. Era uma paisagem enigmática e sedutora, ampla e diferente.

Dos dois lados dessas vias principais – norte-sul – seguiam os edifícios residenciais, perpendiculares ou paralelos, de um lado e de outro, a leste e a oeste, com ritmo variado dentro do compasso marcado pelos quarteirões, ditos superquadras.

A perspectiva paisagística, então rarefeita, hoje é traço de caráter, da Cidade-Parque.

Mas aquele percurso através do “eixão”, já em 1961, impressionava.

Era solene, elegante e cosmopolita. Contudo, algo incomum: era familiar.

Desde os tempos pioneiros Brasília já apresentava certa nobreza de intenções, como a que imbuíra os urbanistas concorrentes, intuía Lúcio, certamente a partir de si mesmo.
Quem chegava por terra a Brasília já sentia o ar de capital.

Aportando do céu, a epopeia se materializava do barro.

Mesmo o adolescente via a história se consumar altiva. Mas o espaço construído sobre um domo geológico dentro de uma bacia, distraía, seduzindo sob efeito do céu, descaindo até o horizonte.
Brasília era uma pipa em um céu sem fios.

Ao cruzar, da Asa Sul para a Norte, a Rodoviária é o “x” da questão. O projeto “arquiurbano” de Lúcio é o cruzamento dos dois grandes eixos, o Rodoviário e o Monumental. Metáfora dos cruzamentos de muitas cidades nascidas “espontaneamente” Brasil afora. Na plataforma encimando a Rodoviária, lazer e consumo.

É a encruzilhada nacional de todas as faixas etárias, classes sociais e de todos, cotidianamente cruzando a escala residencial da urbe com a monumental da civita. Ao passarem pela centralidade, atravessam a escala gregária, a dos encontros de negócios, de mercado, de procura e de oferta.

Esse jogo de proporções das escalas construídas e a atmosfera bucólica que se torna a escala fundamental é a composição escultural-urbana de Lúcio Costa. Nela Oscar Niemeyer veio detalhar feições arquiteturais: corpo e traços da brasilidade identitária.

Do trabalho deles muito se pergunta: onde acaba o de um e começa o do outro? Dúvida razoável! Mas, como em Brasília, nunca houve complementaridade igual na história da arquitetura.

Doutor Lúcio serviu a democracia em uma bandeja: a Praça dos Três Poderes, após as antessalas na Esplanada.

3- Historicidade e historicismo

A cidade inventada por Lúcio Costa desencadeou no espaço e no tempo as fases posteriores ao empreendimento político-nacional, com seus fins. Além desses, confirmou a escala histórica e a envergadura cultural.

Lúcio referiu-se à contingência circunstancial da historicidade: a inexistência de “planejamento regional”, coordenando o projeto físico da capital ex nihilo. Inversão, aliás, comparável à práxis revolucionária.

À luz do historicismo se concebe a inversão: o planejamento regional, como consequência do plano piloto de Brasília.

As ideias mudancistas participam historicamente da dialética sociocultural, em confronto com a realidade política e econômica. A superação desse limiar, conforme o pensamento nacional, consolidará a construção da capital no interior.

Desde o século XVIII mais de 200 anos se passaram, consumando o processo realizador da capital, inaugurada na segunda metade do século XX, tal como os procedimentos:

1751 – Pombal é favorável à interiorização da capital da Colônia. O cartógrafo italiano Colombina elabora o mapa de Goiás, relevando o valor estratégico do Planalto Central.

1789 – Tiradentes e inconfidentes reivindicam à Corte de Lisboa a mudança para São João Del Rei (MG), por razões estratégicas e demográficas.

1810 – V. de Oliveira, conselheiro-chanceler, argumenta ao príncipe regente sobre local climaticamente aprazível e demograficamente adequado.

1813 – H. da Costa publica no Correio Brasiliense (Londres) defesas da “transferência para o interior central nas cabeceiras dos grandes rios”.

1823 – J. Bonifácio motiva “Instruções dos Deputados Paulistas à Corte” para a Assembleia Constituinte, dando sentido à mudança para a Comarca de Paracatu do Príncipe (MG), sugerindo o nome Brasília ou Petrópolis.

