Um velho amigo marxista costuma dizer que a realidade – que nos cerca e da qual fazemos parte – é única, múltipla e contraditória. Procurando uma frase para sintetizar Brasília em seus 50 anos de fundação, não encontro nenhuma expressão mais adequada. Ela é única por sua arquitetura e urbanização (é considerada oficialmente “Patrimônio da Humanidade”, segundo a Unesco), pela rapidez espantosa de seu crescimento (sua população já ultrapassa 2 milhões de pessoas) e por sua força em “puxar” o Brasil para o interior, um país litorâneo até 1960. Múltipla, pelo efervescente caldeirão cultural que nela se formou a partir das inúmeras contribuições sociais que recebeu nessas cinco décadas, produto da emigração e fixação de trabalhadores, políticos, intelectuais e artistas vindos de todos os cantos do país e do exterior. Contraditória, pois começou como esperança em 1960, foi amordaçada pelos militares golpistas no período 1964-85, recuperou a liberdade com a autonomia política no início dos anos 1990 e hoje chega ao cinquentenário, embora desenvolvida e exemplar sob muitos aspectos, com o governador eleito na cadeia, um forte cheiro de corrupção no ar e sendo discutida a possibilidade de vir a sofrer uma intervenção federal inédita no período pós-ditadura.

Tudo isso não é pouco para uma breve fatia histórica de apenas 50 anos. Pelo contrário, essa fartura de acontecimentos dramaticamente opostos requer uma reflexão crítica sobre algumas circunstâncias e fatos ocorridos na capital do país nesse período. Entre estes escolho dois, por sua importância e por ter participado direta ou indiretamente dos mesmos em 37 anos de convívio com a cidade: a criação e história da Universidade de Brasília – a UnB; e a autonomia política, conquistada com a Constituição Federal de 1988.

Fundação e história da Universidade de Brasília – UnB

A cidade de Brasília tinha apenas 2 anos quando recebeu oficialmente sua primeira universidade pública. A inauguração da Fundação Universidade de Brasília (UnB) aconteceu em 21 de abril de 1962, assemelhando-se em muito à própria capital, cheia de canteiros de obras, com pouquíssimos prédios concluídos. O Auditório Dois Candangos, onde ocorreu o ato oficial, ficou pronto somente alguns minutos antes do início da cerimônia. Seu nome homenageia os operários Expedito Xavier Gomes e Gedelmar Marques, que morreram soterrados em um acidente de trabalho durante a construção.

A caminhada até a fundação da UnB, no entanto, demandou um enorme esforço político e muita criatividade. Apesar de o projeto original de Oscar Niemeyer e Lucio Costa já previr um espaço para a UnB – na Asa Norte da cidade, próxima ao Lago Paranoá – a luta foi grande. A proximidade com o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e a própria Esplanada dos Ministérios, centro nervoso do Brasil a partir daqueles anos, dificultava as coisas. Algumas autoridades simplesmente não admitiam que estudantes viessem interferir na vida política futura da cidade e do próprio país. Finalmente, em 15 de dezembro de 1961, após intensas idas e vindas, e muita negociação, o então presidente da República – João Goulart – sancionou a Lei 3.998/61, que autorizou a criação da UnB.

À esta altura vale a pena relatar um fato pitoresco narrado pelo antropólogo Darcy Ribeiro – idealizador, fundador e primeiro reitor dessa instituição –, em memorável conferência ministrada por ocasião de seu regresso à UnB no final dos anos 1980, após muitos anos de exílio. Segundo Darcy, o próprio Juscelino Kubitschek era avesso à criação de uma universidade pública na capital do país. Na época, a União Nacional de Estudantes (UNE) experimentava um período extremamente organizado e forte a partir de sua sede no Rio de Janeiro, criando “problemas” frequentes aos governantes; o melhor, segundo JK, era manter os estudantes longe… Darcy Ribeiro, por sua vez, sonhava com a inquietude que uma nova universidade traria à cidade e, se possível, à própria vida do país. Uma universidade diferente das outras, libertária, com conteúdos programáticos, estrutura acadêmica e tecnologias educacionais revolucionárias que poderiam contribuir, mais adiante, para a emergência de uma nação mestiça e maior, que aspirasse a ser referência e liderança mundial. Mas como convencer ou mudar os planos de Juscelino?

