O número de bate-bocas entre o representante especial dos EUA Richard Holbrooke e o governo afegão já alcança as nuvens. As capitais regionais assistem às brigas como diversão garantida, enquanto Holbrooke prossegue em sua guerra incansável contra a liderança de Karzai. Ainda não se sabe com certeza se Holbrooke segue agenda pessoal ou se obedece instruções de Obama e tem, assim, o imprimatur do governo dos EUA.

A última de Holbrooke foi o anúncio suo moto (de sua própria iniciativa) em Washington, logo depois de voltar de visita a Cabul, de que a jirga, ou conselho da paz, que Karzai planeja promover nos dias 2-4 de maio, estaria sendo adiada para depois da visita de Karzai a Washington, a acontecer nos dias 10-14 de maio. Holbrooke chegou a anunciar que a jirga aconteceria dia 20 de maio.

Há claros sinais de que o governo afegão ofendeu-se gravemente com o anúncio. Por que Holbrooke usurpou a prerrogativa do governo de Cabul de divulgar esses detalhes? Provavelmente, por duas razões. Primeira, Holbrooke está envelhecendo e perdendo a memória, e errou sem querer, o que pode acontecer a qualquer um em momento de esgotamento físico e mental. Ou, então, atropelou Karzai deliberadamente, para fazê-lo aparecer como perfeito tolo no bazaar afegão.

Não há qualquer sinal de que Holbrooke (que completa 69 anos nesse sábado) esteja senil. Conclusão lógica é que Holbrooke deliberadamente puxou o tapete de Karzai e optou por chamar para si os holofotes, dando mostras de que Washington estaria dando as cartas no Hindu Kush em assuntos de guerra e paz.

Obama precisaria mesmo dessa exasperante disputa de vaidades? Obama, no momento, teria de vencer a guerra com uma medida que aumentasse sua credibilidade, para não arranhar a imagem de super potência dos EUA.

No processo, Obama emergiria como o presidente que cumpriu suas promessas da campanha de 2008, de levar a “guerra ao terror” ao fim desejado, para evitar que, no futuro, os EUA se engajem em outras dessas fúteis e caríssimas aventuras militares. Bem poderia dedicar-se a aferir se a diplomacia de Holbrooke para o “Af-Pak” está ou não operando em sincronia com sua agenda política.

Quanto a isso, não há dúvidas de que Holbrooke claramente personalizou sua disputa contra Karzai até muito além do necessário. A coisa começou depois de um desastroso banquete no palácio presidencial, ano passado, quando Karzai o pôs porta a fora – o enviado dos EUA tentava convencer o presidente afegão a caminhar para ver o por do sol.

Desde essa humilhação, Holbrooke meteu-se na cabeça que o líder afegão, que tem um plano de conciliação nacional, tem de ser neutralizado e sabotado.

Assim, os EUA tomaram-se de antipatia pelo plano de convocar a jirga, ao mesmo tempo em que o mesmo plano começava a seduzir as potências europeias, que sentem com mais urgência a necessidade de “afeganistizar” a guerra – politicamente e militarmente.

O plano de Karzai visa a “reintegrar” a maior quantidade possível de elementos moderados e reconciliáveis, numa mesma corrente política nacional. Por isso, planeja formar uma coalizão de base ampla que permita conduzir o país até as eleições de setembro, da qual se espera, com razoável probabilidade de êxito, que surja um parlamento eleito. Pode acontecer até de o novo governo conquistar a confiança dos eleitores, do ponto de vista da percepção popular, o que daria ímpeto extra ao processo de paz.

No mínimo, os EUA deveriam dar a Karzai a chance de prosseguir em seu plano de convocar o conselho de paz. Nenhum dano pode advir daí, ainda que se verifique que o plano de Karzai não seja perfeito. Afinal, ainda que em dimensões mínimas, qualquer movimento para ampliar a conciliação política nacional ajudará a isolar os elementos irreconciliáveis.

Analisando em retrospecto, conjuntura igualmente promissora surgiu na guerra civil afegã, há exatamente vinte anos, em maio de 1990, quando o então presidente afegão Mohammad Najibullah convocou uma loya jirga, o grande conselho de líderes tribais, em Cabul. Pensava-se então numa estratégia de reconciliação nacional que implicava obter, dos comunistas, que partilhassem o poder com os mujahideen afegãos. A loya jirga, de fato, adotou ali uma nova constituição que pôs fim ao monopólio do partido comunista no poder executivo.