1831 – O deputado J. de Deus e Silva (PA) apresentou o 1º projeto de localização em ponto central do país.

1852 – O senador H. Cavalcanti (PE) faz realizar levantamento entre as latitudes 10° e 15° e os rios S. Francisco, Maranhão e Tocantins.

1877 – Varnhagen, após pesquisa em Formosa (GO), publica A Questão da Capital Marítima ou no Interior?.

1891 – A 1ª Constituição da República define 14.400 km² a demarcar, emenda dos senadores Damásio e Müller.

1892 – O presidente F. Peixoto estabelece a Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil liderada pelo cientista belga L. Cruls para estudar a área da nova capital. Percorre 4000 km com expedição de notáveis e 10 toneladas em equipamentos, material e víveres.

1893 – o mapa do Brasil traz o “Futuro Distrito Federal”. Cruls publica seu relatório em 1894: topografia, energia, clima, solo, geologia, fauna e flora, resultando na criação da Comissão de Estudos da Nova Capital da União.

1921 – Os deputados A. do Brasil e R. Machado: projeto da pedra fundamental no Planalto Central, plantada em 1922, no Centenário da Independência.

1934 – 2ª Constituição da República Art. 4°, em Disposições Transitórias: Será transferida a Capital da União para o ponto central do Brasil; primeiro projeto para o ponto central do país.

1940 – Getúlio Vargas lança em Goiânia a Marcha Rumo ao Oeste, para muitos sem vinculação com o movimento mudancista, nem com a nova Capital.

1948 – A Comissão Marechal Polli Coelho confirma a localização trabalhada por Cruls.

1953 – O Congresso autoriza o governo a definir o sítio; Vargas cria a Comissão de Cooperação para a Mudança da Capital Federal e o presidente Café Filho convida o marechal José Pessoa a presidi-la.
1955 – J. Ludovico, governador de Goiás, executa a 1ª desapropriação na Fazenda Bananal, onde está hoje Brasília.

Polli Coelho recebe o “Relatório” da Donald Belcher: entre cinco sítios a Comissão da Nova Capital Federal escolhe o Castanho, anexando o sítio Verde, pelas perspectivas e pelos valores simbólicos, cujo critério era mínimo, comparados a outros, como presença de água e solo próprio à construção.

04-04: Juscelino Kubitschek, candidato, em Jataí (GO), confirma “os primeiros passos… da futura capital federal do Brasil”.

1956 – 18-04: JK envia ao Congresso a “Mensagem de Anápolis” visando a criar a NOVACAP, competente para a construção.

18-09: Senado aprova a transferência da capital.

19-09: JK sanciona a lei que denomina Brasília, cria a NOVACAP e lança o concurso do plano piloto de Brasília.

30-09: é publicado no Diário Oficial da União o “Concurso Nacional do Plano Piloto da Nova Capital do Brasil”.

02-10: JK faz a 1ª viagem ao planalto central como presidente da República.

10-11: é construída a residência provisória do presidente, um “palácio de tábuas” de Niemeyer; Dilermando Reis dá o nome de Catetinho.

JK escolhe Israel Pinheiro, político mineiro, engenheiro de Brasília, presidente da NOVACAP.
1957 – 23-02: 1º pouso do Douglas da FAB trazendo Israel Pinheiro.

16-03: a Comissão Julgadora do Concurso do Plano Piloto de Brasília escolhe o projeto de L. Costa entre 26 concorrentes.

1958 – Inaugurações:

30-04: Hotel Brasília Palace.28-06: Igrejinha de Fátima, 1ª realização em entrequadras.
30-06: Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente da Republica.

1959 –

01-02: Abertura da Belém-Brasília.

12-09: O lago artificial, para a oposição, não encheria, argumentava tecnicamente. JK calou-se, informando neste dia: “Encheu, viu?!”.

1960 –

20-04: às 23h30, em frente ao STF, missa celebrada pelo cardeal-patriarca de Lisboa Manoel Cerejeira.

21-04: Brasília é inaugurada. Na Praça dos Três Poderes, em sessões simultâneas, são instalados o Supremo, o Congresso e o Planalto, respectivamente: o Poder Judiciário, o Legislativo e o Executivo.