Manhoso e conhecedor do caráter majoritariamente católico do país e da religião professada pelo próprio fundador da cidade viajou até Roma onde conseguiu uma audiência com o papa João XXIII. Na ocasião, matreiramente explanou ao líder religioso que tinha um sonho: criar o primeiro Instituto de Teologia do mundo em uma universidade pública de caráter nacional. O papa adorou a ideia e se dispôs a fazer uma carta pessoal, na qual afirmaria seu interesse na criação da universidade, levada pelo próprio Darcy ao Congresso Nacional algumas semanas depois. E, assim, acompanhadas de um inegável constrangimento silencioso, as resistências políticas acabaram vencidas, pois até o papa estava de acordo com a existência da instituição… Frei Mathias Rocha, um padre dominicano muito conhecido por sua militância de esquerda, foi escolhido por Darcy não somente para dirigir o tal Instituto de Teologia (um dos primeiros organismos a ser fechado pela ditadura na UnB…), mas também para fazer parte do Conselho Superior que dirigia a universidade, juntamente com Anísio Teixeira e outros luminares da educação brasileira na época. Dizem algumas “más línguas” que frei Mathias foi o inspirador do cartunista Henfil na criação do famoso Fradinho Baixinho do jornal O Pasquim.

A UnB começou a funcionar no 9º andar do Ministério da Saúde, ocupando posteriormente um espaço de apenas 13 mil metros quadrados de área construída, distribuídos por 9 prédios espalhados pelo Campus Universitário, que a partir de 1996 passou a levar o nome de Darcy Ribeiro. Seu corpo discente inicial era formado por apenas 413 alunos que haviam prestado o primeiro vestibular de ingresso. Também havia poucos professores nesse período, mas estes, juntamente com os estudantes pioneiros passaram a dar “corpo” à instituição que, com algumas décadas de funcionamento, viria a ser uma das mais bem conceituadas do país em termos de quadros acadêmicos e pesquisa científica.

As invasões e a resistência

Paralelamente a seu crescimento e amadurecimento acadêmico, no entanto, a UnB foi espaço de verdadeiras batalhas – campais e políticas –, marcantes na história da Capital da República. É indispensável registrar que mesmo antes do golpe militar, em 1964, já era tida por setores conservadores como um “perigoso” foco do pensamento da esquerda nacional. Por essa razão, após o golpe foi vítima de várias invasões violentas executadas pela polícia e tropas do exército em nome e com o respaldo da ditadura.

A ditadura instalada com o golpe militar trouxe anos duros para a UnB. Como já era vista por setores extrauniversitários como um foco do pensamento esquerdista nacional, esta visão se acirrou anda mais com a tomada do poder pelos militares. E, por estar mais perto desse poder, foi uma das mais perseguidas e atingidas. Universitários e professores foram tachados de subversivos e comunistas. Comentava-se na época em Brasília que havia uma tendência marxista na UnB, liderada pelos professores mais jovens e idealistas. O campus foi invadido e tomado por policiais militares e pelo Exército várias vezes durante 1964 e 1965. Em 18 de outubro de 1965, depois da demissão de 15 docentes acusados de subversão, 209 professores e instrutores assinaram demissão coletiva, em protesto contra a violência e a repressão. Naquele momento a UnB perdeu nada menos que 79% de seu já pequeno corpo docente, a maior fuga de professores registrada até hoje em um só episódio na instituição.

Esse não foi o único período em que as aulas foram interrompidas pelas invasões. O ano de 1968 foi marcado por passeatas e barulhentos protestos contra o regime militar. Os alunos pretendiam mostrar à sociedade o que acontecia na UnB. Em agosto, o então reitor, Caio Benjamin Dias, pediu intervenção da polícia para defender o patrimônio da universidade, alegando que não conseguia controlar os estudantes. A segunda invasão, considerada a mais violenta, pelo uso de armas, destruição de equipamentos e prisões, foi desencadeada a partir do assassinato do estudante secundarista Edson Luis de Lima Souto, com apenas 20 anos de idade, morto quando a PM invadiu o conhecido restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro.

