A política de desarmamento do governo Obama
“America’s interests and role in the world require armed forces with unmatched capabilities and a willingness on the part of the nation to employ them in defense of our interests and the common good. The United States remains the only nation able to protect and sustain large-scale operations over extended distances. This unique position generates an obligation to be responsible stewards of the power and the influence that history, determination and circumstance have provided.”
Department of Defense, USA, Quadrennial Defense Review Report, February 2010
Logo em seguida, no dia 8 de abril, Barack Obama, assinou – em Praga – um acordo com o presidente russo Dmitry Medvedev, com o objetivo de reduzir o arsenal nuclear das duas maiores potências atômicas do mundo. E quatro dias depois, Barack Obama liderou a reunião da Cúpula de Segurança Nuclear, reunindo em Washington, 47 chefes de Estado, para discutir a sua própria proposta de controle da proliferação nuclear, ao redor do mundo. Com vistas à reunião quinquenal de reexame do Tratado de Não Proliferação Nuclear, que se realizará no próximo mês de maio, na cidade de New York, com a participação dos 189 estados assinantes do TNP.
Até aqui, a retórica e a encenação foram perfeitas, mas os limites e contradições dessa nova proposta de desarmamento do presidente Obama, são muito visíveis. Em primeiro lugar, o que ele chamou de “nova estratégia nuclear americana”, não passa de uma decisão e de um compromisso verbal que pode ser revertido e abandonado em qualquer momento, dependendo das circunstâncias e de uma decisão arbitrária dos próprios EUA. Em segundo lugar, o acordo entre os presidentes Obama e Medvedev, envolve uma redução insignificante e quase só simbólica, dos seus arsenais atômicos, permitindo ao mesmo tempo a substituição e modernização das cabeças nucleares dos vetores já existentes. Além disso, o novo acordo de desarmamento não incluiu nenhuma discussão a respeito do aumento dos gastos militares norte-americanos nos últimos anos, nem a respeito do aperfeiçoamento dos novos vetores X 51 da Boeing, com capacidade nuclear e que entrarão em ação em 30 meses, sendo capazes de alcançar qualquer país do mundo, em menos de uma hora. Nem tampouco se falou dos novos submarinos russos Yassen, que tem capacidade de transportar 24 mísseis a bordo, cada um com seis bombas atômicas. Em terceiro lugar, em nenhum momento e em nenhuma dessas reuniões se mencionou o armamento atômico da Otan, localizado secretamente na Alemanha, Itália, Bélgica, Holanda e Turquia. Nem muito menos se incluiu na discussão os arsenais atômicos de Israel e Paquistão, que estão hoje sob controle de governos com forte presença de forças fundamentalistas e belicistas, e que atuam sob a batuta dos próprios norte-americanos. Por fim, é lógico que não aparece, em nenhum momento, nesta agenda pacifista de Barack Obama, o aprofundamento recente da Guerra do Afeganistão e os preparativos dos Estados Unidos e de Israel para um ataque arrasador contra o Irã, que é um país que não possui armamento atômico, e que assinou o Tratado de Não Proliferação, ao contrário de Israel.
Essas contradições não são novas nem surpreendentes, fazem parte da política externa dos Estados Unidos, desde o fim da Guerra Fria. O importante, neste caso, é que os demais países envolvidos entendam e assimilem a lição, e saibam se posicionar em função dos seus próprios interesses. Os Estados Unidos são um “poder global”, e os “interesses nacionais” de um poder global envolvem posições a defender em todo mundo, o que diminuiu muito sua capacidade de sustentar princípios e valores universais. Por isso, depois do fracasso do fundamentalismo quase religioso do governo Bush, o presidente Obama vem surpreendendo alguns analistas com o realismo pragmático e relativista de sua política externa. Mas o seu objetivo central segue sendo o mesmo, ou seja, a primazia mundial dos Estados Unidos. Além disso, ao contrário das aparências, em plena crise econômica, Barack Obama decidiu mudar o foco e dedicar-se à consolidação do poder militar americano em todo mundo, sem grandes preocupações com direitos humanos ou com a difusão da democracia, e demonstrando plena consciência de que esse poder militar é indispensável à reconstrução da economia americana e da própria liderança mundial do dólar. Desse ponto de vista, o que o presidente Obama está propondo, de fato, é uma espécie de congelamento da atual hierarquia do poder militar mundial, com a manutenção do direito e da obrigação americana de aumentar continuamente os seus próprios arsenais.
Os revezes econômicos e militares dos Estados Unidos, na primeira década do século XXI, atingiram o projeto de poder global dos EUA, mas ele não foi abandonado. Hoje, está em curso um realinhamento interno de forças dentro do establishment americano – como ocorreu na década de 70 – e dessa luta interna poderá surgir uma nova estratégia internacional, como aconteceu nos anos 80, com o governo Reagan. Mas esses processos de realinhamento costumam ser lentos e seus resultados dependerão da própria luta interna, e dos desdobramentos dos conflitos externos em que os Estados Unidos estão envolvidos. De qualquer maneira, o que é importante compreender é que seja qual for o resultado dessa disputa interna, os EUA não abdicarão voluntariamente do poder global que já conquistaram e não renunciarão à sua expansão futura. A política externa das potências globais tem uma lógica própria, e por isto mesmo, com ou sem política de desarmamento, os EUA deverão seguir aumentando sua capacidade militar de forma contínua, e numa velocidade que deverá crescer nos próximos anos, na medida em que se aproxime a hora da ultrapassagem da economia americana, pela economia chinesa.
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José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ e autor do livro “O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações”.(Editora Boitempo, 2007)
Fonte: jornal Valor Econômico