A poesia dos Lusíadas não promovera o futuro de Portugal, nem os sonhos de Marx e Le Corbusier se realizaram no mundo avançado. Tudo se passou, afinal, como se, onde a ciência, a tecnologia e o desenvolvimento econômico são puro sonho, nada parecesse mais possível, nada fosse mais natural do que a utopia (CAMPOFIORITO, 1990).

4- Ordens Modernas

Para a cultura brasileira no mundo, Brasília é como uma “cléf de voûte” (COSTA, M. E., 1995); uma “chave” ou pedra central de uma abóbada, como a de um arco, bloqueando estruturalmente as demais. É a “chave” que assegura a estabilidade física desses elementos, como a “chave” de um raciocínio sistêmico.

Neste sentido, André Malraux, ministro da cultura da França, visitou Brasília (1961), sintetizando-a para o mundo.

Inicialmente, por comparação, referiu-se às colunas de Brasília – as de Alvorada, Planalto e Suprema Corte – como os fatos arquitetônicos mais importantes desde as colunas gregas, porque mesmo as romanas eram cópias dessas.

Depois completou seu pensamento ao qualificar as brasileiras como Cariátides Libertárias.
Cariátides foram denominadas as colunas com formas figurativas de mulheres, sustentando palácios e templos gregos. Estes, segundo Vitrúvio relata em suas cartas a César (De Architectura, II a.C.), ao invadirem a ilha de Carie, mataram todos os homens, preservando as mulheres para próprio deleite e perpetuidade da cultura helênica. As escultóricas cariátides materializaram essa inspiração, lembrando às possuídas suas condições existenciais de servas para a grandeza da Grécia.

Malraux é respeitável. Fazia e pensava consequentemente. Combateu com os republicanos na Espanha, foi homem político e de cultura, com obra literária sofisticada. Suas cinzas estão guardadas no Pantheon, como as de Victor Hugo, Charles de Gaulle e outros homens públicos ou heróis franceses.

Sua afirmação – embora seja da natureza latina amiga, soando como discurso intelectual – cabe profundamente quanto ao sentido cultural adjetivando as “cariátides”. Porque, aparentemente, o cumprimento homenageia as brasileiras, apesar de o ministro restringir-se às colunas. Mas a simbologia notória dessas “cariátides” brasilienses ou brasileiras, ditas “libertárias”, não evidencia somente a beleza de suas latentes feminilidades.

Aliás – criadas para a nova capital e só para ela – o significado complementar adjetivado destas diz respeito às três brasileiras, assim ditas cariátides, como colunas. Mas, libertárias (!), para se distinguirem daquelas servís, submetidas. As da ilha de Carie.

As primevas colunas gregas, Dórica, Jônica e Coríntia – e as cariátides, inclusive – são referenciadas no bojo das Ordens Clássicas, fazendo-as reconhecidas como síntese do próprio tratado estético do ocidente.

O que equivale a dizer: as três colunas gregas são as “ordens clássicas”, o próprio “tratado estético do ocidente”.

Por extensão ao relato de Vitrúvio sobre as Cariátides e pela intensão de Malraux, como este afirma, não existiram outras Ordens depois das Clássicas, somente as brasileiras, pelo fato de as romanas terem sido cópias das gregas. As colunas brasilienses ou brasileiras foram ditas Cariátides, porém Libertárias – consistindo nisto a “chave” que desvela as Ordens Modernas, como novo tratado estético. Não que seja novo “tratado estético do ocidente”, como descendentes bárbaros pretenderiam para si – ao se apoderarem da cultura grega – o simbolismo e a tradição obtidos na marra, e a ferro.

Mas dada a autenticidade – cosmopolita, pela interculturalidade genuína –, é uma retribuição cultural do Brasil mestiço, de si para o mundo, na tradição Mauss/Godeliler, do ensaio (1925) ao enigma (1996) do dom.

Ora, mas as cariátides brasilienses, para Malraux, são libertárias, diferentemente das primevas; inclusive, qualificando-as pela feminilidade, como certa identidade para o novo tratado estético.
Como tal, se referindo ao mais característico na brasilidade identitária, é sua alternativa aberta e indiferente à mestiçagem.

Cariátides Libertárias é, portanto, o tratado estético referente à brasilidade identitária primaz. Desde quando iniciada no mítico sertão, anterior ao historicismo de 200 anos, desde 1751, até a historicidade culminante com Brasília inaugurada em 1960.