Na UnB, cerca de 3 mil alunos se reuniram para protestar contra a morte e dar o nome de Edson à praça localizada na área situada entre a Faculdade de Educação e o antigo Restaurante Universitário (RU). Esse foi o estopim para o decreto da prisão de sete estudantes, entre eles, Honestino Guimarães, que havia sido presidente do Diretório Central de Estudantes (DCE), preso somente em 1973, no Rio de Janeiro, onde vivia na clandestinidade. Honestino hoje faz parte da lista dos desaparecidos políticos. Com o decreto, agentes das polícias militar, civil, política (ligada ao antigo Dops) e do Exército invadiram a UnB e detiveram mais de 500 pessoas na quadra de basquete, próxima ao RU. Ao todo, 60 delas acabaram presas; o estudante Waldemar Alves foi baleado na cabeça, tendo passado meses em estado grave no hospital.

Depois desse período mais conturbado, em março de 1971, o médico e microbiologista Amadeu Cury assumiu a reitoria com uma proposta de reestruturação da universidade. Iniciava-se a etapa de consolidação acadêmica e física da UnB. A postura inicialmente menos confrontadora da administração rendeu apoio financeiro do governo para a instituição. Na década de 1970, foram criados 14 novos cursos de graduação, um aumento de 82% em relação a 1962, embora o clima de reconstrução e calma tenha durado pouco tempo. Com a nomeação do novo reitor pela ditadura – professor de Física e oficial da Marinha onde ocupava a patente de capitão de mar e guerra, José Carlos de Almeida Azevedo, em maio de 1976 –, as manifestações recomeçaram. Um ano após a mudança na reitoria, multiplicaram-se os protestos de alunos contra a má qualidade do ensino, ociosidade nos laboratórios, falta de professores, tudo isso acompanhado de palavras de ordem contra a ditadura militar e a intervenção existente na universidade.

A crise política da UnB ultrapassou os limites do campus e o Senado Federal criou uma comissão para intermediar o conflito. Cerca de 150 professores entraram como mediadores entre a reitoria e os estudantes. Em 6 de junho de 1977, mais uma vez, tropas militares invadiram a UnB com a violência de sempre, prendendo estudantes e intimidando professores e funcionários. Nessa ocasião muitos estudantes foram enquadrados na chamada “Lei de Segurança Nacional” e expulsos. O fruto positivo desta última invasão foi a criação, pelos professores menos de um ano depois, da Associação dos Docentes da UnB, futuro sindicato docente da UnB, que se transformou imediatamente em forte baluarte que se aliou à então emergente Frente Sindical de Brasília na luta pelo fim da ditadura.

Darcy Ribeiro sonhava com uma instituição revolucionária, voltada para o futuro e com o ambicioso objetivo de que ela viesse a se constituir em verdadeiro agente transformador da realidade e da própria história brasileira – diferente do modelo tradicional criado no Brasil na década de 1930. Assim nasceu a primeira Instituição de Ensino Superior do Brasil dividida em institutos centrais e faculdades, com módulos básicos nos quais todos os alunos recebiam inicialmente uma formação fundamental durante 2 anos, para somente depois ingressar nas matérias específicas das carreiras escolhidas. Hoje, infelizmente, muito disso deixou de existir e na prática a UnB é uma universidade com problemas e virtudes semelhantes aos de outras grandes universidades brasileiras.

Mesmo assim, entre desacertos e avanços, é hoje uma das instituições mais bem conceituadas do Brasil. Entre alguns feitos recentes, criou cursos noturnos nos anos 1990; foi pioneira no país em 1996 com seu Programa de Avaliação Seriada (PAS) que consiste em provas aplicadas ao término de cada uma das séries do ensino médio: os melhores colocados ao final das três etapas são automaticamente aprovados para a universidade; e a partir de 2004, em meio a muita discussão, com aprovação e apoio de seus colegiados superiores, decidiu adotar o sistema de cotas para estudantes negros, além de cotas especiais para indígenas.