Mas os EUA, na ânsia obsessiva de consumar a débâcle dos comunistas em Cabul, uniram-se ao Paquistão e decidiram que nada deveria ser feito para ajudar Najibullah, protegido dos soviéticos, a pavimentar o caminho de uma reconciliação nacional no Afeganistão. Foi erro crasso histórico, que levou à intensificação da guerra civil, muito sangue derramado e grande instabilidade na Região. Bem feitas as contas, tudo isso voltou como um bumerangue sobre os EUA e determinou a tragédia inominável de 11/9/2001.

Como os Bourbons, os EUA também nada esquecem. E nada lembram. Arrastar Karzai até a débâcle total pode parecer tentação irresistível, mas os EUA não conseguem ver, que no mesmo processo, podem estar desperdiçando uma oportunidade de ouro de polarizar o Afeganistão a favor da paz e da reconciliação.

Há os europeus, que parecem interessados em apoiar o plano de Karzai, mas parecem fracos demais. “A UE [União Europeia], provavelmente um dos melhores exemplos de reconciliação no século 20, vê grande significado e muita importância nesse processo”, disse Vygaudas Usackas, chefe da delegação da UE em Cabul.

“Não será fato isolado. Desencadeará um processo que pode levar à paz no país”, disse ele. “Todos os processos de reconciliação exigem muito tempo, antes de que as sementes comecem a brotar.”

A jirga é o mais claro contraste que se pode imaginar, em relação ao modo como a embaixada dos EUA em Cabul está manipulando os políticos afegãos para converter o Parlamento em centro de oposição a Karzai. O teatro do absurdo começa a ser forçado além dos seus limites.

Hoje, um punhado de dólares pode, sim, levar Tio Sam para dentro do Hindu Kush. Mas a questão é saber a que objetivos estratégicos dos EUA interessaria o golpe de subornar os políticos afegãos que querem a dissolução do atual parlamento (que já ultrapassou o seu período constitucional de mandato) e a eleição de um novo corpo legislativo?

Sim, a ampla maioria dos parlamentares afegãos enfrentarão sérias dificuldades para serem eleitos. O presidente do Parlamento Yunus Qanooni pode estar com os dias contados e seu futuro político parece incerto. Assim, a embaixada dos EUA em Cabul tem boa chance de persuadir o atual parlamento a opor obstáculos no caminho de Karzai em praticamente qualquer discussão imaginável.

Mas, nessa altura, o Afeganistão precisa desse tipo de crise constitucional?

Karzai acedeu ao pedido da ONU de incluir dois estrangeiros, com poder de veto, na comissão eleitoral que fiscalizará as próximas eleições parlamentares. Karzai também indicou nome confiável para a presidência da comissão. Esses atos manifestam a disposição de Karzai para a conciliação e, assim, ele dá mais um passo na direção de merecer ser legitimado internacionalmente, em seu trabalho em prol de um processo afegão democrático.

São passos notáveis, também, em direção à transparência na partilha do poder e no respeito à Constituição, dados por líder calejado na luta nas barricadas.

Para fazer justiça a Karzai, Obama teria de deixá-lo livre para trabalhar a própria imagem entre seus concidadãos, como líder afegão, muito mais do que como assessor subalterno de Holbrooke. A próxima reunião no Salão Oval oferece uma última oportunidade de aprofundar o processo político afegão como ação de colaboração entre os EUA e o governo afegão, ao mesmo tempo em que se preserva a impressão de que o processo esteja sendo conduzido pelos afegãos.

A performance midiática de Holbrooke, semana passada, em Cabul, foi assustadora. Qualquer líder afegão que se dê ao respeito ressentir-se-ia gravemente ante aquele comportamento, em qualquer estrangeiro. Holbrooke divulgou, unilateralmente, todo o roteiro da visita de Karzai. Diplomata profissional, Holbrooke deve saber que o Afeganistão tem ministério de Relações Exteriores plenamente credenciado em todo o mundo, ao qual, evidentemente, cabe a tarefa de traçar e divulgar o itinerário da viagem do chefe de Estado, nesse caso à capital dos EUA.

Os romancistas norte-americanos William J. Lederer e Eugene Burdick cunharam expressão famosa para descrever os vice-reis norte-americanos, vistos, não raras vezes, pelos olhos dos locais: “O Norte-americano Feio”. Foi há muito tempo, nos anos 50s, no Sudeste da Ásia. Mas a imagem não mudou.

A parte mais triste é que a imagem do norte-americano feio, de Holbrooke, é diametralmente oposta à do próprio presidente Obama, visto, aos olhos da opinião mundial, como estadista e humanista.

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* The Ugly American é título de um romance político de 1958, de Eugene Burdick and William Lederer; e do filme, de 1963. Tem edição brasileira: O Americano Feio, 1962, ed. Helicon.

Bhadrakumar, Asia Times Online

http://www.atimes.com/atimes/South_Asia/LD24Df03.html

Tradução: Caia Fittipaldi