E, aos 50 anos desde a fundação, comemorados em 21 de abril de 2010, neste último ano do mandato de Lula, épico do capítulo da grande epopeia.

Desde lá, de quando os apenados europeus foram recebidos pelas cunhãs, autóctones dadivosas na práxis da alteridade precoce: alteridade, conceito desconhecido do ocidente até meados do século XX. Em suas redes (de dormir, amar, parir, morrer e enterrar) receberam igualmente o contrabandeado africano. O lusitano trazido sem sua cachopa; a outra, negra como ele, só viu sobrevivendo do banzo 100 anos depois, traficada como doméstica servil.

Surge dessa forma a síntese cultural transcendente brasilíndia/negríndia, capaz de antropofagiar culturas antigas em sistemas novos, através da resistência nas caá-apuan-eras, as rotas de fugas para as matarias do Brasil profundo.

Bem antes dos sertões de Euclides, onde a vida era livre para a dura resistência, e engendrar os “ninguéns” – no sentido de Darcy –, para os curumins, variegados mesticinhos que sonharam com a capital de justiça utópica.

As terras do Planalto Central, conhecidas desde 1596 pelos primeiros desbravadores, já permeavam o imaginário daqueles que pretendiam ser constituída, no interior, a sede do governo brasileiro (FONSECA, 2001).

Quer dizer, o mudancismo histórico foi antecedido pelo sentimento mítico da alteridade precoce, inerente à brasilidade identitária: resultante da alternativa aberta e indiferente à mestiçagem, convergente em utópica interculturalidade!

Algo como a precoce arquitetura colonial brasileira, transformando sistêmicas dinâmicas em barroco tardio; construindo a práxis do passado europeu; se tornando em fim madura e intercultural, ao aparecer para o mundo, como arquitetura moderna de vocação utopista.

A multiculturalidade – hoje procurada “no mundo” como mitigação desses contenciosos socioculturais – é a hipótese “politicamente correta” ao alcance de um futuro possível, se consolam.

Já a interculturalidade, vista pelos mesmos defensores dos direitos humanos, é concebida como utopia a ser guardada para o devir. O que nos faz a utopia deles.

Entre as parcialidades “utópicas” realizadas, constitutivas da emblemática epopeia que é Brasília, estão dois detalhes significantes: a escolha do lugar e o lago Paranoá. A escolha do lugar, início de uma nova civilização (FONSECA, 2001).

Estas “parcialidades utópicas” são duas condicionalidades concebidas antes de Lúcio e Oscar, relegadas ao historicismo insuficientemente refletido, se não desprezado.

A primeira, o “domo” geológico da brasilidade – convexidade sutil dentro da concavidade natural à bacia –, é o lugar e suporte da obra. Este domo é um surreal atalaia dos horizontes nacionais, com seu vizinho, o dito “fenômeno” das Águas Emendadas. Deste, fluem contribuições para as principais bacias brasileiras; atinge a territorialidade nacional, para o bem e para o mal.

Mas previne: face aos tempos da desterritorialização neoliberal, a interculturalidade é lugar inexpugnável.

(…) Para transformar tal utopia em “topos”, em factos realizados, é preciso preparar todos os indivíduos para responder aos desafios da sociedade multicultural em que vivemos. (…) Metaforicamente, uma salada de frutas que não anula os diferentes sabores presentes no todo. (…)
(…) Só a interculturalidade (…) transforma a utopia em topos” (VIEIRA, 2003).
Esta, sim, é a temida e sedutora utopia cultural.

A segunda “parcialidade utópica” é vista através do julgamento da oposição a JK, a mesma dos detratores de Brasília. Então logrados pelas empresas internacionais que capitularam face aos prazos de realização do Lago.

No desafio, foram substituídos pelos resistentes da terra, descendentes de Canudos, malês e bugres da resistência continuada no cangaço; proletários da variegada mestiçagem: os construtores de Brasília e do lago artificial prazeado pelo mito dos sertanejos, a 1000 m exatos acima do mar!

Brasília é a certidão de nascimento da civilização brasileira (HERBERT, 2000).

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Fonte: revista Princípios