Atualmente a UnB conta com quase 30 mil alunos e 2.500 professores, nada menos que 91 cursos de graduação, 60 cursos de mestrado e 50 de doutorado. Recebe mais de 3 mil alunos novos a cada ano e possui uma área construída de 505 mil m2 que abriga 25 Institutos e Faculdades, 55 Departamentos e 28 Centros. Darcy Ribeiro, falecido em 1996, ficaria orgulhoso. Em seus tempos de exílio, chegou a afirmar – amargurado com o fato de ela estar sendo dirigida por um militar (Azevedo) – que a UnB era a filha que “havia caído na vida”. Em seu retorno, no entanto, mudou o discurso ao tomar conhecimento da resistência histórica de seus estudantes e professores durante o período dos chamados anos de chumbo.

A representação política para o Distrito Federal

Nos primeiros 30 anos de sua fundação, os eleitores do Distrito Federal não puderam eleger seu governador, pois essa decisão era prerrogativa da União. Até então, o presidente da República escolhia o primeiro mandatário da cidade, igualmente ao que acontece com os outros distritos municipais e estaduais, cujos chefes são escolhidos pelos prefeitos e governadores, respectivamente. Um exemplo atual é Fernando de Noronha, território ligado a Pernambuco e que tem seu administrador nomeado pelo governador daquele estado.

Desde sua fundação até 1991, ano em que foi empossado o primeiro governador pelo voto direto em Brasília, a nova capital foi chefiada por 16 pessoas. O primeiro deles foi o engenheiro Israel Pinheiro, que participou do processo de construção da cidade ao lado de Juscelino Kubitschek e que permaneceu no cargo de abril de 1960 até janeiro de 1961. Os assuntos tributários, orçamentários, serviços públicos e de pessoal da administração eram decididos por uma Comissão Especial do DF no Senado Federal, conforme passou a ser previsto a partir da Constituição de 1967.

A autonomia política do DF – um desejo crescente na população da cidade nos anos pós-ditadura – veio com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que definiu que a mesma entraria em vigor a partir de 1º de janeiro de 1991. A primeira eleição pelo voto direto, tanto para governador quanto para deputados distritais, ocorreu em outubro de 1990, ficando definida a posse dos eleitos em 1º de março do ano seguinte.

Naqueles primeiros anos era impossível imaginar que, transcorridos apenas cinco governos eleitos (Joaquim Roriz em três ocasiões, Cristovam Buarque e José Roberto Arruda – o atual) e menos de duas décadas de tempo, Brasília tivesse que se confrontar a partir do final de 2009 com a mais profunda crise de corrupção de sua história, que assola todos os níveis do atual governo.

Frente a toda a calamitosa situação política e moral verificada no governo do Distrito Federal neste início de 2010, quando a cidade completa seus 50 anos de vida, especialmente com relação às acusações que pesam sobre o governador Arruda e seu vice, Paulo Octávio, o PCdoB, por decisão de seu Diretório Regional do DF, se manifestou pelo impeachment de ambos e favorável a uma intervenção federal na capital do país. Segundo o presidente, Augusto Madeira, “com um governador preso, um vice-governador comprovadamente envolvido com o esquema corrupto e uma Câmara Legislativa, em sua maioria, cúmplice que, passados meses, nada fez para promover a apuração das responsabilidades, a solução para a crise deve ser buscada por outra via institucional. A intervenção federal é medida prevista na Constituição Federal de 1988”. Os comunistas do DF esperam, segundo Madeira, que “a intervenção venha a acabar com o clima de insegurança que se instalou na população desde a deflagração da crise. Que os negócios públicos retornem à normalidade garantindo a continuidade dos serviços públicos, a execução das obras e das demais ações governamentais… para que, enfim, Brasília respire aliviada em 2010, ano que celebra 50 anos de sua inauguração”.

A cidade de Brasília e o Distrito Federal conseguirão sair desta enrascada! Ainda este ano teremos eleições democráticas que possibilitarão ao povo eleger mandatários íntegros e comprometidos com as necessidades e verdadeiras aspirações populares. Refletindo um pouco mais sobre tudo o que foi escrito acima, fico definitivamente convencido da propriedade da frase de meu velho amigo, que abriu este artigo, com relação à nossa jovem capital: única e múltipla, mas profundamente contraditória.
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Volnei Garrafa é professor da Universidade de Brasília desde 1973. Foi membro fundador (1978) e presidente da Associação dos Docentes (ADUnB/1980-82). Atualmente é Coordenador da Cátedra UNESCO e do Programa de Mestrado e Doutorado em Bioética da UnB.

Fonte: revista Princípios